Smart Sampa: denunciada por corrupção foi quem abocanhou R$ 588 mi para capturar seu rosto em SP

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Smart Sampa: denunciada por corrupção foi quem abocanhou R$ 588 mi para capturar seu rosto em SP

Quem paga a conta?

Parte 4


Depois de polêmica, questionamentos judiciais, um edital suspenso e muita resistência da sociedade, a prefeitura de São Paulo assinou na segunda-feira, 7, o contrato de R$ 588 milhões para instalar 20 mil câmeras e um sistema de reconhecimento facial em massa nas ruas da capital paulista. O nome do vencedor da licitação foi mantido em segredo por meses, em um processo cheio de estranhezas. Agora, sabemos quem é que cuidará das 20 mil câmeras “inteligentes”, como a prefeitura gosta de falar: uma empresa com um longo histórico de denúncias de corrupção.

Quem abocanhou o edital – mesmo tendo ficado em terceiro lugar – foi o Consórcio Smart City SP, liderado pela CLD Construtora, Laços Detetores e Eletrônica Ltda (com 50% de participação), e integrado também por Flama Serviços Ltda. (34%), Camerite Sistemas S.A. (15%) e PK9 Tecnologia e Serviços (1%). A prefeitura pagará R$ 9,8 milhões por mês para o consórcio que terá 18 meses para instalar as milhares de câmeras previstas no projeto. 

Muitos especialistas acham que a licitação jamais deveria ter sido realizada, já que um projeto do tipo coloca em risco a privacidade dos cidadãos e tem resultados questionáveis de eficácia na segurança pública. A justiça chegou a suspender a contratação, que é investigada pelos Ministérios Públicos estadual e federal.

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No processo licitatório e envio de documentos das empresas ao poder público, tudo feito por meio de pregão online, estranhamente quem fala em nome do consórcio vencedor é a PK9, dona de apenas 1% da empreitada, de acordo com a constituição em cartório, e não a CLD Construtora. Na página do certame no site da prefeitura, aliás, a informação é de que a vencedora é a PK9, e não o consórcio do qual faz parte.

A discrição em torno das integrantes tem suas razões. CLD Construtora é o novo nome da Consladel, dos sócios Labib Faour Auad e Jorge Marques Moura. Ela começou vendendo radares de trânsito no início dos anos 2000, mas hoje faz de tudo um pouco. Quando ainda chamava-se Consladel, a empresa e os sócios Auad e Moura tiveram o nome envolvido em uma série de denúncias de corrupção, a maior parte relacionada a fraudes em licitações milionárias, inclusive na prefeitura de São Paulo. 

O Consórcio Smart City SP foi escolhido mesmo após ficar em terceiro lugar na licitação iniciada em maio, que envolveu 12 empresas. A proposta, de R$ 9,8 milhões por mês em um contrato de 60 meses, é R$ 600 mil mensais mais cara que a apresentada pela primeira colocada na concorrência, a L8 Group S.A. — a empresa foi desclassificada após vencer a licitação em uma avaliação em tempo real da tecnologia por técnicos da prefeitura. A segunda colocada, Line Service Terceirização de Serviços, desistiu. 

Empresa Smart Sampa abocanhou quase R$ 600 mil para tocar um ambicioso projeto de câmeras de reconhecimento facial na capital paulista.

A escolha de quem vai tocar o projeto de reconhecimento facial em massa de São Paulo foi envolto em mistérios e idas e vindas. A prefeitura chegou a anunciar, sem especificar, que uma empresa havia vencido a licitação por R$ 9,2 milhões, mas teria de passar pelo teste. Em julho, em resposta ao jornal O Globo, a administração do prefeito Ricardo Nunes, do MDB, chegou a informar que faria uma nova licitação após a desclassificação da primeira colocada, e que não aceitaria a proposta de R$ 9,8 milhões do Consórcio Smart City SP, sempre resguardando o nome das empresas envolvidas. 

A Secretaria Municipal de Segurança Urbana, responsável pela contratação, afirmou ao Intercept que a empresa PK9 consta como vencedora porque foi ela a “responsável por apresentar lances durante o pregão”. Em relação às outras participantes do consórcio, a prefeitura se esquiva: diz que cabe à PK9 as “atribuições e responsabilidades envolvidas durante todo processo licitatório e execução do objeto licitatório”.

‘Sócia’ da prefeitura

O Smart Sampa não é o único contrato milionário levado pelos sócios Auad e Moura na gestão de Nunes em São Paulo. Em setembro do ano passado, outro consórcio, o 3C, venceu uma licitação nebulosa para desenvolver e administrar o aplicativo de transporte MobizaSP. Trata-se de uma opção da própria prefeitura ao Uber e à 99, com a proposta de 10,95% de comissão sobre o valor das corridas feitas pelos motoristas cadastrados. 

O que chamou a atenção do vereador Toninho Vespoli, do Psol, que denunciou a contratação ao Ministério Público em março, é que a licitação teria sido sigilosa, o edital não pode ser acessado até hoje e houve apenas um concorrente – justamente o consórcio 3C, que levou a “disputa”. 

Além disso, o 3C foi criado em 31 de agosto e proclamado vencedor da concorrência em 7 de setembro, uma semana depois de ser constituído. O MP ainda não se manifestou sobre esse caso – o promotor Paulo Destro informa que aguarda informações solicitadas à administração municipal – e tanto prefeitura quanto o consórcio negam qualquer irregularidade. 

Em 2018, outro contrato da PPP da Iluminação, com um consórcio integrado pela CLD, chegou a ter sua anulação recomendada pelo Tribunal de Contas do Município, dadas as investigações em curso na época contra a empresa. A administração do então prefeito tucano João Doria manteve a contratação mesmo assim. A CLD, ligada ao consórcio FM Rodrigues, venceu a licitação embora outro consórcio, o Walks, tenha apresentado uma proposta que representava R$ 1,6 bilhão de vantagem no contrato de R$ 7 bilhões.

Após uma batalha judicial, o Superior Tribunal de Justiça determinou em maio deste ano que a prefeitura deverá readmitir o Walks na concorrência, decidindo que sua desclassificação da licitação em 2018 foi irregular. Na prática, de acordo com a sentença, a agora gestão de Ricardo Nunes deve analisar o atual estágio de execução da PPP pela CLD e suas parceiras e avaliar se é o caso, ou não, de declarar um novo vencedor. 

A empresa coleciona denúncias. Em agosto de 2013, a justiça paulista já havia aceitado denúncia por lavagem de dinheiro contra Auad e Moura por causa do envolvimento da Consladel no caso que ficou conhecido como a “Máfia dos Rradares”. Eles foram acusados pelo MP de pagar propina a funcionários da prefeitura de São Paulo, de cidades do interior e de outros estados. 

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Ao menos R$ 1,4 milhão de propina foi pago a funcionários da prefeitura de São Paulo até 2005, segundo a denúncia. Para o MP, as investigações demonstraram evidências de que havia propina para fraudar licitações e elaborar contratos irregulares em todo o país, especialmente na prefeitura paulistana, de 2002 até pelo menos 2011.

No mesmo ano de 2013, Paulo Candura, um ex-diretor do Ilume, órgão municipal paulistano que cuida da iluminação pública, teve os sigilos quebrados em uma investigação sobre corrupção de funcionários públicos que teriam recebido propina, envolvendo a Consladel, nos governos de José Serra e Gilberto Kassab. Até 2018, porém, após uma série de recursos dos acusados, a quebra não havia ocorrido. O caso segue em investigação sob sigilo no MP-SP. Hoje, Candura trabalha em uma grande empresa do ramo de iluminação, que desenvolve projetos e PPPs na área para prefeituras do Brasil. A prefeitura de SP dise ao Intercept que o Ilume foi extinto em abril de 2022.

Não obstante o processo criminal em curso na época, ainda em 2013 a administração do petista Fernando Haddad fechou outro contrato com Auad e Moura, dessta vez para conserto de semáforos no valor de R$ 79 milhões. O novo contrato mostrou que a dupla se mantém firme com negócios na prefeitura de São Paulo independentemente da bandeira partidária da administração. 

Dois anos depois, em 2015, o nome da Consladel apareceu no escândalo das “Corujinhas de Manaus”. A empresa foi acusada de ter fraudado para vencer uma licitação de R$ 100 milhões – em que saiu vencedora – para espalhar radares de trânsito pela capital do Amazonas. Segundo o MP, o prejuízo aos cofres públicos teria sido de R$ 92,2 milhões. Os bens de Moura chegaram a ser bloqueados, e o caso segue na justiça. 

A primeira versão do edital previa que o sistema deveria reconhecer pessoas pela cor da pele.

Em 2018, a Consladel e seus donos também foram investigados pela Polícia Federal na Operação Trato Feito, sobre pagamento de propina por um consórcio de empresas em troca de contratos em Mauá, na região metropolitana de São Paulo. O então prefeito e hoje deputado estadual Átila Jacomussi, na época no PSB e hoje no Solidariedade, depois cassado, chegou a ser preso junto com o secretário de governo e 22 vereadores foram alvo de busca e apreensão. Pouco depois, ele conseguiu uma decisão liminar para voltar ao cargo. E, em 2020, o Supremo Tribunal Federal encerrou a questão a favor de Jacomussi. 

No mesmo ano, a Justiça Federal decidiu que não tinha competência para julgar a denúncia do MPF contra o prefeito na Operação Prato Feito, precursora da Trato Feito. Desde então, as duas ações vagam sem rumo entre as justiças estadual e federal.

Em 2019, um representante da Consladel, o ex-prefeito Milton Carlos Mello Tupã e representantes de outras empresas viraram réus em uma ação penal por fraude de licitação em Presidente Prudente, no interior de São Paulo. O caso também segue sem conclusão na primeira instância

Mesmo com todo esse histórico, Auad e Moura seguem firme. De 2014 a 2022, de acordo com o Portal da Transparência, a CLD recebeu R$ 185,6 milhões em contratos apenas com o governo federal. O grupo também presta serviços no Distrito Federal e em diversos outros estados, além de incontáveis municípios. Apenas Auad possui 59 CNPJs abertos com seu nome na Receita Federal, nem todos ativos.

Ilustração: Douglas Lopes para o Intercept Brasil

Reconhecimento facial em massa

É nas mãos desse grupo que está, agora, o Smart Sampa, o ambicioso projeto de câmeras que pretende levar reconhecimento facial à capital paulista. Desde que foi anunciado no final do ano passado, o projeto do prefeito Nunes trouxe apreensão para quem estuda a implantação das tecnologias de reconhecimento facial no Brasil. 

Na primeira versão do edital, previa-se que o sistema deveria reconhecer pessoas pela cor da pele e identificar comportamentos suspeitos como “vadiagem”, entre outras minúcias. A ideia, é claro, gerou muita resistência – afinal, sistemas do tipo operam com vieses racistas e, muitas vezes, arbitrários – e o processo de contratação foi suspenso. 

Após alguns ajustes no edital, que teve a questão da cor da pele suprimida e outros pontos modificados, como a criação de uma comissão de governança aprimorada para gestão do sistema, o processo foi retomado. Por causa das denúncias de racismo e vieses no edital, os ministérios públicos estadual e federal abriram em janeiro deste ano investigações sobre o projeto, ainda inconclusas. 

O MP-SP diz ainda que vai acompanhar a implementação do programa dentro do inquérito, e que atua como fiscal de ordem jurídica nas duas ações civis públicas que correm na Justiça contra o Smart Sampa, ambas ainda sem decisão. 

Em abril, a justiça chegou a suspender a licitação do Smart Sampa de forma liminar, em ação civil pública proposta pela Bancada Feminista na Câmara dos Vereadores, mas a decisão foi revertida poucos dias depois. O processo ainda corre. Outra ação, dessa vez ajuizada pelo Laboratório de Políticas Públicas e Internet, o Lapin, em conjunto com outras entidades, ainda sem decisão, também tenta barrar na justiça o Smart Sampa.

“A implementação dessas ‘soluções’ tem como consequência a ampliação da segregação sócio-espacial, a criação de enclaves fortificados, de zonas monitoradas e a conformação de uma cidade vigiada e militarizada, o avesso do potencial de São Paulo para uma cidade pulsante e democrática”, afirmou Vanessa Koetz, da Coding Rights, organização de defesa de direitos humanos na internet. Ela acredita que a adoção da tecnologia sem o devido debate público e controle social desses dados não passa de um marketing perigoso, que pode voltar-se contra a população indiscriminadamente.  

“Essa é uma péssima notícia”, avaliou Luã Cruz, especialista em direitos digitais do Idec, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor. “Vai-se gastar uma fortuna de quase R$ 10 milhões por mês, uma soma considerável mesmo para São Paulo, para implantar uma tecnologia falha, que pode muito bem simplesmente não funcionar de maneira minimamente aproveitável, mesmo para os fins de segurança pública, a justificativa do projeto”, explicou ele, que advogou contra o Smart Sampa durante a parca consulta pública sobre a ideia. 

Na ‘Máfia dos Radares’, sócios foram acusados de pagar propina a funcionários da prefeitura.

Em julho, cerca de 50 entidades que defendem o banimento da tecnologia de reconhecimento facial no país protestaram na frente da prefeitura, em ação do movimento “Tire Meu Rosto da Sua Mira”. Eles divulgaram um manifesto contra o projeto do prefeito, que busca a reeleição. 

Lapin, CESeC, EFF, Aqualtune, Uneafro Brasil e a Coding Rights chegaram entrar com uma representação no Tribunal de Contas pedindo o impedimento da concretização do Smart Sampa, apontando todos os riscos do projeto. Mas a contratação, no final, foi em frente mesmo assim. 

Cruz frisou que, em capitais onde sistemas de reconhecimento facial estão implantados há mais tempo, como Salvador e Rio de Janeiro, não é possível conferir se a tecnologia ajuda de forma efetiva a combater a criminalidade, pois esses dados não são divulgados. No máximo, dá-se publicidade a um balanço sobre um evento como o Carnaval ou uma notícia sobre a captura de um foragido específico.

“Sem falar no risco de perseguição de funcionários públicos a cidadãos por motivos particulares e diversos, como ex-mulheres ou desafetos, quem controla e tem acesso a esse sistema? Grandes cidades como São Francisco, por exemplo, baniram o uso da tecnologia de reconhecimento facial após avançar na sua implantação, e isso com condições técnicas, controle e responsabilização muito mais efetivas que as nossas”, disse ele.

O prefeito Ricardo Nunes reconhece que o “grande desafio” do sistema é a proteção de dados, mas garante que está “colocando um sistema de controle muito rígido”. “Quem tem que estar preocupado é quem fez alguma coisa contra a lei, mas quem não tem nada contra a lei, fique despreocupado. Alguém que fez algo contra a lei, alguém que traz transtorno para a sociedade, acho que essas pessoas têm que estar preocupadas”, disse o prefeito. 

“O próprio processo licitatório mostra todo o anacronismo e açodamento dessa contratação. A primeira colocada foi desclassificada por vários problemas técnicos. Parece piada, mas alegaram que o teste aconteceu na hora do almoço, quando o tráfego de internet é maior, e por isso travou o sistema de câmeras deles… Aí outra empresa pula fora sem muita explicação e a escolhida, finalmente, é logo uma multi denunciada”, critica Cruz. “Qual a chance disso dar certo?”

Enquanto a justiça de São Paulo não decide sobre a questão, Cruz deu um exemplo prático atual, vindo de Buenos Aires, dos problemas que certamente aguardam não apenas “cidadãos comuns” com a implantação do Smart Sampa, mas também autoridades públicas. 

A justiça argentina suspendeu o uso do reconhecimento facial na capital após descobrir-se que funcionários públicos com acesso ao sistema estavam usando a ferramenta para perseguir não apenas interesses pessoais, mas também juízes e políticos. “Nossa luta agora, além da batalha judicial, é conseguir levar essa preocupação para um público mais amplo, para conscientizar e mobilizar as pessoas contra a gravidade do que está para acontecer”.

Procurada por telefone, a direção da CLD não retornou as tentativas de contato do Intercept.

Essa reportagem é fruto do projeto Quem paga a conta?, uma parceria do Intercept com CESeC e Coding Rights, que investiga quem lucra e quem é punido com a explosão dos sistemas de reconhecimento facial para fins de segurança no Brasil.

Atualização – 25 de agosto de 2023, 17h13

A L8 Group enviou uma nota após a publicação desta reportagem afirmando que foi desclassificada pela prefeitura de São Paulo “de forma arbitrária” no processo licitatório. “A empresa não concorda com os motivos alegados pela prefeitura para sua desclassificação, tanto que questiona a decisão judicialmente e perante o Tribunal de Contas do Município de São Paulo”, disse a assessoria.

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