Nossa coluna começa com a seguinte manchete publicada na Folha/Valor Econômico: ‘Flexibilização dos Pisos de Saúde e Educação pode liberar até R$ 131 bilhões para outros gastos até 2033’.
Esta manchete nos leva a várias questões. A primeira que surge na mente é: Para quê, exatamente, será essa liberação? Quais outros gastos seriam mais urgentes do que Saúde e Educação em nosso país? Ou ainda, que dívida é essa que o país precisa saldar?
A frase mais repetida entre políticos de direita, centro e agora também de centro-esquerda é: “A Constituição não cabe no orçamento.”
O debate em torno do orçamento previsto pela Constituição de 1988 tem a mesma idade da Nova República. Desde então, sua implementação enfrenta inúmeros entraves, e seus recursos já foram desviados para criar o Fundo Social de Emergência em 1993-1994.
Posteriormente, foi provisoriamente institucionalizado através da Desvinculação de Receitas da União, a Dru, que chegou a representar 20% dos recursos com finalidade vinculante pela Constituição. Durante o governo Temer, essa porcentagem foi atualizada para 30%.
A frase mais repetida entre políticos de direita, centro e agora também de centro-esquerda é: ‘A Constituição não cabe no orçamento’. O atual ministro da Fazenda, Fernando Haddad, promoveu a flexibilização dos recursos de Saúde e Educação, um feito que o próprio partido do qual é membro conseguiu barrar várias vezes em governos de outras siglas.
Contudo, para manter o governo dentro da autoimposta meta de gastos fiscais, Fernando lançou mão da flexibilização dos dois orçamentos. A nova meta de gastos do governo faz parte do novo arcabouço fiscal proposto pelo governo logo nos meses iniciais de 2023.
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A ideia era criar um espaço para a realização de políticas fiscais pelo governo. Deste modo, a regra que instituía o congelamento dos gastos fiscais por 20 anos, implementada ainda no governo Temer, era substituída pela nova regra, que criava uma espécie de elo entre os gastos fiscais e o crescimento econômico do país. Se o país crescesse, os gastos cresceriam também.
O país enfrenta um déficit crônico de investimentos em Saneamento Básico, investimentos que poderiam refletir diretamente na economia e no orçamento público, em relativamente pouco tempo.
Já que estamos no reino da responsabilidade fiscal, a proposta de Haddad foi considerada um tanto quanto irresponsável. Se o país enfrentasse uma desaceleração econômica, não poderia reivindicar um dos principais mecanismos de amortecimento dinâmico da economia, o gasto fiscal.
Isso, é claro, se tomarmos como ponto de partida que o ajuste do mercado apenas acontecerá meses após o juízo final.
Respondendo à pergunta imaginada pelo leitor da nossa coluna sobre a manchete inicial – ‘Liberar R$ 131 bilhões para quais outros gastos?’ – as possibilidades são vastas. O país enfrenta um déficit crônico de investimentos em Saneamento Básico, investimentos que poderiam refletir diretamente na economia e no orçamento público, especialmente na área da Saúde, em relativamente pouco tempo.
Mas, a nossa manchete se baseia nos cálculos feitos pela Secretaria do Tesouro Nacional, que faz projeções quase que diárias sobre o perfil e a curva de gastos com a dívida pública brasileira. Seguindo o parco crescimento econômico do país desde meados de 2015, a curva e o vencimento da dívida têm reduzido o horizonte de manobra do Tesouro. Deste modo, metade da pergunta feita pelos leitores à manchete foi respondida.
Então, a economia de 131 bilhões, até 2033, o que supõe que a flexibilização duraria até lá, basicamente seria uma espécie de poupança do governo para garantir o pagamento dos credores do Tesouro Nacional.
Essa é a lógica por detrás da manchete e da flexibilização feita no piso da Educação e Saúde, a qual, convenhamos, é muito intuitiva, mas, em problemas econômicos talvez seja mais interessante uma abordagem mais pragmática.
A economia tem suas liturgias, seus cânticos, e até alguns evangelhos apócrifos, como o da dona de casa que emite moeda para pagar as compras na quitanda e decide os níveis de juros do mercado com outras ‘grandes donas de casa’ do bairro. São máximas como essas que sempre nos fascinam.
Por sua vez, o Tesouro Nacional, responsável pela administração da dívida pública, está preocupado com o perfil e o vencimento da mesma, e com razão.
No entanto, ao invés de apenas considerar como cortes em despesas vinculadas pela Constituição liberariam bilhões para ‘outros gastos’, o Tesouro poderia se concentrar em propostas que promovam a redução das taxas de juros dos títulos e o prolongamento de seu vencimento.
O grande capital nacional é como uma embarcação ancorada na dívida pública, e nosso sistema financeiro se sustenta há décadas em taxas de juros reais elevadas
Não sejamos ingênuos, assim como a água encontra seu caminho entre as rochas, a economia sempre descobre formas de se ajustar às regulamentações. O objetivo é, pelo menos, buscar o controle orçamentário, especialmente diante de um governo de centro-esquerda.
Tudo isso sem esquecer que estamos lidando com a dívida interna, não a externa. Este é um tema que merece uma coluna própria para discussão.
Em última análise, o mercado – esse ente que vive à base de juros e maracujina – precisa ter a certeza de que suas expectativas serão realizadas. Assim, uma poupança de recursos está sendo feita até 2030, assegurando seu pagamento até lá.
O grande capital nacional é como uma embarcação ancorada na dívida pública, e a liquidez do nosso sistema financeiro se sustenta há décadas em taxas de juros reais elevadas.
Num cenário onde os mecanismos de condução macroeconômica parecem sequestrados, reduzir a taxa de juro e incentivar o investimento privado através do gasto público são considerados quase heréticos.
Fernando, à frente da Fazenda, reafirma seu compromisso com as expectativas do mercado, sem alterar o status quo da máquina. Nada de novo sob o sol, exceto pelo fato de que este Fernando não é Henrique, mas Haddad.
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