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Como a politização do Banco Central mexe com o seu bolso

Sim, Roberto Campos Neto tem relação mal explicada com o bolsonarismo. Mas quem paga o preço da briga de Lula com ele é quem menos pode.

Como a politização do Banco Central mexe com o seu bolso

Recentemente, a revista Piauí revelou detalhes de uma já sabida colaboração do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, com a campanha de reeleição do ex-presidente Jair Bolsonaro. Neto, que assumiu a presidência do BC por indicação de Bolsonaro em fevereiro de 2019, utilizou modelos matemáticos produzidos pela instituição para informar o ex-presidente de suas perspectivas eleitorais – uma postura institucionalmente muito problemática, em especial dado o atual status de independência da instituição. 

A reportagem deu fôlego adicional a um fenômeno que tem marcado a política econômica do Brasil desde a posse de Lula tomou: a politização do Banco Central. Se, por um lado, Campos Neto manteve atuação suspeita neste sentido, por outro, o grupo político de Lula tem adotado uma rotina de críticas sistemáticas e coordenadas ao economista, o consolidando como o principal adversário do governo do ponto de vista da narrativa econômica. Segundo a tese emplacada por Lula e seus aliados, a economia brasileira tem crescido pouco em função das elevadas taxas de juros mantidas pelo Banco Central nos últimos meses.

Esse cenário enseja um debate importante: afinal, qual seria o papel das políticas do Banco Central – institucionalmente independente do governo federal desde fevereiro de 2021 – na condução da economia brasileira? Ainda: como o antagonismo patrocinado pelo Executivo frente ao seu presidente pode atrapalhar as próprias ações da instituição? E, mais importante: como essa dinâmica afeta a população brasileira?

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Em primeiro lugar, cabe ressaltar que a inflação – cujo controle é a principal tarefa do Banco Central – afeta as parcelas mais pobres da população de forma sistematicamente desproporcional. Afinal, trata-se de um grupo cuja renda tende a ser inteiramente, ou quase inteiramente, alocada em consumo, enquanto parcelas mais ricas conseguem poupar parte da sua renda e investi-la. 

Além disso, a renda do trabalho – os salários – nem sempre é reajustada pela inflação. Certamente não em tempo real. Já a renda do capital – isto é, os lucros de acionistas, os aluguéis e, principalmente, os rendimentos financeiros – não apenas costuma ser protegida do aumento dos preços, como também pode aumentar em momentos de deterioração da situação monetária do país. Ou seja: em momentos de crise, quem é pobre paga mais. E a parcela mais rica da população tende a continuar ganhando dinheiro – ou pelo menos protegendo seu patrimônio. 

Servidores do executivo federal fazem protesto na frente da sede do Banco Central, em Brasília (DF). Eles protestam contra a previsão do governo Bolsonaro de reajustar apenas categorias da segurança pública. Foto: Pedro Ladeira/Folhapress
Foto: Pedro Ladeira/Folhapress

Isso ocorre porque a remuneração do capital tende a ser proporcional ao risco dos investimentos, que aumenta junto com os riscos inflacionários. Segundo estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, a desigualdade no Brasil piorou a partir do segundo trimestre de 2022 – mesmo com a manutenção do Auxílio Brasil, o que muito provavelmente reflete os impactos desproporcionais da inflação no bolso da parcela mais pobre da população. 

A sociedade também assistiu, no último ano, cenas lamentáveis ao redor do país de famílias enfrentando enormes dificuldades para garantir seu sustento básico, fenômeno tristemente ilustrado pelas filas de pessoas em açougues na tentativa de conseguir restos de ossos e retalhos de carne. É outro resultado perverso da inflação, que tende a ser particularmente cruel na compra de alimentação.

Por isso, é (ou deveria ser) incontroversa a ideia de que governo e sociedade precisam priorizar, do ponto de vista político e institucional, o combate do aumento sistemático dos preços.

Ocorre que a política monetária – isto é, o conjunto de instrumentos que o governo e, principalmente, o Banco Central podem utilizar para preservar o valor da moeda – é complexa e envolve subjetividades importantes. Em particular, ela depende bastante das chamadas expectativas econômicas, que têm a ver com a forma como atores da economia (investidores, empresas e trabalhadores) enxergam o futuro do país. 

Se são negativos, a aversão ao risco aumenta, o que aumenta também os juros requeridos pelos investidores para a rolagem da dívida do governo e das empresas – o que, por sua vez, alimenta a inflação e cria um ciclo vicioso danoso à economia. Se são positivos, do ponto de vista coletivo, tais atores tomam mais riscos e reduzem o custo de fazê-lo, alimentando um ciclo virtuoso de crescimento econômico.

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Mais uma vez, os mais pobres são os maiores prejudicados, já que menor crescimento econômico normalmente implica em maior desemprego.

Neste contexto, a literatura econômica tem bem documentados os efeitos da independência formal de bancos centrais: por proporcionar mais constância e previsibilidade, o Banco Central ter a capacidade de implementar livremente suas políticas – por mais impopulares que elas sejam – favorece a gestão das expectativas econômicas. 

De forma mais simples: quanto mais independente a autoridade monetária, mais eficaz tende a ser o combate à inflação, porque os atores sabem que ele será feito com base em modelos econométricos, e não em agendas políticas voltadas para ciclos eleitorais.

Ocorre que, como muita coisa na economia, é raro que outras variáveis se mantenham constantes. Por um lado, é importante que o Banco Central não apenas tenha a prerrogativa de independência, mas que a instituição a exerça de forma plena e crível. Isso implica em aumentar os juros quando eles precisam ser aumentados – como, cabe dizer, Campos Neto fez nos últimos dois anos do governo Bolsonaro – mas também em garantir que seus representantes não se envolvam em atividades políticas diretas, especialmente aquelas mais escusas, como as que foram detalhadas na revista Piauí. Isso mina a credibilidade da instituição, criando dúvidas junto aos investidores a respeito das reais intenções dos seus gestores.

Por outro lado, é importante que governo federal e Banco Central, ainda que não estejam 100% alinhados com relação aos melhores caminhos para a economia, mantenham um relacionamento saudável e respeitoso, que represente níveis razoáveis de maturidade institucional para o país. Afinal, eles também importam para a avaliação dos prospectos econômicos por parte dos diversos atores mencionados – e, no limite, também importam para a inflação.

Foto: Marcos Corrêa/PR

Embora a situação econômica do país esteja melhorando, o atual cenário de politização do Banco Central prejudica a nossa economia. Ele atrasa, do ponto de vista do controle da inflação, a atual trajetória de queda da taxa de juros, que poderia eventualmente estar ocorrendo em ritmo mais acelerado, freando nosso crescimento e expondo a população a um processo de aumento dos preços mais duradouro do que ele poderia ser.

Do ponto de vista da atuação de Roberto Campos Neto, parece faltar uma manifestação clara da sua independência e do seu compromisso institucional frente ao Banco Central. É verdade que o economista deu declarações públicas neste sentido nos últimos meses. E, mais recentemente, deu voto de minerva para uma redução na taxa de juros maior do que aquela esperada por parte do mercado. No entanto, é também verdade que ele falhou em explicar as – e, eventualmente, se desculpar pelas – atividades políticas que conduziu durante o governo Bolsonaro. 

Afinal, como reportado pela imprensa, elas incluíram exemplos perigosos. Campos Neto atuou, por exemplo, junto a membros do Congresso para negociar elementos da PEC Emergencial, um pacote econômico importante aprovado durante a gestão anterior. O presidente do BC tamvbém  também atuou ativamente junto a Bolsonaro no contexto de decisões de governança para os bancos (que são, aliás, instituições reguladas pelo próprio Banco Central). 

Em abril do mesmo ano, e segundo vários veículos da imprensa, Campos Neto participou de iniciativas do governo Bolsonaro junto ao setor privado para mitigar a grave crise política que enfrentava o ex-presidente àquela época. E, em maio, teve uma reunião fora da agenda com Bolsonaro no dia da reunião do Comitê de Política Monetária do BC, o Copom, que decidiu aumentar a taxa básica de juros de 11,75% para 12,75% ao ano. Esses são exemplos de atividades que jamais poderiam fazer parte do escopo de um presidente de um banco central independente.

Sem a pretensão de traçar falsas simetrias, cabe críticas também à postura do governo federal. Afinal, parece oportunista e é indesejável a atuação de aliados de Lula no sentido da vilanizar o BC – explorando as controvérsias patrocinadas por Campos Neto – para justificar os limitados prospectos de crescimento da economia. Vale lembrar que o argumento central de tal narrativa, isto é, a tese de que a taxa de juros está mais alta do que deveria estar, carece de embasamento científico. 

É uma discussão tecnicamente muito complexa, e que não tem sido conduzida com seriedade proporcional por parte de múltiplos membros do governo (com a notável exceção do ministro da Economia Fernando Haddad, que tem adotado postura moderada com relação ao papel do Banco Central nos últimos meses). 

A política monetária não é definida apenas pelo presidente do Banco Central – mas por um conjunto de modelos e estudos produzidos pelo competente corpo técnico da instituição, avaliados de forma colegiada pelo Copom.

O Brasil tem desafios grandiosos na economia. Para além dos nossos problemas de produtividade e de sustentabilidade fiscal, que devem ser prioridades do governo, grande parte da população segue sofrendo com os males da miséria e da desigualdade. A gravidade de tal panorama exige compromisso sério dos nossos representantes políticos e das nossas instituições. Em certa medida, e do ponto de vista da institucionalidade da política monetária, isso tem faltado por parte do governo federal e de Roberto Campos Neto.

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