Gigante do entretenimento, Netflix pagará bolada a gerente de produto de inteligência artificial.

Netflix pagará US$ 900 mil a gerente de inteligência artificial enquanto Hollywood faz greve por proteção contra IA

Netflix e Disney abrem vagas ligadas à inteligência artificial ao mesmo tempo que chamam demandas de atores e roteiristas de irrealistas.

Gigante do entretenimento, Netflix pagará bolada a gerente de produto de inteligência artificial.

Enquanto executivos de Hollywood insistem que “simplesmente não é realista” pagar mais aos atores – 87% dos quais ganham menos de 26 mil dólares por ano –, eles estão gastando generosamente em programas de inteligência artificial.

Empresas de entretenimento, como a Disney, se recusaram a entrar em detalhes sobre a natureza de seus investimentos em inteligência artificial. Mas anúncios de emprego e divulgações financeiras analisadas pelo The Intercept revelam novos detalhes sobre a extensão da adoção da tecnologia por parte dessas companhias.

A Netflix, por exemplo, está oferecendo um salário de até 900 mil dólares anuais para um único gerente de produto de inteligência artificial.

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Sindicatos de atores e roteiristas de Hollywood estão atualmente em greve conjunta pela primeira vez desde 1960. Pedem melhores salários e regulamentações sobre o uso de inteligência artificial por parte dos estúdios.

Logo após a greve dos atores ter sido autorizada, a Alliance of Motion Picture and Television Producers – associação comercial que representa as empresas de TV e cinema que negociam com os sindicatos de atores e roteiristas – anunciou “uma proposta inovadora de IA [inteligência artificial] para os membros do sindicato [dos atores] SAG-AFTRA que protege as aparências digitais dos atores”.

A oferta gerou comparações com a distópica série de ficção científica “Black Mirror”. Um episódio mostrava a atriz Salma Hayek presa em uma luta, que parecia ter saído diretamente de um livro de Kafka, com um estúdio que estava usando sua imagem digital contra sua vontade. 

“Pagar 900 mil dólares por ano por um soldado em seu exército de IA, enquanto essa quantidade de dinheiro poderia qualificar 35 atores e suas famílias para o plano de saúde da SAG-AFTRA é simplesmente macabro”, disse o ator Rob Delaney, que tinha o papel principal no episódio de “Black Mirror”, ao The Intercept. “Tendo sido pobre e rico neste meio, posso garantir que há dinheiro suficiente para arcar com as demandas. É só uma questão de prioridades”.

‘Tendo sido pobre e rico neste meio, posso garantir que há dinheiro suficiente para as demandas. É questão de prioridades’.

Entre as demandas dos atores em greve, estão proteções contra a manipulação de sua imagem escaneada por tecnologias de inteligência artificial sem a compensação financeira adequada.

“Eles propõem que nossos figurantes possam ser digitalizados, pagos por um dia de salário e que a empresa seja proprietária dessa digitalização, sua imagem, sua aparência. E que possa usá-la pelo resto da eternidade em qualquer projeto que quiserem, sem consentimento e sem compensação financeira”, disse Duncan Crabtree-Ireland, negociador-chefe do SAG-AFTRA.

Os roteiristas também precisam lidar com a substituição de seu trabalho por programas de inteligência artificial, como o ChatGPT, que são capazes de gerar textos em resposta a consultas. Escritores representados pelo sindicato Writers Guild of America, o WGA, estão em greve desde 7 de maio. Exigem, entre outras coisas, proteções trabalhistas contra a inteligência artificial. 

John August, roteirista de filmes como “Peixe Grande e suas Histórias Maravilhosas” e “As Panteras”, explicou que o WGA quer garantir que o “ChatGPT e seus semelhantes não possam ser creditados por escrever um roteiro”.

O ator Rob Delaney faz um discurso em 21 de julho de 2023. Enquanto O sindicato em Londres se solidariza com greve do SAG-AFTRA, Netflix procura gerente de inteligência artificial por 900 mil dólares. Foto: Vuk Valcic/Sipa via AP Images

Protegendo a aparência dos atores

A diária para figurantes é de cerca de 200 dólares, de acordo com o contrato estipulado pelo SAG-AFTRA. Um anúncio de emprego da empresa Realeyes oferece um pouco mais do que isso: 300 dólares por duas horas de trabalho “expressando diferentes emoções” e “improvisando breves cenas” para “treinar um banco de dados de IA para expressar melhor as emoções humanas”.

A Realeyes desenvolve tecnologia para medir a atenção e as reações dos usuários ao conteúdo de vídeo. Embora a postagem não mencione trabalhar com empresas de streaming, um vídeo no site da Realeyes apresenta com destaque os logotipos da Netflix e da Hulu.

A postagem é especialmente voltada para atrair trabalhadores em greve, ressaltando que a vaga é para fins de “pesquisa” e, portanto, “não se qualifica como fura-greve”. “Por favor, note que este projeto não pretende substituir atores, mas apenas requer sua experiência”, diz a Realeyes, enfatizando várias vezes que treinar inteligência artificial para criar “avatares expressivos” contorna as restrições da greve.

Especialistas questionam se a fronteira entre pesquisa e trabalho comercial é realmente tão clara. “É quase uma garantia de que o uso dessa ‘pesquisa’, quando for comercializada, será para construir atores digitais que substituam os humanos”, disse Ben Zhao, professor de Ciência da Computação da Universidade de Chicago. “O lado da ‘pesquisa’ disso é, em grande parte, uma manobra mentirosa.” Ele acrescentou: “Pesquisas da indústria vão para produtos comerciais”.’

‘O lado da ‘pesquisa’ disso é uma manobra mentirosa. Pesquisas da indústria vão para produtos comerciais’.

“Esta é a mesma estratégia enganosa que LAION e OpenAI aplicaram anos atrás”, disse Zhao, referindo-se à Large-scale Artificial Intelligence Open Network, uma organização sem fins lucrativos alemã que criou o chatbot de IA OpenAssistant;  OpenAI é a organização sem fins lucrativos que criou programas de inteligência artificial como ChatGPT e DALL-E. “Baixe tudo na internet e não se preocupe com direitos autorais, porque é uma organização sem fins lucrativos e de pesquisa. O resultado disso se torna um conjunto de dados público, então as empresas – que apoiaram a organização sem fins lucrativos – pegam e dizem: ‘Nossa, obrigado! Que conveniente para os nossos produtos!'”

Inteligência artificial da Netflix

O anúncio da Netflix para um cargo de gerente de produto de inteligência artificial com salário de 900 mil dólares por ano deixa claro que a tecnologia vai além dos algoritmos que determinam quais programas são recomendados aos usuários.

O anúncio da vaga aponta para os usos da inteligência artificial como meio para a criação de conteúdo: “A inteligência artificial está impulsionando a inovação em todas as áreas do negócio”, inclusive ajudando-os a “criar um ótimo conteúdo”. A vaga da Netflix faz alusão a um amplo esforço da empresa para adotar a inteligência artificial, referindo-se à sua “Plataforma de Machine Learning” envolvendo especialistas na área “em toda a Netflix”. 

Procurada, a Netflix não respondeu imediatamente a um pedido de comentário. Após a publicação desta reportagem em inglês, em 25 de julho, a empresa mudou a descrição da vaga. A nova versão, atualizada devido a inúmeras críticas, foca apenas no uso da inteligência artificial para a personalização de conteúdo, e não para sua criação, segundo noticiou a Newsweek em 31 de julho (artigo em inglês).

Uma seção de pesquisa no site da Netflix descreve sua plataforma de aprendizado de máquina, observando que, embora tenha sido historicamente usada para coisas como recomendações, agora está sendo aplicada à criação de conteúdo. “A personalização tem sido a área mais conhecida, em que o aprendizado de máquina alimenta nossos algoritmos de recomendação. Também estamos usando o aprendizado de máquina para ajudar a moldar nosso catálogo de filmes e programas de TV, aprendendo características que tornam o conteúdo bem-sucedido. Nós o usamos para otimizar a produção de filmes e programas de TV originais no estúdio em rápido crescimento da Netflix.”

A Netflix já está colocando a tecnologia de inteligência artificial para funcionar. Em 6 de julho, o serviço de streaming estreou uma nova série espanhola de namoro, “Deep Fake Love”, na qual escaneamentos de rostos e corpos de concorrentes são usados para criar simulações deep fake de si mesmos geradas por inteligência artificial.

Em outro anúncio de emprego, a Netflix busca um diretor técnico para inteligência artificial generativa em seu laboratório de tecnologia de pesquisa e desenvolvimento para seu estúdio de jogos. Videogames geralmente empregam dubladores e roteiristas.

A inteligência artificial generativa é o tipo de IA que pode produzir texto, imagens e vídeo a partir de dados de entrada – um componente-chave da criação de conteúdo original, mas que também pode ser usado para outros fins, como publicidade. A IA generativa é distinta de modelos de inteligência artificial mais antigos e comuns, que fornecem coisas como recomendações algorítmicas ou tags de gênero musical.

“Todos esses modelos são normalmente chamados de modelos ou classificadores discriminatórios: eles dizem o que algo é”, explicou Zhao. “Eles não geram conteúdo ,como ChatGPT ou modelos de geradores de imagens”.

“Os modelos generativos são aqueles com os problemas éticos”, disse ele, explicando como os classificadores se baseiam no uso cuidadoso de dados de treinamento limitados – como um histórico de visualização – para gerar recomendações.

A Netflix oferece salário de até 650 mil dólares em sua vaga de diretor técnico de inteligência artificial generativa.

Roteiristas de videogames expressaram preocupação sobre a perda de trabalho para a IA generativa. Uma grande desenvolvedora de jogos, a Ubisoft, disse que já está usando a tecnologia para escrever diálogos para personagens não jogáveis.

A Netflix, por sua vez, anunciou que um de seus jogos, um jogo de aventura baseado em narrativa chamado “Scriptic: Crime Stories”, centrado em histórias de crime, “usa IA generativa para ajudar a contá-las”.

Inteligência artificial da Disney

A Disney também publicou vagas de emprego para cargos relacionados à inteligência artificial. Em uma delas, a gigante do entretenimento procura um engenheiro sênior de IA para “impulsionar a inovação em nossos projetos e experiências cinematográficas”. A vaga menciona vários estúdios da Disney em que a inteligência artificial já está desempenhando um papel, incluindo Marvel, Walt Disney Animation e Pixar.

Em uma recente teleconferência de resultados, o CEO da Disney, Bob Iger, aludiu aos desafios que a empresa teria para integrar a inteligência artificial em seu modelo de negócios atual.

“Na verdade, já estamos começando a usar a IA para gerar mais eficiência e, em última análise, para atender melhor os consumidores”, disse Iger, conforme relatado recentemente pelo jornalista Lee Fang. “Mas também está claro que a IA será altamente disruptiva e pode ser extremamente difícil de gerenciar, particularmente de uma perspectiva de gerenciamento de propriedade intelectual”.

Iger acrescentou: “Nossa equipe jurídica já está fazendo horas extras para tentar lidar com o que podem ser alguns dos desafios”. Embora ele tenha se recusado a entrar em detalhes, os documentos da Disney na Securities and Exchange Commission – a equivalente americana da Comissão de Valores Mobiliários – fornecem algumas pistas. 

“As regras que regem os novos desenvolvimentos tecnológicos, como os desenvolvimentos em IA generativa, seguem não estabelecidas. E esses desenvolvimentos podem afetar aspectos de nosso modelo de negócios existente, incluindo fluxos de receita para o uso de nossa propriedade intelectual e como criamos nossos produtos de entretenimento”, diz o documento.

‘A indústria do entretenimento está disposta a investir em peso em inteligência artificial generativa’.

Enquanto os atores em greve buscam proteger sua própria propriedade intelectual da inteligência artificial – entre as demandas sindicais que Iger considerou “simplesmente não realistas” – o mesmo acontece com a Disney.

“Parece claro que a indústria do entretenimento está disposta a fazer investimentos maciços em IA generativa”, disse Zhao. “Não apenas potencialmente centenas de milhões de dólares, mas também acesso valioso à sua propriedade intelectual, para que os modelos de IA possam ser treinados para substituir criadores humanos como atores, roteiristas e jornalistas por uma pequena fração dos salários humanos”.

Para alguns atores, essa não é uma luta contra a distopia de ficção científica da inteligência artificial em si. É apenas a busca de condições de trabalho justas em sua indústria e de controle sobre suas próprias aparências, corpos, movimentos e padrões de fala.

“A IA não é ruim, mas os trabalhadores (eu) precisam possuir e controlar os meios de produção!”, disse Delaney. “Minha voz melódica? Meus ombros largos e nádegas ondulantes de dançarino? Eu decido como eles são usados! Não um conselho de investidores anjo de capital de risco se reunindo em uma sala de conferências do Sun Valley entre coquetéis de niacina na veia ou o que quer que eles façam”.

Texto original publicado em inglês. Tradução: Maíra Santos

Atualização: 1º de agosto, 12h13
Este texto foi atualizado com a informação da mudança da descrição da vaga da Netflix, noticiada pela Newsweek.

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