Fabiana Moraes

Espaços VIP e cartão black 'acessíveis' simulam riqueza num país pobre de cidadania

Festas como Carnaval e São João viraram apoteose de um modelo de negócios que vende direitos básicos como forma de distinção social.

Ilustração: Nicholas Steinmetz para o Intercept Brasil

Ilustração: Nicholas Steinmetz para o Intercept Brasil

No meio da multidão havia uma carruagem.

(Dostoievsky + Victor Heringer)

Serviço prime, picolé gourmet, cartão black, camarote VIP, bar premium, espaço privilege. São muitas as distinções usadas para indicar quem são as pessoas muito importantes, que merecem lugar no palco, e quem pode, no máximo, servir de plateia. 

Embora a camarotização do espaço público não seja uma novidade em si, a “democratização” dos títulos VIP mostra que nosso desejo de ser melhor do que o outro nunca foi tão compartilhado. No aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, por exemplo, as 22 salas VIP agora vivem lotadas. 

Com mais gente se servindo de canapés nos confortáveis sofás VIP, a grita de quem quer se sentir “exclusive”, é claro, começou: há uma corrida, agora, para mimar com mais privilégios quem já era “privilege”.

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Outra evidência do desejo popular pelo carimbo very important person foram as adesões ao “cartão black” oferecido pelo Girabank, banco digital que tem o influencer Carlinhos Maia como ex-sócio fundador

Voltado para classes mais populares, o cartão nunca prestou serviços comumente atrelados aos cartões black, como descontos em itens chiques ou prioridade no embarque em aeroportos. 

Mas isso não impediu que milhares de pessoas corressem para garantir aquela espécie de passe mágico para um mundo pretensamente mais exclusivo: “Vai ser uma honra ter o seu cartão na minha carteira. Em nome de Jesus“, disse uma mulher no YouTube sobre o serviço ruidosamente vendido por Maia nas redes. 

A  animação do influencer durou pouco – o banco foi inaugurado em 2022 e, já em 2023, o alagoano saiu da empresa, acusada de dar golpes e reter dinheiro de correntistas.

O desejo de se distinguir é uma propriedade humana hipervalorizada e instrumentalizada no contexto do capitalismo, ainda mais bombada pela política do parecer ser das redes sociais. 

O caso do cartão black voltado para pessoas pobres é o exemplo máximo dessa sacada: simbolicamente, ele diz a todos que quem o porta é dono de uma boa renda, ou até um investidor. 

Não importa se sua renda é equivalente a um salário mínimo , o que vale é simular socialmente – e plataformas como o Instagram são excelentes para isso – que você ganha, no mínimo, R$ 15 mil por mês

Esse sim é um fenômeno novo: na história recente do Brasil, quando houve estabilização da inflação, aumento real de salário mínimo e políticas de inclusão social como o Bolsa Família, eram os eletrodomésticos e carros alguns dos principais objetos de exibição. 

Mas, no planeta pós-pandêmico e hiperquente, com seus bilhões de fotografias e memes inundando as redes, o consumo mais acessível é o da imagem – é o mundo da iconofagia. Nele, buscamos representações que correspondam aos nossos desejos e vontades, como escreve Ana Paula Fiori Sawamura no texto “Consumo e distinção social no Instagram“. 

Carlinhos Maia foi sócio-fundador do Girabank, banco digital que oferecia cartão VIP “acessível” e acabou acusado de dar golpes. Foto: Divulgação/Girabank

Carnaval e festas juninas são apoteose do consumo VIP

Para além dos objetos de consumo, o espaço público é o lugar mais evidente desse desejo de se segregar e demonstrar mais riqueza e sucesso do que os demais. 

Para que isso aconteça, é preciso transfigurar o que é público em privado, partindo assim as ruas e praças em dois ambientes: em um, está quem tem direito não só ao som de DJs e drinques, mas ainda à segurança, lazer e saúde. No outro, aqueles com acesso precário – ou nenhum –, principalmente aos três últimos “itens”. 

As grandes festas do país, como o Carnaval e São João, são a apoteose desse fenômeno.

No Galo Summer, serviço de camarote oferecido durante o bloco Galo da Madrugada, em Recife, os serviços de open bar e open food, além de “calçada VIP” (sim, CALÇADA VIP) foram oferecidos em conjunto com segurança especializada e socorristas.

Mas, veja só: era possível localizar, no mesmo dia, camarotes por preços populares, feitos para garantir que o comprador não se misturasse com “o povo”. 

No pacote do Camarote Novo Galo, por exemplo, por R$ 28, você consegue ser um pouco mais cidadão e driblar, de leve, a crise climática: ventiladores, seguranças, bombeiros, enfermaria, praça de alimentação e banheiros eram alguns dos “produtos” vendidos.

É sem dúvida importante que os tais espaços VIP não sejam um privilégio somente de quem recebe mais de 10 salários mínimos por mês. Por outro lado, se praticamente todo mundo está num cercadinho VIP, como pensar a folia – e a vida cotidiana – de quem está lá fora?

A adesão cada vez maior da população aos “serviços VIP” indica um triste fenômeno: a desistência da fé no bom funcionamento dos serviços públicos. 

Essa é uma questão central, quando a possibilidade de não ser assaltado, de não sofrer outras violências ou de ser atendido no caso de um problema de saúde só é benefício de quem pode pagar. 

Mais: o dinheiro de foliãs e foliões não vai para governos de cidades e estados. Ele se concentra na iniciativa privada, a mesma que adora a ideia de um estado mínimo.

Ficam as perguntas: quanto as prefeituras arrecadam ao licenciar esses espaços? E como esse valor é devolvido para a administração pública? A que serviços públicos esse dinheiro é voltado? Saúde? Educação? Limpeza?

O bloco Galo da Madrugada, em Recife, oferece serviços VIP para quem quer ficar longe do povo: open bar, open food, segurança especializada, socorristas e até calçada VIP.
O bloco Galo da Madrugada, em Recife, oferece serviços VIP para quem quer ficar longe do povo: open bar, open food, segurança especializada, socorristas e até calçada VIP. Foto: Marcelo Justo/UOL/Folhapress

A farra privada virou modelo de negócio

Em “‘Agora assista aí de camarote’: como os camarotes reconfiguraram a rede de negócios do Carnaval de Salvador“, a pesquisadora Bruna Lopes, da UFBA, mostra, historicamente, como o espaço de todos foi se tornando de poucos a partir da mercantilização da festa. 

Inicialmente, na capital baiana, era a elite que podia estar nos carros que desfilavam a céu aberto, cabendo às famílias – inclusive as mais abastadas – colocarem bancos e cadeiras em frente à casa para ver o “carnaval” passar. Depois, com as ruas mais ocupadas pelo povo, a burguesia recorreu aos salões, realizando bailes bem longe da folia popular. 

O aparecimento dos trios elétricos e a invenção da dupla Dodô e Osmar (tudo na década de 1950) levou ainda mais gente para as ruas, fazendo com que a população que assistia guardasse suas cadeiras nos terraços e varandas. 

Logo, a farra privada que servia para reunir amigos e família virou modelo de negócio desejado por todas as classes – e esse modelo sublinha os abismos sociais do país. 

Evento que envolve milhões de pessoas durante todo mês de junho, especialmente no Nordeste, as festas juninas  (Santo Antônio, São João e São Pedro) também passaram por um brutal processo de demarcação de ricos e pobres. 

Cidades como Caruaru, em Pernambuco, e Campina Grande, na Paraíba, mostram como a camarotização da festa popular transformou os espaços coletivos em cabides de propaganda de bets e cervejas.

Em “A segregação sócio-espacial no São João do Parque do Povo em Campina Grande“, Juliana Tavares Marinho demonstra como um local específico da cidade foi convertido em produto a ser vendido. Para isso, desenhou seus espaços “prime”, processo que resultou, é claro, na segregação sócio-espacial.

Cartão black serve para brancos

É impossível falar de espaços VIP e distinções sociais por meio do consumo sem falarmos de raça: ser “prime” ou “privilege” também indica, no x-tudo da desigualdade social brasileira, ser branco. 

Aliás, permitam-me uma digressão: circular em espaços da elite econômica é um desafio constante para pessoas negras. 

Há uns anos, fui visitar uma amiga doente que morava à beira-mar de Boa Viagem, bairro de Recife. Errei o andar e bati à porta de outro apartamento. Ao me ver, uma mulher abriu e fechou muito rapidamente a porta, dizendo: “Não estamos contratando ninguém”. Eu, que estava usando um vestido verde bonito, nem consegui abrir a boca.

Retomando: a psicóloga Sylvia da Silveira Nunes traz bons relatos sobre corpos pretos e espaços VIP em seu texto “Racismo contra negros: sutileza e persistência“, no qual observa um fenômeno comum no Brasil: as dúvidas sobre se uma ocorrência é ou não discriminação racial. 

Uma de suas entrevistadas contou como o namorado foi barrado em uma área reservada:

Ele não é negro. Mas ele é mestiço. A mãe dele é e o pai dele não é. Então, assim, às vezes, acontece uma situação. Faz muito tempo e a gente foi numa balada e… deixou várias pessoas passarem para uma área lá que era vip, e deixou as pessoas que estavam com a gente e tal e não deixou ele, e justamente sabe… Então, assim, você fica pensando: por que que é, entendeu? Não sei se realmente é por isso. Mas não deixou ele, justamente, sabe.

Os estranhamentos – seguidos de violências – de não encontrar pessoas negras nos espaços VIP são comuns mesmo em lugares predominantemente negros, como Salvador, haja vista o relato de Jocélio dos Santos, da UFBA, sobre um um caso de racismo na pista VIP para ver Beyoncé, em 2010. 

O portal Geledés também publicizou as agressões de três homens pretos que estavam na área VIP em uma festa em Santa Catarina.

No final, o cartão black ou a área refrigerada com DJ podem até servir para simular poder e riqueza nas redes – mas, depois da folia, como cantaria o grande Candeia, voltamos todas e todos (portando um ilusório cartão black) para o barracão.

A música que embala a coluna não poderia ser outra: Dia de Graça, do maravilhoso Candeia, citado logo acima: “E deixa de ser rei só na folia/E faça da sua Maria, uma rainha todos os dias/E cante um samba na universidade/E verá que teu filho será príncipe de verdade”.

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