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Entenda por que a Tarifa Zero será uma tema central nas eleições municipais de 2024

Entenda como Tarifa Zero passou de sonho distante dos movimentos sociais a pauta acolhida pelo empresariado de transportes e por governos de direita.

Brasil já tem 90 cidades brasileiras com experiências ligadas à Tarifa Zero.

Tarifa zero já é acolhida por empresariado e governos de direita. Foto: Zanone Fraissat/Folhapress

A Tarifa Zero nos transportes públicos não é mais utopia. Hoje, temos 90 cidades com gratuidade universal nos sistemas de ônibus, além das que adotam o passe livre em algumas linhas ou horários, ou que ampliaram drasticamente o público beneficiado pelas gratuidades nos transportes. De forma inédita, o sonho de movimentos sociais anticapitalistas encontrou abrigo em gestões da direita e até no empresariado dos transportes. Agora, o tema tem tudo para tomar as eleições de 2024.

Nem sempre foi assim. Quando era prefeita de São Paulo pelo PT, na virada da década de 1980 para 1990, Luiza Erundina propôs a Tarifa Zero para a maior cidade da América Latina, após ser convencida pelo seu então secretário de Transportes Lúcio Gregori. 

Apesar de a proposta ter sido inviabilizada pela oposição, uma fagulha foi acesa. Logo depois, a pequena cidade de Conchas, no interior paulista, conseguiu se tornar o primeiro município brasileiro com gratuidade nos transportes públicos, ainda em 1992.

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Foram necessárias mais duas décadas para a Tarifa Zero ganhar o país, tendo como marco temporal as mobilizações de junho de 2013, quando o Movimento Passe Livre saiu às ruas. 

Paralelamente, a experiência mais exitosa no Brasil começava a nascer na cidade de Maricá, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, também governada pelo PT – primeiramente por Washington Quaquá e, atualmente, por Fabiano Horta. Com seus quase 200 mil habitantes, e após vencer uma guerra jurídica contra os empresários dos transportes, Maricá oferece à população os vermelhinhos, como são conhecidos por lá os ônibus sem tarifa.

As experiências de Tarifa Zero começaram a aumentar vertiginosamente após a pandemia.  Houve uma queda drástica do número de passageiros, somada à migração dos usuários para os aplicativos ou veículos próprios, e os sistemas de transporte coletivo começaram a colapsar, tanto nas pequenas e médias cidades quanto em algumas capitais. A ideia de abolir as catracas, então, deixou de parecer utopia e se tornou incontornável. 

A onda da Tarifa Zero

Segundo levantamento do pesquisador Daniel Santini, entre 2012 e 2020, o número de experiências de Tarifa Zero saiu de 16 para 33. E de lá para cá, uma explosão: em apenas três anos, mais de 50 cidades colocaram seus ônibus para rodar gratuitamente. E outras tantas, como São Paulo, Belo Horizonte, Cuiabá e Fortaleza, passaram a debater seriamente a medida.

Hoje, Maricá não é mais a maior cidade com Tarifa Zero, e os ônibus gratuitos ganharam muitas outras cores. A Região Metropolitana de Fortaleza, por exemplo, cujos municípios são em muitos casos geridos pela direita, se tornou um oásis dos ônibus sem catraca. 

Aquiraz, com aproximadamente 70 mil habitantes, e Euzébio, um pouco menor, ambas com prefeitos do Partido Liberal, permitiram que os passageiros andassem de ônibus sem pagar em 2018 e em 2011, respectivamente. 

Entretanto, o salto cearense veio mesmo em 2021, quando Caucaia, com mais de 360 mil habitantes e gerida pelo Partido Republicano da Ordem Social, se tornou a maior cidade brasileira com Tarifa Zero. Em Maracanaú, outra cidade vizinha à Fortaleza liderada pelo PSDB, mesmo não sendo considerada Tarifa Zero, aproximadamente 75% dos usuários já se deslocam sem pagar a tarifa de uma população de quase 230 mil habitantes. 

Todas essas experiências pressionam o governo do estado do Ceará, do PT, a adotar a gratuidade nos transportes metropolitanos, política já sancionada e batizada de “Vai e Vem Livre”.

Porém, no Nordeste, o Ceará ainda é um caso isolado. Nos interiores do Sul e Sudeste, especialmente de Minas Gerais e São Paulo, a cada semana uma nova experiência é registrada, sendo muitos raros os casos de vinculação ideológica com a Tarifa Zero nos seus termos originais. A cidade catarinense de Balneário Camboriú, longe de ser gerida e habitada por esquerdistas, adotou em 2023 a gratuidade nos ônibus para seus quase 140 mil habitantes. 

Ainda segundo Daniel Santini, das 90 experiências de Tarifa Zero registradas até o fechamento deste texto, apenas 14 foram implementadas por partidos de esquerda ou centro-esquerda. A grande maioria tem mesmo as cores da direita, somando 70 experiências, restando algumas para os partidos de centro. 

Nada disso deveria causar espanto. Na tese de doutorado defendida em 2019, ao comparar as experiências de Tarifa Zero no Brasil com as da França, àquela altura muito mais numerosas, mostrei que por lá também havia cidades governadas pela direita a implementar a gratuidade nos transportes e que os sentidos da política podem ser sociais, ambientais e econômicos. 

E são os motivos econômicos que tendem a prevalecer. A Tarifa Zero é melhor recebida quando usada para recuperar centros urbanos decadentes ou para reverter a crise do sistema de transporte, o que parece acontecer agora no Brasil.

A disputa pelo sentido

O campo progressista está começando a se rearticular para disputar o sentido da Tarifa Zero.

Em junho de 2023 foi criada a Coalizão Mobilidade Triplo Zero, de caráter nacional e que objetiva articular as pautas e organizações vinculadas ao cicloativismo (zero mortes no trânsito) com as bandeiras e movimentos do direito ao transporte (Tarifa Zero) e os movimentos ambientalistas, que defendem a zero emissões de poluentes. 

Esse conjunto de organizações e movimentos visa instituir uma nova legislação para a mobilidade urbana, tendo por base a criação do Sistema Único de Mobilidade.

Outro marco foi o lançamento da campanha Busão 0800 em Belo Horizonte, cidade onde a sociedade civil mais pressiona a prefeitura para adotar a Tarifa Zero. O mote é a instituição de uma taxa a ser paga por todas as entidades empregadoras, isentando as micro e pequenas empresas com até nove funcionários, substituindo o ultrapassado vale-transporte.

E no final de novembro de 2023, o ex-prefeito de Maricá, Washington Quaquá, agora ocupando uma das cadeiras do Congresso Nacional, criou a Frente Parlamentar em Defesa da Tarifa Zero, provavelmente uma tentativa de devolver à esquerda o protagonismo da Tarifa Zero. Um dos seus aliados nessa empreitada é o deputado Jilmar Tatto, também do PT, um político historicamente vinculado aos transportes públicos.

A grande maioria das experiências de Tarifa Zero têm as cores da direita. Em São Paulo, o prefeito Ricardo Nunes deu um passo nessa direção: agora, os ônibus da capital paulista rodam de graça aos domingos. Foto: Phillippe Watanabe/Folhapress

Eleições municipais de 2024

Tudo indica que São Paulo será mesmo a principal arena da disputa pelo sentido da política de gratuidade nos transportes. Mais de 30 anos após a proposta ter sido criada por Lúcio Gregori e abraçada por Luiza Erundina, o atual prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, do MDB, passou a prometer à população o fim das catracas caso seja reeleito, mesmo sem o apoio de Tarcísio de Freitas, do Republicanos, atual governador do estado de São Paulo e aliado político. E já deu um passo nessa direção: desde 17 de dezembro, os ônibus da capital paulista rodam de graça aos domingos.

Inevitavelmente, tanto Nunes quanto seus adversários – em especial Guilherme Boulos, do Psol – , terão de destrinchar frente ao eleitorado como pretendem viabilizar a medida.

Como a crise dos transportes coletivos não é um privilégio paulistano, espera-se que, nem que seja por contágio, candidatos de direita e de esquerda passem a defender a gratuidade nos transportes. Isso se muitos dos candidatos à reeleição não implementarem em seus municípios a Tarifa Zero às pressas para terem vantagem na campanha.

Essa confluência de interesses que deságuam na Tarifa Zero, entretanto, só pode dar uma resposta precária e temporária ao problema maior, que é como os transportes públicos em particular, e a mobilidade urbana no geral, são geridos e financiados no país. 

Um dos grandes problemas do transporte público no Brasil é a falta de articulação. Enquanto sistemas de ônibus são pensados de um jeito, geralmente pelas prefeituras, os sistemas metroviários e ferroviários, em regra de responsabilidade dos governos estaduais, seguem por outros caminhos. Por sua vez, o governo federal apresenta sua própria política, quando tem alguma, de investimentos em infraestrutura associada à mobilidade urbana. E, no meio desse desencontro, estão as cidades brasileiras.

De certa forma, o foco municipalista que ainda dita o tom da Tarifa Zero permite que governos estaduais e governo federal continuem se desresponsabilizando. 

Prometido para 2024, o novo salto do número de experiências bem-sucedidas, tanto do ponto de vista social quanto político, deve mudar mais uma vez o cenário, provavelmente abrindo espaço para o debate sobre o Sistema Único de Mobilidade.

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