Dona Marli Alves estava desossando um frango na cozinha de sua casa, em São Roque, cidade do interior paulista, para fazer uma doação à igreja católica. Era antevéspera de Ano Novo e ela comemoraria a chegada de 2022 com o marido, uma de suas filhas e seu neto. Sua outra filha, Milena Eduarda de Paula Leocádio, estava internada em uma comunidade terapêutica evangélica na cidade de Cajamar, a 73 quilômetros de distância. Naquele 30 de dezembro, fazia exatos 33 dias que mãe e filha não se viam.
O telefone tocou e Kauê Dias Cercelo, supervisor do Centro de Assistência Social e Apoio Especializado Esdras, onde Milena estava internada, disse do outro lado da linha que Dona Marli precisava correr para o hospital. Milena, ele alardeava, havia sido internada por uma tentativa de suicídio. “Como que ela tentou um suicídio se eu deixei ela para vocês cuidarem?”, nos conta a mãe, relembrando o diálogo daquele fatídico dia.
Quando Dona Marli chegou, o corpo de sua filha já estava no necrotério. Documentos médicos aos quais o Intercept Brasil teve acesso mostram que a paciente nem foi internada – ela já chegou sem vida à unidade médica. O laudo do Instituto Médico Legal apontaria que Milena morreu por “insuficiência respiratória e intoxicação medicamentosa” – foram encontradas oito substâncias diferentes em seu sangue.
Ela também tinha marcas de agressão no rosto, cabeça, pescoço, punhos e pernas, conforme também indicaria o laudo do IML. Milena morreu com 22 anos. Ela havia sido internada para tratar o vício com álcool e cocaína. Deixou um filho pequeno, hoje com 7 anos, que passou a ser criado por Dona Marli.
Embora tenha morrido de forma violenta, a morte de Milena não consta em nenhum registro da secretaria de Saúde de São Paulo como tendo ocorrido dentro de uma comunidade terapêutica. Tampouco está documentada em algum arquivo do Ministério da Saúde, do governo federal.
Mortes em comunidades terapêuticas não têm registro
O caso dela não é o único. O Intercept pediu ao governo federal, via Lei de Acesso à Informação, o número de mortes ocorridas dentro de comunidades terapêuticas em todo país. A resposta dada pela pasta é que essa informação é inexistente. Fizemos o mesmo pedido à Secretaria de Saúde de São Paulo, que nem sequer respondeu ao nosso pedido.
As comunidades terapêuticas são reguladas pela Anvisa, órgão vinculado ao Ministério da Saúde. Para funcionar legalmente, precisam de alvará e licenciamento sanitário do município e do governo do estado – no caso de São Paulo, o licenciamento é feito pelo Centro de Vigilância Sanitária, vinculado à secretaria estadual de Saúde. Muitas dessas comunidades terapêuticas recebem recursos públicos.
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Entre 2017 e 2020, houve um investimento de R$ 560 milhões para financiar vagas de internação em 593 centros terapêuticos no país. A maior parte, R$ 300 milhões, foi bancada pelo governo federal. Atualmente, o governo Lula financia quase 15 mil vagas em comunidades terapêuticas. Só esse ano, já foram repassados mais de R$ 50 milhões do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome.
Apesar das mortes dentro desses espaços não serem catalogadas pelo poder público, a imprensa vem seguidamente reportando casos dessa natureza em vários lugares do Brasil – sejam em centros devidamente regularizados ou clandestinos. Só nos últimos cinco anos, encontramos 20 registros de mortes em comunidades terapêuticas em seis estados diferentes: Alagoas, Minas Gerais, Goiás, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo.
No Rio Grande do Sul, foram 11 mortes de uma só vez, após um incêndio dentro de uma comunidade terapêutica irregular na cidade de Carazinho. Outras três pessoas ficaram feridas. Em Santa Catarina, encontramos mais dois casos. Em São Paulo, também são dois registros – sem contar a morte de Milena. Nós procuramos diretamente a secretaria de saúde de cada um destes estados. Em nenhuma delas, havia registros dessas mortes ocorridas em comunidades terapêuticas.
Eu mandei maquiar a minha filha. Paguei para tirar as marcas. Mas nem a maquiagem escondeu cinco dedos no pescoço dela.
Em 20 de outubro, o Ministério do Desenvolvimento do governo Lula publicou uma portaria estabelecendo regras de fiscalização em comunidades terapêuticas. O texto permite que as fiscalizações possam ser feitas por terceiros, desde que contratados por órgãos integrantes do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas. Nessa portaria, as vistorias podem ser feitas até à distância, desde que sigam um questionário específico. Deputados federais do Psol apresentaram um Projeto de Decreto Legislativo para suspender a portaria por entender que a mesma afrouxa as regras de fiscalização nesses espaços.
Isso porque, além das mortes, há inúmeras denúncias também de maus tratos, agressões e torturas ocorridas nestes centros. Milena, por exemplo, estava internada no mesmo local que o Ministério Público de São Paulo fecharia mais de um ano depois, em janeiro de 2023. Depois de denúncias anônimas, o MPSP e a Polícia Civil foram ao local e encontraram 75 internas em situação degradante, sofrendo com agressão física, tortura, intolerância religiosa e sendo medicadas sem prescrição médica.
O Intercept mostrou como era a vida das internas no Esdras e todos os horrores que sofreram durante a internação na primeira reportagem da série ‘Máquina de Loucos’. Os responsáveis pelo centro foram presos em flagrante durante a batida policial. Depois, a prisão foi convertida em preventiva.
Milena teria sido espancada dentro de centro terapêutico antes de morrer
O corpo de Milena foi transferido para São Roque e foi sepultado em sua cidade natal no primeiro dia do ano de 2022. “Eu mandei maquiar a minha filha. Paguei para tirar as marcas. Mas nem a maquiagem escondeu cinco dedos no pescoço dela. Todos viram no velório o quão machucada ela estava”, contou Dona Marli, às lágrimas.
Três dias após sepultar sua filha, Dona Marli conta ter recebido uma ligação de Talita Assunção de Paula Santana, uma das sócias do Esdras. “Ela morreu de infarto mesmo, né?”, Santana teria perguntado ao telefone. Dona Marli respondeu não saber, mas compartilhou suas suspeitas sobre o possível assassinato da filha. “Aqui não tem maus-tratos”, a dona da clínica teria respondido, na sequência.
Talita Santana foi uma das presas em flagrante durante a operação do MPSP. Ela segue detida desde então, assim como Marcos Gaudêncio Moglia, outro responsável pelo Esdras, mas que usava o nome da esposa para formar a sociedade.
Em sua denúncia, o Ministério Público de São Paulo é enfático em afirmar que Talita Santana e Marcos Moglia montaram uma “organização criminosa”, com o intuito de obter “vantagem econômica”, e os funcionários do centro, orientados pelos donos, atuavam de forma a manter o “terror interno” e a “lucratividade do negócio”.
Um boletim de ocorrência foi feito no mesmo dia da morte de Milena. Seu corpo foi encaminhado ao Instituto Médico Legal para perícia. Foram realizadas análises das marcas, busca por substâncias no sangue e um espermograma, utilizado para detecção de estupro – não foi identificada violência sexual.
No sangue da paciente foram encontradas oito substâncias diferentes. Milena tomava dois remédios controlados regularmente: clorpromazina, indicado para tratamento de psicoses e controle de ansiedade, e risperidona, utilizado em transtornos mentais como a bipolaridade. O centro Esdras sabia do uso da substância e a dosagem correta que deveria ser aplicada na paciente – a própria Dona Marli mandava os medicamentos via Sedex para a filha.
O exame necroscópico encontrou a presença de apenas um dos medicamentos que Milena deveria tomar: o clorpromazina. Também foram detectados haloperidol, prometazina, levomepromazina, diazepam e clonazepam, além de nordiazepam e 7-amino clonazepam – metabólitos dos últimos dois medicamentos, respectivamente.
Das drogas encontradas, três são antipsicóticos, dois são benzodiazepínicos e um é antialérgico. Ouvimos um psiquiatra que relatou que a lista de medicamentos encontrados demonstra um coquetel de sedação. Os antipsicóticos causam bastante sonolência, efeito também provocado pelo antialérgico. Já os benzodiazepínicos atuam na mesma parte do cérebro afetada pelo álcool – e, em doses mais altas, podem provocar insuficiência respiratória.
As pacientes do centro Esdras ouvidas pelo Intercept disseram que essa mistura de medicamentos era conhecida como “danoninho”. Os medicamentos, dizem, eram administrados de forma punitivista, como castigo às internas, pelo supervisor Kauê Cercelo. “O Kauê misturava com um pouco de água, e obrigava qualquer pessoa a tomar, desde que não seguisse as regras impostas por eles”, relembrou Jackeline Lopes, ex-paciente. Cercelo não possui qualquer certificação médica.
O laudo do IML apontou que a morte de Milena ocorreu “por quadro de depressão respiratória, após administração conjunta de drogas neurolépticas e depressoras do sistema nervoso central”. Ao responder aos requisitos médico-legais para afirmar a morte, o relatório do IML é direto: Milena morreu por “insuficiência respiratória e intoxicação medicamentosa”.
Quando foi morta, a filha de Dona Marli estava internada pela segunda vez no centro Esdras. Na primeira vez, em julho de 2021, a jovem ficou por 45 dias e foi retirada pelos seus pais. Depois disso, ela passou por outras comunidades terapêuticas, onde permaneceu por pouco tempo até voltar para sua casa. Em novembro de 2021, Milena foi novamente internada e o lugar escolhido foi novamente o centro Esdras.
Uma ex-funcionária do centro entrou em contato meses depois da morte de Milena para pedir perdão a Dona Marli. Ela contou ter sido a primeira pessoa a encontrar Milena, já morta, dentro do quarto. O Intercept teve acesso ao relato dessa ex-funcionária por meio de um áudio gravado no WhatsApp. Segundo ela, Milena estaria amarrada, machucada e com uma meia dentro da boca.
A funcionária diz ter gritado e alertado Kauê Cercelo. Ele entrou no quarto e gritou para Milena parar de fingir, enquanto chutava a cabeça dela. Somente após as agressões e a falta de resposta de Milena, Cercelo a teria levado ao hospital.
Dona Marli soube depois, por um enfermeiro do Hospital Municipal de Cajamar, que Cercelo chegou na unidade de saúde “fazendo um teatro”, dizendo que Milena “estava com uma respiração fraquinha” e pedindo ajuda médica. No entanto, segundo o próprio enfermeiro, ela já estava morta – o que seria constatado pelos médicos momentos depois. Hoje, o próprio funcionário é testemunha de Dona Marli no processo que investiga a morte de sua filha.
Investigação da morte ficou um ano parada na polícia de Cajamar
O Boletim de Ocorrência registrado por Marli na noite da morte de sua filha ficou parado no 1º Distrito Policial de Cajamar por um ano. Foi só em janeiro de 2023 que o delegado responsável pelo caso, Odair Leitão Rocha, transformou o registro em inquérito policial.
Não existe um prazo formal para a instauração do inquérito, estando a abertura da investigação a cargo do delegado responsável – com exceção apenas a casos de tráfico de pessoas. Segundo um perito criminal ouvido pelo Intercept, porém, a demora de um ano para emissão do laudo necroscópico e o acesso da delegacia ao mesmo documento não são procedimentos comuns.
O primeiro ouvido na delegacia foi o supervisor Kauê Cercelo. Nós tivemos acesso à documentação. Cercelo foi demitido por justa causa do Esdras um dia antes do seu depoimento à Polícia Civil, mas compareceu ao distrito policial com documentos internos da primeira passagem de Milena pelo centro. Ele alegou que “a paciente passou mal e foi socorrida ao Pronto Socorro do Hospital de Cajamar, onde foi internada e posteriormente faleceu”.
Questionado sobre as lesões e medicações encontradas no corpo de Milena, Cercelo disse ter tido acesso ao laudo necroscópico – que a própria Polícia Civil havia acessado apenas um dia antes do depoimento –, e que “as lesões apresentadas na vítima não tiveram relação com o Esdras e, possivelmente, com a instituição de origem”, se referindo à comunidade terapêutica Fator Humano, de Sorocaba, onde Milena estava internada anteriormente.
O argumento já havia sido utilizado por ele na noite da morte de Milena, e consta na ficha médica do hospital que recebeu a jovem. Em relação às oito substâncias identificadas no laudo do IML, Cercelo disse que “tais medicamentos não foram ministrados pela Clínica, exceto o medicamento Clorpromazina”. Novamente, ele responsabiliza o centro de Sorocaba pela aplicação exagerada das substâncias.
Para o delegado Rocha, foi o suficiente. “Nada mais disse nem lhe foi perguntado”, encerra o depoimento. Dois dias depois, o delegado pediu que os autos fossem remetidos à Sorocaba, numa tentativa de transferir a investigação da morte para outra cidade. O pedido foi negado pela justiça, após pedido do MP paulista.
Considerando que Milena deixou a clínica de Sorocaba em 25 de novembro de 2021, e seguindo a lógica do depoimento de Cercelo, as substâncias identificadas no exame estavam em seu organismo há pelo menos 36 dias quando ela morreu. O psiquiatra ouvido pelo Intercept é cauteloso quanto à possibilidade dos medicamentos estarem no organismo de Milena por mais de um mês, mas afirma que a chance é mínima.
Todos os medicamentos ingeridos possuem meia-vida entre dez e 100 horas – incluindo os metabólitos. Isso significa que, se tomados em 25 de novembro, apenas 50% do nível de detecção dos medicamentos estaria disponível no sangue de Milena quatro dias depois. Seguindo esse cálculo, as medicações já não seriam detectáveis a partir do dia 5 de dezembro, 25 dias antes de sua morte. A única exceção é o antipsicótico clorpromazina, que ainda poderia ser detectado por algumas semanas.
Cercelo não prestou novo depoimento e segue até hoje sem ser localizado pela justiça. Ele também foi denunciado pelo Ministério Público por fazer parte da organização criminosa que era tocada na empresa.
A Polícia Civil teve 25 dias para convocar os responsáveis pelo centro Esdras para depor, considerando o dia em que foi aberto o inquérito até o dia em que a clínica foi fechada pelo MPSP. Nenhum dos envolvidos foi ouvido. O espaço também nunca foi visitado. Apesar do MPSP ter constatado que existiam muitas câmeras de vigilância no local, nenhuma imagem delas foi buscada ou anexada ao inquérito.
Em 11 de agosto, sem concluir as investigações, a Polícia Civil de Cajamar recebeu mais 90 dias de prazo, que se encerrou em 11 de novembro deste ano. Hoje, 12 meses após o início das investigações, o inquérito ainda não foi concluído. Procuramos a Polícia Civil, mas não houve retorno aos nossos questionamentos. Também tentamos contato com os advogados de Talita Santana e Marcos Moglia, sócios do centro Esdras. O primeiro não respondeu nossos contatos e o segundo não foi localizado.
Espancamento em comunidade terapêutica de São Paulo
O caso de Milena é trágico, mas não único. Em 26 de setembro de 2023, uma comunidade terapêutica exclusiva para homens foi fechada em Embu-Guaçu, município de São Paulo, após um paciente ter sido morto por cinco funcionários.
Onésio Ribeiro Pereira Júnior tinha 38 anos e estava internado na Kairós Prime desde agosto. Testemunhas ouvidas pela reportagem da TV Globo afirmam que ele foi levado a uma sala e espancado, por cerca de três horas, com tacos de sinuca e pedaços de madeira. O motivo da agressão teria sido porque os funcionários teriam descoberto que ele planejava fugir.
Ele foi colocado em um carro e levado a uma Unidade Mista de Saúde de Embu-Guaçu, mas médicos ouvidos por guardas civis disseram que ele deu entrada no hospital já sem vida. Onésio tinha marcas de violência pelo corpo.
As testemunhas ouvidas pela Globo disseram que o local onde Onésio foi espancado foi lavado em uma tentativa de dificultar uma possível perícia policial. As câmeras de vigilância foram retiradas do espaço onde ocorreu o espancamento. Elas também relataram que agressões eram frequentes na clínica. “Eles simplesmente espancavam mesmo. Eu apanhei também, assim que cheguei, porque reclamei da comida”, disse à reportagem da TV Globo uma delas.
Nós tentamos falar com a mãe de Onésio, mas ela disse que não tinha condições de dar entrevista. À Rede Globo, os familiares de Onésio disseram que, em ligação, os responsáveis pela clínica teriam dito para eles que o interno “estava passando mal e foi levado para o hospital”, mas ao chegar no hospital o médico que recebeu o corpo disse ao familiar que Onésio “estava morto há mais de uma hora”.
Os cinco funcionários envolvidos foram presos em flagrante e o caso foi registrado como homicídio, sequestro, cárcere privado e tortura. A clínica, que funcionava sem alvará, foi fechada no dia seguinte pela prefeitura de Embu-Guaçu. A Polícia Civil diz investigar a responsabilidade criminal do dono da clínica.
As autoridades parecem ter agido rapidamente, mas essa não era a primeira denúncia contra a Kairós Prime. Em março deste ano, seis meses antes do homicídio, três outros funcionários da clínica foram presos após um interno de 27 anos ser encontrado morto e com marcas de agressão. Nós tentamos contato com a Kairós Prime pelo telefone que consta no registro da Receita Federal, mas não fomos atendidos. Ueder Santos de Melo, dono da Kairós Prime, disse ao G1 logo após a morte de Onésio que agressões não fazem parte da política da clínica e que, como gestor, nunca tinha visto isso acontecer – mesmo com duas mortes violentas em seis meses. Melo foi preso preventivamente em 19 de outubro, por indícios de responsabilidade na morte de Onésio. Com ele, foram apreendidos armamentos com registro de CAC.
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