Moradores do Flexal reclamam de abandono após destruição do bairro pela extração de sal-gema pela Braskem.

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Abandonados em área de risco, moradores usam Rivotril e dormem perto da porta com medo de desabamento em Maceió

Laudos sugerem que desastre ambiental causado pela mineração da Braskem é causa dos danos em moradias da periferia de Maceió.

Moradores do Flexal reclamam de abandono após destruição do bairro pela extração de sal-gema pela Braskem.

“Isso aqui é uma mala com todos os documentos da família. Na hora que precisar correr, é a primeira coisa que a gente vai puxar”. A fala revela a estratégia de Joselma Evaristo Valério, caso sua casa venha a desabar por causa do afundamento do solo provocado pela mineração de salgema da Braskem. Ela vive há 29 anos na comunidade dos Flexais, periferia do bairro Bebedouro, em Maceió. 

Morando na mesma região desde que nasceu, há 60 anos, o plano de fuga de Maria Cleide de Oliveira Santos foi botar as camas na sala, para que a família durma perto da porta. 

Joselma e Maria Cleide estão entre os 3,2 mil moradores das comunidades Flexal de Cima, Flexal de Baixo e Quebradas. Eles convivem com o medo constante de as casas desabarem sobre suas cabeças. 

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Os imóveis na região estão rachando, o piso está cedendo e buracos aparecem com frequência nos quintais e nas ruas. Os problemas são os mesmos que motivaram a desocupação dos bairros Pinheiro, Mutange, Bom Parto, Farol e parte do Bebedouro a partir de 2019, quando o desastre ambiental foi confirmado como resultado das ações da Braskem.

Diferentemente do que aconteceu nesses cinco bairros, contudo, a Braskem e a Defesa Civil Municipal de Maceió não reconhecem que as comunidades periféricas estão em área de risco. Portanto, os moradores não foram incluídos no Programa de Compensação Financeira da empresa e nem tiveram direito à realocação. 

Laudos técnicos de inspeção de engenharia encomendados pelos moradores e realizados em 2020 e em 2022, apontam que os problemas nas moradias estão associados a “recalques de fundação”, fenômeno que ocorre quando um imóvel sofre rebaixamento devido ao afundamento do solo sobre o qual foi construído. 

Os especialistas até destacaram que os imóveis vistoriados “não têm qualidade construtiva que se adequam às normas brasileiras”. Ainda assim, ambos recomendaram que as autoridades locais e a Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais, a CPRM, fossem convocadas imediatamente para realizar os estudos de solo nas comunidades, “pelo bem da população local”. 

O primeiro laudo, assinado pelo engenheiro civil Alec Moura Sampaio, tinha como objetivo identificar se as rachaduras e os afundamentos nas casas eram problemas individuais dos imóveis ou tinham uma origem comum. Ele concluiu que “há um problema de solo ao longo de toda a região afetada”. 

Das 45 casas vistoriadas, 32 foram classificadas com grau de risco crítico, de impacto irrecuperável. Ou seja, “sem condições satisfatórias de habitabilidade e segurança”. Elas apresentam fissuras, trincas e rachaduras – aberturas que vão de 0,5 a 5 milímetros. 

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Já o segundo laudo, feito pelo engenheiro civil Lucas Mattar Protasio Nunes dois anos depois do primeiro, visava mapear as residências que, segundo os moradores, apresentaram problemas desde 2018, quando o desastre ambiental provocado pela mineração da Braskem começou. 

As 62 casas analisadas por Nunes tinham os mesmos danos identificados no primeiro laudo. Quatro delas foram inspecionadas pelos dois engenheiros. Nesses casos, observou-se um agravamento das rachaduras, fissuras e trincas ao longo dos anos. 

“É possível crer que o problema das comunidades Flexal de Cima e Flexal de Baixo está relacionado diretamente com o solo”, escreveu o engenheiro, classificando a situação das edificações como crítica.

Uma nota técnica divulgada pelas Defesas Civis Nacional, Municipal de Maceió e pela CPRM, cinco meses após o laudo do engenheiro Nunes, descartou a relação entre os problemas nas casas dos Flexais e o afundamento do solo provocado pela mineração de salgema, mas reforçou que o isolamento da região traz danos à dinâmica socioeconômica.

Segundo o arquiteto e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Alagoas, Dilson Batista Ferreira, é o acordo bilionário que a Braskem firmou com a prefeitura – e que explicaremos à frente – que impede a realocação dos moradores. 

Para incluir os Flexais como área de risco de desabamento, diz Ferreira, o valor da indenização paga pela Braskem à prefeitura, de R$ 1,7 bilhão, teria que ser repactuado. “A resistência é meramente financeira, não é técnica”. Ele é categórico ao afirmar que os moradores estão “totalmente ameaçados pelo crime ambiental da Braskem”.

A empresa, vale ressaltar, faz parte do grupo empresarial Novonor, da família Odebrecht, que detém mais da metade das ações da mineradora. A segunda maior acionista é a Petrobras, com 47%, que tem inclusive prioridade na compra da Braskem.

Para Maurício Sarmento, membro da coordenação do Movimento Unificado das Vítimas da Braskem e morador dos Flexais há 45 anos, a explicação para o abandono das comunidades é o racismo ambiental. 

“O que está acontecendo, aqui, não aconteceria se fosse na região da Ponta Verde ou Jatiúca, assim como não aconteceu no Pinheiro e na parte mais nobre do Bebedouro e do Farol”, criticou.

Procurada, a Braskem alegou, via assessoria de imprensa, que “a região dos Flexais é constantemente monitorada e, segundo estudos técnicos, não apresenta movimentação de solo associada à subsidência” – ou seja, ao afundamento provocado pelas atividades de mineração da empresa. 

Insônia e pesadelos marcam as noites em bairro de Maceió

Sem dinheiro para comprar ou alugar outra casa, resta a mais de 800 famílias – como a de Joselma e Maria Cleide – se prepararem para o caso de a tragédia se concretizar. Os sentimentos de medo e tensão, além de insônia e problemas emocionais, são relatos constantes.

“Não como e não durmo direito. Perdi 22 quilos com esse terror todo. Tomo dois comprimidos de Rivotril e dois de Citalopram, mas não é suficiente. Estou tomando mais 15 gotas de Rivotril para poder dormir. Tem dias que você me vê acabada, como se eu estivesse murchando, porque o desespero é grande”, me contou Joselma em sua casa. 

Ela começou a notar as rachaduras na parede em 2019, mas percebeu que o problema se agravou a partir de 2022. Em dezembro de 2023, aconteceu o colapso da Mina 18 na Lagoa do Mundaú, bem próximo aos Flexais. 

O episódio provocou novas desocupações e aumentou o mapa da área de risco em Maceió, mas a comunidade onde Joselma mora ainda ficou de fora.

Há mais de um ano, a Defesa Civil de Maceió recomendou que Joselma mudasse de casa, porque a dela estava inabitável. O órgão alegou, segundo a moradora, que o problema não teria relação com o desastre ambiental provocado pela Braskem. 

As rachaduras na parede seriam consequência de material ruim usado na construção do imóvel. Já os buracos que apareceram no quintal seriam de fossas antigas, que ela nem sabia da existência.

A explicação até faria sentido, se o lugar para onde Joselma de mudou, em outubro de 2022, não tivesse começado a apresentar os mesmos problemas. A nova casa já tem rachaduras nas paredes, o piso de um quarto está afundando e apareceu um buraco no quintal. 

“Eu saí de um canto, porque não estava mais dormindo. Cada vez que eu olhava para a parede rachada, dizia: ‘Senhor, será que amanhã eu vou estar viva?’. Hoje, continua o mesmo medo”, lamentou. 

Medo, insônia e pesadelos também marcam as noites da mãe de Maria Cleide. Vitória de Lima mora nos Flexais há mais de 70 anos. Hoje, aos 81 e com dores nas pernas, ela se pergunta como vai correr, se a sua casa desabar. 

“Um dia desses, não dormi nada. Cochilei quando já eram 6h da manhã, mas sonhei que a cama estava balançando e acordei gritando pela minha filha. Quem não está com medo de morar aqui?”, refletiu.

A casa da idosa tem uma rachadura na cozinha, que ela já consertou “umas três vezes”. Por último, Vitória mandou derrubar toda a parede e botar ferro na estrutura, mas o problema voltou. 

É por isso que ela não acredita na explicação da Defesa Civil de Maceió. “Eu quero receber a indenização da Braskem e sair daqui. Não saí, porque não posso pagar aluguel com o salário mínimo que ganho”, me disse.

Casas em Maceió sofrem risco de desabamento, após retirada de sal-gema pela Braskem. Foto: Zazo

Moradores têm ‘perda de sentido de vida’

Além do risco de desabamento das casas, estudos socioeconômicos e antropológicos atestam que os moradores dos Flexais estão em completo isolamento, devido à desocupação dos bairros que havia ao redor. 

Não existem escolas, postos de saúde e comércios nas proximidades – os chamados equipamentos socioeconômicos. E serviços públicos, como segurança e transporte, são deficitários.

Embora a Defesa Civil de Maceió não admita que a região é afetada pelo afundamento do solo provocado pela mineração da Braskem, reconheceu o “ilhamento socioeconômico” das comunidades em um relatório de 2021.

O documento mostra uma “brusca redução de 40% dos equipamentos socioeconômicos disponíveis anteriormente em todo o Flexal” e diz que “os demais equipamentos estão sendo desativados paulatinamente”.

Por conta disso, o órgão recomendou “com urgência, a imediata inclusão desses territórios no programa de compensação financeira e apoio à realocação da Braskem”, pois as famílias “estão submetidas a condições de isolamento que determinará a incapacidade do exercício da sua vida em plenitude”.

Um laudo antropológico encomendado pelo Ministério Público Federal de Alagoas e realizado pelo antropólogo Ivan Soares Farias, em 2021, identificou que 74% dos moradores entrevistados preferiam ser realocados, 20% queriam que a área fosse revitalizada e 6% não tinham opinião formada. 

Segundo o antropólogo, a solução para os moradores dos Flexais teria que ser híbrida: realocação voluntária, para quem assim preferisse, e a elaboração de um projeto de revitalização, com implementação imediata de serviços e equipamentos públicos básicos.

Outro laudo antropológico, realizado em 2022 pelo professor da Universidade Estadual de Alagoas, Edson José de Gouveia Bezerra, criticou a ideia de solução híbrida

Ele apontou, entre outros fatores que levam à necessidade imediata de realocação, o sentimento de perda de sentido de vida pelos moradores; os problemas como depressão, pânico e suicídio; a separação de famílias; o isolamento socioafetivo e, sobretudo entre os idosos, o extremo medo de cair, chamado de de ptofobia, devido às rachaduras no chão.

Já em dezembro de 2023, após o colapso da Mina 18, membros do Conselho Nacional dos Direitos Humanos visitaram as comunidades e identificaram violações ao direito à saúde, especialmente da saúde mental, à moradia, à alimentação, ao transporte, à cidade, à segurança, ao meio ambiente, ao acesso à justiça e à informação.

Entre outras recomendações, está a “inclusão no plano de realocação e justas indenizações às comunidades em situação de ilhamento socioeconômico, como Flexais, Bom Parto, Marquês de Abrantes e Vila Saem”.

Famílias receberam R$ 25 mil de ‘indenização por ilhamento’ e nada mais

Contrariando o desejo da maioria dos moradores das comunidades, bem como os estudos de engenharia, antropológicos e socioeconômicos que indicavam a necessidade de realocação, a prefeitura de Maceió, o Ministério Público do Estado de Alagoas, o Ministério Público Federal, a Defensoria Pública da União e a Braskem assinaram um acordo em 2022 para o Projeto Integração Urbana e Desenvolvimento dos Flexais

A proposta é manter os moradores onde estão e desenvolver “medidas socioeconômicas para reverter a situação de ilhamento da região, pagamento de indenização para famílias, comerciantes e empresários e, ainda, transferência de verba ao município para a realização de ações adicionais”. 

Até agora, a única medida que se concretizou com sucesso foi o repasse de verba para a prefeitura. A gestão do prefeito de Maceió, João Henrique Caldas, do PL, recebeu R$ 1,7 bilhão da Braskem em 2023, ano pré-eleitoral. O prefeito está no primeiro mandato e pode disputar a reeleição.

O vantajoso acordo, que está sendo analisado pelo Supremo Tribunal Federal, quita a responsabilidade por todos os danos causados pela mineradora à capital e ainda transfere para a empresa os bens e prédios públicos que estão nos bairros desalojados. 

Aos moradores dos Flexais, a Braskem ofereceu R$ 25 mil de “indenização por ilhamento”. O valor não é pago por pessoa, mas por núcleo familiar. No caso dos comerciantes, eles podem receber um adicional de R$ 5 mil por atividade econômica comprovada.

Para Sarmento, membro da coordenação do Movimento Unificado das Vítimas da Braskem, a indenização é irrisória e não paga danos materiais, menos ainda morais. “Infelizmente, por causa da fragilidade financeira da maioria dos moradores, mais de 90% das famílias já aceitaram o valor”, disse. 

Cada vez que eu olhava para a parede rachada, dizia: ‘Senhor, será que amanhã eu vou estar viva?’

Por meio da assessoria de imprensa, a Braskem informou que a adesão ao Programa de Apoio Financeiro foi de 99,7%, totalizando R$ 46,9 milhões pagos aos moradores dos Flexais. 

Informou também que, “em razão dos impactos decorrentes da situação de ilhamento socioeconômico, efetuou, em novembro de 2022, o pagamento de R$ 64 milhões ao Município de Maceió para a execução de medidas adicionais na região”.

A Defensoria Pública do Estado de Alagoas está movendo uma Ação Civil Pública para rever o acordo e suspender a cláusula que garante a quitação das responsabilidades da Braskem com o pagamento das indenizações. Para o defensor público Ricardo Melro, R$ 25 mil deve ser apenas a quantia emergencial, não o total da indenização paga às famílias.

Prefeito de Maceió muda de posição após acordo com a Braskem

Enquanto a indenização paga às famílias dos Flexais não garante a reparação dos danos provocados pela mineração da Braskem, o valor de R$ 1,7 bilhão pago à prefeitura de Maceió foi o bastante para fazê-la mudar de posição quanto à proposta de realocação dos moradores.

Em março de 2022, a prefeitura se manifestou de forma contrária à Braskem, que defendia a revitalização das comunidades em vez da realocação dos moradores. 

O documento, enviado à empresa, foi assinado por Ronnie Reyner Teixeira Mota, coordenador-geral do Gabinete de Gestão Integrada para a Adoção de Medidas de Enfrentamento aos Impactos do Afundamento dos Bairros. 

O ofício destacava o desejo “quase unânime” da população de que a comunidade dos Flexais fosse “incluída no Programa de Compensação Financeira – PCF, de responsabilidade da Braskem S/A, de modo a garantir a realocação”.

Contraditoriamente, sete meses depois, em outubro de 2022, a prefeitura assinou o acordo para o Projeto Integração Urbana e Desenvolvimento dos Flexais. Em julho de 2023, recebeu a indenização bilionária da empresa.

O prefeito João Henrique Caldas ensaiou um discurso de defesa dos moradores dos Flexais após o colapso da Mina 18, mas ficou mesmo só no fala. 

Ele até assinou um documento se comprometendo a manifestar apoio oficial na ação movida pela Defensoria Pública contra o Projeto Integração Urbana e Desenvolvimento dos Flexais. Mais de um mês depois, contudo, nenhuma petição foi enviada à justiça pela prefeitura de Maceió. 

Procurada por meio da assessoria de imprensa, a prefeitura de Maceió não respondeu nossos questionamentos.

O apelo que a moradora Maria Cleide faz é para que as pessoas sejam vistas como seres humanos, tanto pelos órgãos públicos, quanto pela Braskem. “Somos um bairro simples, mas a nossa comunidade é feita de gente como eles. Eu não sei porque nos desprezam em todos os sentidos. Somos esquecidos”, lamentou.

Francisco Alves, morador dos Flexais há 50 anos, teme pelo que pode acontecer não apenas a si, mas também à mãe, de 91 anos. “Já pensou, na hora de uma correria? O que a gente vai fazer? Precisamos de uma solução para essa comunidade. São vidas que têm aqui”.

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