Cecília Olliveira

Governo Lula ignora soluções de segurança e dá poder aos militares

A crise da segurança pública se tornou uma crise de imagem para Lula. Conversamos com cinco especialistas que apontam soluções ignoradas pelo governo federal.

Governo Lula ignora soluções de segurança e dá poder aos militares

O Brasil vive uma crise de segurança pública praticamente constante, com picos ainda piores. Foi o caso de 2017 e 2018, com as decapitações nos presídios e, agora, com o bate-cabeça no Ministério da Justiça e Segurança Pública. A crise terminou no decreto da já conhecida e ineficaz Garantia da Lei e Ordem no Rio de Janeiro e na Bahia. A medida foi tomada no início de novembro – menos de uma semana depois de o presidente Lula dizer que não a decretaria

A adoção de medidas comprovadamente ineficazes para a segurança promove mortes e pode ser o combustível ideal para a direita nas próximas eleições. Talvez o governo até saiba o que isso representa, já que foi decretada uma “GLO envergonhada”, válida apenas nas áreas federais dos estados, como os aeroportos e rodovias.

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Mesmo assim, por algum motivo – certamente nada baseado em evidências ou dados –,Lula foi convencido pelos ministros da Justiça, Flávio Dino; da Casa Civil, Rui Costa; e da Defesa, José Múcio, de que a GLO teria algum resultado diferente dos de antes.

Sabemos que Flávio Dino está cotado para o Supremo Tribunal Federal e seu pupilo, o secretário-executivo do ministério, Ricardo Cappelli, está de olho na vaga. Rui Costa é um “exímio” conhecedor da segurança pública, que após chamar uma chacina policial de “gol” da Polícia Militar, pavimentou o caminho para que a Bahia tomasse do Rio o posto de estado onde a polícia mais mata no país. E Múcio, bem… “subestimou” os riscos da invasão de 8 de janeiro e gerou um dos primeiros desgastes da gestão Lula. 

As conexões aqui são interessantes: Cappelli foi duramente criticado por defender ações indefensáveis da polícia baiana, cujas operações, só em setembro, acabaram em cinco chacinas – foram 31 assassinatos no total. E a escolha do novo ministro da Justiça, caso Dino chegue ao STF, passaria pelas mãos de Rui Costa, ex-governador da Bahia.

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O presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante cerimônia comemorativa do Dia do Exército, no Quartel-General do Exército, em Brasília.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Crise da segurança é uma crise de imagem para Lula

Diante dessa movimentação futura, o hoje fica ainda mais prejudicado. A grande exposição de Dino e Cappelli – que não saem dos jornais e postam tanto sobre operações policiais quanto os perfis institucionais das polícias –, acabaram por colocar no colo do governo federal a responsabilidade pelo caos na segurança, aliviando muito a responsabilidade dos governadores. 

A crise da segurança se tornou também uma crise de imagem para Lula, e governos de esquerda que carregam a pecha – não sem razão – de não saber lidar com o tema.

Somado a tudo isso, o decreto da GLO é visto como uma ação que mais uma vez empodera militares. Coloca-os no centro das políticas de segurança do país logo depois dos atentados em Brasília, depois de um arsenal bélico ser roubado por militares em São Paulo e sem que eles jamais tenham gerado resultados dignos de nota (ao menos positiva) antes. 

Mas o fato é que a segurança pública precisa de soluções – urgentes e de médio e longo prazo. Temos mais de meia centena de facções em ação no Brasil, um sistema penitenciário que é berço desses grupos e índices de homicídios de deixar qualquer país em guerra declarada no chinelo. Então, a pergunta que fica é: segurança tem jeito?

Conversei com cinco especialistas de diferentes áreas para que cada um me apontasse três medidas essenciais e prioritárias para mudar a segurança pública em estados como o Rio e Bahia, além do Brasil como um todo.

Aqui o que eles disseram. 

Construção de um Plano Nacional de Esclarecimento de Homicídios

Hoje o Brasil não esclarece nem 15% dos nossos homicídios, e investigamos só 37%. Quer dizer, 63% dos homicídios não são sequer investigados e nove estados não sabem nem dizer quantos eles investigam. Os homicídios não investigados são, claro, os dos operadores baixos dos mercados ilegais. Eles estão se matando, e a polícia os está matando nas periferias. Esses casos não são investigados porque se pensa que é bandido matando bandido, e que isso é bom. O que se perde, quando se deixa a facção investigar homicídio, é a soberania estatal. 

Controle externo e interno das polícias

Não é só câmera corporal. Existem também muitas iniciativas de controle externo necessárias para os casos de corrupção, associação cotidiana a criminosos e proteção aos policiais. Transparência com os orçamentos, relação promíscua e ilegal com a segurança privada, etc. 

É preciso que o estado retome o poder sobre as suas forças de segurança, hoje controladas pelo militarismo. O poder das polícias hoje no Brasil é muito superior ao das secretarias de Segurança. O vetor do poder está invertido. Você não pode ter um grupo armado extremamente politizado e que não é trocado, não é submetido a eleição, fala o que quer e, sobretudo, faz o que quer, inclusive matar a torto e a direito. 

Mudança do sistema prisional e das políticas de drogas

O modelo paulista foi seguido em praticamente todos os estados do Brasil. É basicamente entregar meninos jovens e paupérrimos na mão das facções que controlam o sistema penitenciário, em todo o território nacional. Entregar um exército ávido por pertencimento a grupos que instrumentalizam essa vontade de pertencimento, que formam essa molecada no crime. 

É preciso uma diminuição muito importante do contingente de pessoas presas – penas alternativas, justiça restaurativa, etc. Que fiquem presas apenas pessoas que cometeram crimes violentos e que representam perigo se estiverem na rua. Isso não é a realidade da enorme maioria das prisões hoje. E há gente muito violenta que não está contida. Eu tenho falado sempre de outro ponto – a regulação de mercados ilegais. 

Elucidação de crimes e delitos

É preciso estabelecer e colocar em prática metodologias de parâmetros de eficiência, eficácia e efetividade das investigações iniciadas no âmbito das polícias; fixar metas de elucidação; garantir transparência desses indicadores; e responsabilizar gestores policiais que não se mostrem aptos. Tal mensuração deve se aplicar também, e ainda com maior destaque, aos delitos praticados pelos próprios policiais, inclusive quando houver indícios de conivência de comandantes e delegados com delitos. 

Melhoria no atendimento à população

Deve haver otimização dos recursos e rotinas, utilizando parâmetros legais já existentes e tecnologia da informação para que demandas de agentes de segurança que se deparam com delitos leves e de autoria conhecida nas ruas possam encaminhar tais ações ao Judiciário, sem a necessidade de procedimentos cartorários em quaisquer instâncias policiais.

Responsabilização de gestores policiais pela perda ou afetação de vidas em operações

Agentes de segurança envolvidos em mortes durante operações que sejam, após investigações, identificadas como injustificadas, devem ser responsabilizados. Embora isso possa não bastar para romper o uso irresponsável de aparatos policiais em ações que ao final tendem a buscar legitimidade no que não é legitimável, seja pela perda de vida de inocentes (civis e policiais), seja pela execução sumária de supostos marginais da lei.

Reestruturação do sistema da segurança pública e penitenciário 

É necessário um grande diagnóstico do funcionamento dos sistemas, para que sejam identificados agentes públicos envolvidos em corrupção e ligados ao crime, levando em consideração as estruturas de investigação e de atuação policial. É necessário investir em carreiras com autonomia e proteção para que agentes que não estejam envolvidos em esquemas tenham garantia de trabalho. Não basta só a desmilitarização. É preciso reconfigurar toda a estrutura de segurança pública para que ela proteja a vida e não garanta a morte – que é o que é hoje. É necessário, então, uma aproximação dessa estrutura policial com a população, movimentos sociais, grupos organizados. 

Abolição da guerra às drogas

Essa guerra tem o efeito inverso. Ela potencializa a droga, potencializa o poder da estrutura corrupta, da estrutura que assassina. Então você tem que efetivamente abolir por completo a guerra à droga e descriminalizar seu uso. Seria um movimento essencial.

Proteção da estrutura policial contra interferências

Temos que evitar que as polícias sejam manipuladas, utilizadas por grupos políticos que vão fazer uso da violência e do controle territorial para suborno. Que vão se aproveitar do aparato bélico que executa e extermina para ganhar voto e se projetar politicamente. É necessário um trabalho de separação desses interesses. 

Não que não existam política e interesses políticos no próprio funcionamento da polícia ou isso como um objetivo a ser alcançado. Não é isso, é colocar como objetivo fundamental do funcionamento político da polícia sua não captura por estruturas de poder que querem se perpetuar. Teria que trazer para dentro dessa estrutura da organização da segurança pública pessoas que não estivessem comprometidas com a estrutura de poder. Talvez um funcionamento mais controlado por corregedorias e ouvidorias, uma entrada autônoma da estrutura social. Devemos buscar uma permanente construção institucional que quebre com a cultura dominante e enseje novas perspectivas e novos pensamentos. Romper com a hegemonia política de grupos já encastelados nessas estruturas e que têm perfeito domínio das instituições.

Combate ao racismo institucional

Esta medida é essencial para conter o extermínio e o encarceramento da população preta e periférica. Os números da violência e letalidade policial no estado do Rio de Janeiro são assustadores. De janeiro de 2016 a março de 2017, a polícia do Rio] matou 1.227 pessoas, sendo que 90% eram negras. A morte a partir da cor não é exclusividade da polícia do Rio. Em São Paulo, entre 2015 e 2016, a polícia matou três vezes mais negros do que brancos. 

Por outro lado, entre os policiais mortos, nesse mesmo período, também encontramos uma maioria negra. O que se vê é a ascensão de uma política de extermínio. Qualquer política de segurança que pretenda mudar efetivamente esse cenário, deve reconhecer a humanidade e o dever de “proteger e servir” a todas as pessoas, inclusive as pretas, pobres e periféricas. Não pode ser uma política do inimigo. 

Rever imediatamente a política de “guerras às drogas”

este é o grande mecanismo de prisão e extermínio e produção de violência; 

Promoção de uma polícia cidadã

É preciso construir uma polícia que tenha como foco não mais a ordem pública por meio da “falsa proteção” do patrimônio e de parte da população. Mas sim para mirar com eficiência um policiamento que prestigie a convivência e a cidadania, a prevenção e controle da violência e a valorização do policial como cidadão. 

Reforma das polícias

O Brasil errou ao engessar, na Constituição de 1988, o modelo baseado na divisão entre polícia civil e militar, herdado da ditadura. Com isso, ficamos reféns dos legados organizacionais e corporativos dessas forças, bem como desprovidos de melhores instrumentos de integração entre investigação e atividade ostensiva. A reforma entrou na agenda em 2002, no Plano Nacional de Segurança Pública produzido pelo Instituto Cidadania, sob liderança de Luiz Eduardo Soares, mas saiu rapidamente, até onde consta, sob a avaliação do governo Lula de que seria mexer num vespeiro. 

Nesse vácuo, alguns governos estaduais conseguiram superar os limites inerentes ao nosso modelo. Se não bastasse, e perigosamente, estamos caminhando para reforçar ainda mais alguns problemas estruturais das forças, com a proposta de lei orgânica da PM que tramita hoje na Câmara. Também estamos assistindo a uma inaceitável politização das polícias – em alguns estados, elas recusam até mesmo a obediência aos governadores. A agenda da reforma tem que ser, portanto, retomada, e mais por razões defensivas que ofensivas. 

Informação e inteligência

Vivemos uma revolução tecnológica que alterou radicalmente a dinâmica na prestação de diversos serviços públicos e privados em áreas que vão de bancos às filas do INSS. Porém, a produção e análise de dados na segurança pública segue uma lógica fragmentada e cartorial. 

O governo federal deu início à construção do INFOPEN há quase 20 anos, mas até hoje não temos registros integrados de entrada e saída de presos no país em tempo real. A Lei do Sistema Único de Segurança Pública, o SUSP, ordenou a criação do SINESP, mas até agora não há progresso na área. A coleta e integração de dados de segurança, justiça e sistema penitenciário permitiria sofisticar o planejamento das mais diversas intervenções do estado na segurança, seja na prevenção, seja na repressão. 

Melhoria da política penitenciária

O aumento da violência no país se deve muito à falta de boas políticas penitenciárias. O encarceramento em massa, associado ao abandono dos presídios, foi o que gerou facções como o PCC e o que permitiu que elas seguissem recrutando novos membros com sucesso. 

Nos últimos anos, presídios se integraram mais ao aparato da segurança, porém sob o registro da repressão, e não do que a Lei de Execução Penal vislumbrava como a “reabilitação” de presos. Os serviços de custódia prisional ganharam status de “polícia penal” e mudanças legislativas restringiram a progressão de regime. E não revertemos a trajetória de encarceramento em massa. Ao contrário. 
Agora há uma oportunidade: o STF acaba de reconhecer o “estado de coisas inconstitucional” do sistema penitenciário nacional e de obrigar o governo a elaborar um plano para a superação dos problemas. Será fundamental que esse plano contemple medidas de desencarceramento, além da promoção dos direitos da população prisional, tais como a saúde, a educação, o trabalho e a convivência familiar. Do contrário, o Brasil colherá apenas mais violência e criminalidade.

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