A Bombas Sinos é a fornecedora responsável pelos dois maiores contratos de manutenção do sistema de proteção contra enchentes desde 2016, segundo dados oficiais da prefeitura de Porto Alegre. (Foto: Donaldo Hadlich/Código 19/Folhapress)

Ontem fiscal, hoje sócio

Empresa de manutenção de sistema antienchente contratou seu próprio fiscal da prefeitura de Porto Alegre


Uma das empresas responsáveis pela manutenção do sistema de contenção de inundações de Porto Alegre tem, entre seus sócios, um ex-funcionário da prefeitura que, por dois anos, foi o responsável por sua fiscalização. 

O engenheiro Thierri Moraes trabalhou no Departamento Municipal de Água e Esgotos da capital gaúcha, o DMAE, entre 2017 e outubro de 2020. Entre suas atribuições como servidor estava a definição de termos de referência para processos licitatórios. Durante a maior parte de sua carreira no serviço público municipal, ele foi fiscal de contratos da Bombas Sinos, empresa que atua com assistência técnica de bombas hidráulicas. Em 2020, saltou para o outro lado do balcão: abriu uma empresa, que passou a prestar serviços para a Bombas Sinos, da qual viraria sócio depois.

A Bombas Sinos é a fornecedora responsável pelos dois maiores contratos de manutenção do sistema de proteção contra enchentes desde 2016, segundo dados oficiais da prefeitura de Porto Alegre. Os acordos têm valores somados que superam R$ 6 milhões – um deles segue em vigência.

Comportas de aço, casas de bomba e muros fazem parte de um complexo sistema que deveria proteger Porto Alegre das águas do Guaíba, mas foram insuficientes para conter a cheia. A falta de manutenção é apontada por especialistas como uma das razões que ocasionaram a enchente histórica na cidade, embora ainda seja cedo para saber ao certo como e onde isso se deu.

No ano passado, um contrato com a Bombas Sinos rendeu uma multa do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Rio Grande do Sul, o CREA-RS, à prefeitura de Porto Alegre. 

Segundo a decisão, a prefeitura não forneceu “as informações necessárias para a fiscalização de um serviço de manutenção mecânica nas casas de bombas do sistema de proteção contra cheias de Porto Alegre”. 

A administração municipal, segundo o órgão, deixou de atender a uma solicitação de documentos e providências feita pelo CREA-RS em março de 2019, referente à sua responsabilidade técnica na prestação dos serviços contratados. 

O fato ocorreu na época em que Thierri Moraes era o responsável por fiscalizar a empresa. Naquele mês, o engenheiro passou a ocupar o cargo de chefe de divisão e ganhou adicional de periculosidade sobre o salário. Em junho de 2019, se tornou retroativamente o fiscal titular do contrato da Bombas Sinos. O engenheiro diz que isso ocorreu porque o titular havia deixado o cargo. Quem o nomeou foi o então secretário municipal de serviços urbanos, o hoje vereador Ramiro Rosário, do Novo.

Bombas Sinos diz que o engenheiro começou na empresa como prestador de serviços ‘devido a sua expertise de mercado’.

Mas, quando a multa chegou, Thierri Moraes já prestava serviços para a empresa que fiscalizava, onde mais tarde se tornaria diretor comercial.

Agora, o serviço prestado pela Bombas Sinos também pode entrar na mira do Ministério Público do Rio Grande do Sul, já que o órgão anunciou que investiga falhas após especialistas apontarem negligência na manutenção e no manejo do sistema de proteção contra cheias.

Ao Intercept Brasil, a Bombas Sinos afirmou que “ainda é cedo para compreender e avaliar completamente o comportamento do sistema nesse evento”. Mas ressaltou que “avaliações apontam para falhas na concepção do projeto” e não na manutenção do sistema.

A Bombas Sinos também disse que, quando começou a prestar o serviço, em janeiro de 2018, “foi encontrado apenas 40% do bombeamento em funcionamento, ou seja, um déficit de manutenção muito grande”. Segundo a empresa, nos primeiros dois anos de contrato, foram atingidos índices de 80% de funcionamento no sistema. 

De contratante a contratado

Thierri Moraes é um engenheiro mecânico formado em 2010 pela Universidade Luterana do Brasil, em Canoas. Em setembro de 2013, assumiu um cargo na Fundação de Ciência e Tecnologia, órgão extinto pelo governador Eduardo Leite, onde ficou até setembro de 2017. De setembro de 2015 a março de 2017, segundo os registros do TSE, Moraes foi filiado ao Partido Novo. O engenheiro afirma que não tem nenhuma ligação político-partidária e que sua filiação foi feita por engano após o preenchimento de um cadastro.

Em outubro de 2017, Moraes assumiu um cargo comissionado no Departamento Municipal de Água e Esgotos, durante a gestão do tucano Nelson Marchezan na prefeitura de Porto Alegre. Moraes afirma que sua contratação aconteceu após se inscrever num banco de talentos da prefeitura.

Na época, o DMAE estava subordinado à pasta chefiada  por Ramiro Rosário, então do PSDB. Hoje vereador pelo partido Novo, Rosário foi um dos responsáveis por disseminar a fake news de que o governo Lula estaria taxando doações internacionais direcionadas ao Rio Grande do Sul. 

Segundo o perfil de Moraes no LinkedIn, uma de suas atribuições no DMAE era elaborar os termos de referência para licitações. Ficou nessa função por mais de dois anos, inspecionando, entre outras tarefas, as atividades da Bombas Sinos no sistema de contenção de enchentes. A empresa afirma que Moraes que fiscalizou apenas contratos que já estão extintos, “nos quais nunca atuou como membro da Bombas Sinos”.


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Mas o Diário Oficial do município, organizado para busca no Querido Diário, da Open Knowledge Brasil, mostra em detalhes que, na prefeitura, Moraes rapidamente se tornou o principal fiscal da Bombas Sinos e interlocutor do relacionamento entre a contratada e o poder público. 

O contrato que Moraes fiscalizava foi firmado em 2017, com valor inicial de R$ 2,28 milhões. No final de 2019, o montante foi elevado para R$ 2,84 milhões. A contratação foi prorrogada por quatro vezes.

Em outubro de 2020, Thierri Moraes deixou a prefeitura. Depois, passou para o outro lado do balcão: passou a prestar serviços para a Bombas Sinos, função registrada em seu LinkedIn como “diretor comercial”. Ao Intercept, a empresa afirmou que o engenheiro começou “devido a sua expertise de mercado”, e a atuação foi “através de sua própria empresa, após ter encerrado vínculo com a prefeitura, em outubro de 2020”. Moraes tem um CNPJ próprio, chamado Beagle – Engenharia de Contratos, aberto em agosto de 2020, pouco antes de sair da prefeitura.

As duas últimas prorrogações do contrato fiscalizado por Moraes aconteceram com ele já prestando serviços para Bombas Sinos. Em julho de 2021, a empresa venceu novamente a concorrência para prestar os serviços de manutenção do sistema de proteção em enchentes. 

Marchezan Júnior teve ‘conduta contrária ao interesse público, desarrazoada e imprudente’ com a intenção de privatizar o DMAE.

Desde então, o novo acordo da Bombas Sinos com a prefeitura de Porto Alegre já teve três termos aditivos, o mais recente em abril de 2024. O valor inicial, de R$ 3,39 milhões, teve acréscimos que somam mais R$ 1,4 milhão para a Bombas Sinos.

O acordo em vigor prevê a prestação de serviços técnicos especializados para a “manutenção eletromecânica preventiva e corretiva em Equipamentos Industriais do Sistema de Proteção Contra Cheias de Porto Alegre, incluindo o fornecimento de materiais e peças de reposição, abrangendo as Estações de Bombeamento de Águas Pluviais e os 14 portões comportas do Cais Mauá e Avenida Castelo Branco”.

Thierri Moraes afirma que se tornou diretor comercial da Bombas Sinos em 2023 e, desde dezembro daquele ano, consta como sócio da empresa. Os outros sócios são o fundador, José Luiz Reichert, Tatiana Reichert da Costa e Eduardo Goulart da Costa. Segundo a estimativa da plataforma Econodata, a empresa teria entre 1 e 10 funcionários. 

A Bombas Sinos também tem outros contratos com a prefeitura. Um deles, assinado em fevereiro de 2021, no valor de R$ 1,5 milhão, prevê o fornecimento e instalação de 41 comportas automáticas das estações de bombeamento de esgoto pluvial misto. A empresa também acumula uma série de vendas de equipamentos e peças à administração municipal.

Ao Intercept, Thierri Moraes afirmou que jamais teve “qualquer ligação político-partidária”. Ele afirma ter feito apenas um cadastro e diz ter insistido por dois anos para ser desfiliado do Partido Novo após receber os boletos. Também afirmou que sua seleção para o DMAE ocorreu após sua inscrição em um banco de talentos mantido pela então gestão municipal, num espaço de oito dias entre a candidatura e a convocação.

Segundo Moraes, houve um equívoco nas datas registradas em seu LinkedIn, e ele “não fazia parte da empresa” nas prorrogações dos antigos contratos com a prefeitura. O engenheiro afirma que só foi convidado a virar sócio da Bombas Sinos em 2023. “A empresa tem mais de 20 anos de história de serviços na Região Metropolitana, com clientes do setor privado e público, especialmente indústrias — e, também, com uma trajetória ilibada”, afirmou.

Leia aqui sua resposta completa.

Precarizar para privatizar: menos servidores, menos fiscalização 

Thierri Moraes ascendeu na prefeitura de Porto Alegre sob o comando de Ramiro Rosário, então secretário de Serviços Urbanos de Nelson Marchezan Júnior. Sob seu comando, a pasta defendeu a privatização do Departamento Municipal de Água e Esgoto.

Em fevereiro de 2021, o Tribunal de Contas do Estado publicou um relatório sobre a situação do DMAE, revelado pelo Matinal Jornalismo. Segundo a Corte, Marchezan Júnior teve “conduta contrária ao interesse público, desarrazoada e imprudente” na gestão da empresa com a intenção de privatizá-la

Como resultado, os serviços do DMAE foram prejudicados, implicando em aumento de interrupções no fornecimento de água de mais de 40%.

Outra reportagem, do site do Sul21, apontou que o corte sistemático de verbas e a falta de autonomia do DMAE são reclamações recorrentes do servidores agora na gestão de Sebastião Melo, do MDB. 

Os números falam por si. De R$ 239,72 milhões investidos no órgão em 2012, o valor caiu para R$ 136,87 milhões em 2022. Em 2007, o DMAE tinha 2.493 funcionários. Em 2024, esse número é em torno de 1.050, uma redução em mais de 50%.

“A precarização do DMAE, fruto de uma decisão política atrelada ao ‘modelo de negócio privatização- concessão-parceirização’, o qual reduziu a capacidade técnica e operacional do Departamento, seja pela falta de reposição do quadro funcional, ausência de planejamento com visão do futuro da Autarquia ou pela proposital falta de investimentos em expansão e melhorias”, diz o Conselho de Representantes Sindicais do Departamento Municipal de Água e Esgotos.

Thierri Moraes afirmou não ter relações políticas ou pessoais com Ramiro Rosário. “Apenas relações profissionais, por trabalhar na pasta à qual eu prestava serviços”, ele disse ao Intercept.

Atualização: 17 de maio de 2024, 12h07

O texto foi atualizado para incluir informações enviadas por Thierri Moraes após a publicação da reportagem. Também foi corrigido o nome do Crea-RS, que é o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia, e não de Arquitetura.

Atualização: 20 de maio de 2024, 21h01

Nova atualização para incluir o posicionamento de Moraes e o fato de que o vereador Ramiro era filiado ao PSDB.

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