Atualização: 5 de julho de 2023, 17h03
O Ministério Público de Santa Catarina pediu o arquivamento do inquérito policial que indiciou as advogadas da menina de 11 anos que conseguiu um aborto após estupro. A investigação tinha como objetivo caçar as fontes que nos permitiram o acesso ao processo judicial – e, como explicamos, não tinha provas. Essa foi justamente a razão do pedido de arquivamento, segundo o MPSC.
Faz um ano que denunciamos a maneira como uma menina estuprada e engravidada aos 10 anos, em Santa Catarina, foi pressionada pela juíza Joana Ribeiro Zimmer e pela promotora Mirela Dutra Alberton a desistir do aborto legal, em uma audiência marcada por irregularidades. Foi só com a repercussão da reportagem que a criança conseguiu a interrupção da gravidez. Mesmo assim, a polícia de Santa Catarina está empenhada em caçar as fontes que nos permitiram o acesso ao processo judicial – o último passo foi o indiciamento, em 16 de maio, das duas advogadas que atuaram na defesa da menina.
O vídeo da audiência estava sob sigilo judicial e foi enviado ao Intercept por uma fonte anônima. A proteção da identidade da fonte não apenas é uma garantia constitucional, fundamental para que a imprensa tenha liberdade de publicar histórias como essa, como também dever do jornalismo. Por isso, jamais revelaremos as fontes que nos ajudaram a denunciar as violações aos direitos daquela criança.
Sem provas, Daniela Felix e Ariela Melo Rodrigues são apontadas como suspeitas do crime de violação de sigilo, previsto no Código Penal, e também na violação de sigilo de depoimento especial de crianças, crime previsto na Lei 13.431/17. Agora, está nas mãos do Ministério Público a decisão sobre a denúncia ou o arquivamento do inquérito.
Publicamos há um mês uma reportagem sobre a investigação, que começou com uma denúncia anônima feita pelo Disque 100 ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos – na época, chefiado por Damares Alves. O denunciante pedia que se investigasse o vazamento da oitiva da criança, a “responsabilidade cível e criminal do The Intercept, por veicular as imagens e o áudio do depoimento” e a responsabilidade dos pais da menina.
Na investigação, o delegado se concentrou nas advogadas, apontadas como autoras. O inquérito também foi motivado por uma notícia de fato instaurada pela 1a Promotoria de Justiça da Comarca de Tijucas, que solicitou judicialmente os acessos feitos aos processos relacionados ao caso, além dos endereços IP dos computadores.
Mesmo diante do fato de que “diversas pessoas, incluindo servidores do Poder Judiciário e do Ministério Público, acessaram o processo em datas distintas”, Ariela de Mello Rodrigues é apontada como a única que teria acessado todos os eventos citados no inquérito. Ao Intercept, Rodrigues decidiu não se manifestar.
Já o fato de Daniela Felix Rodrigues ser colunista do Portal Catarinas é citado como elemento comprobatório de que ela seria a fonte da reportagem. Outra situação que apontaria para ela é o depoimento do padrasto da vítima, indicando que Felix teria recomendado que ele e a mãe dessem entrevistas à imprensa, pois isso ajudaria na garantia do direito da criança. “É pura suposição e invenção achar que eu ser colunista voluntária de um veículo é prova de que fui eu quem deu origem ao vazamento. Isso não se sustenta”, rebateu Felix ao Intercept.
“Os elementos informativos coletados indicam que Ariela Melo Rodrigues e Daniela Felix Rodrigues violaram o sigilo processual dos autos […], ao permitirem que o depoimento da criança […] fosse assistido por pessoa estranha ao processo, sem autorização judicial […]. de igual modo, Ariela Melo Rodrigues e Daniela Felix divulgaram sem justa causa, informações sigilosas[…]”, apontou o delegado da Delegacia de Tijucas, Alison da Rocha Costa, no relatório em que faz o indiciamento.
Abuso de autoridade
A pena prevista para cada um dos crimes indicados pela polícia de SC é de detenção de um a quatro anos e multa. Para a defensora pública Nalida Coelho, coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública de São Paulo, o Nudem, não há por que falar em quebra de sigilo quando não houve prejuízo para a parte envolvida. “O objetivo do segredo de justiça em nenhuma medida é proteger os funcionários públicos, que ao exercerem sua função numa República estão sujeitos a críticas, que suas decisões estejam sob escrutínio público”, afirmou.
Na reportagem, mostramos que tanto a menina quanto sua mãe manifestaram seu desejo de interromper a gestação – mesmo com as investidas da juíza e da promotora para desencorajar a criança. Um dia após a publicação, a menina, que era mantida em um abrigo para não abortar, pôde voltar para casa – e, alguns dias depois, foi submetida ao procedimento.
A mãe da menina, sua representante legal, revelou em sua única entrevista ao Fantástico que não tinha sido ouvida em nenhum momento do processo. Depois da repercussão do caso e da realização do aborto, ela desabafou: “Me sinto aliviada […]. Estou grata pela saúde da minha filha que está bem, por um pouco de justiça, né?”.
“É tão flagrante que estão querendo coibir os direitos profissionais das advogadas”, nos disse o desembargador José Henrique Torres, do Tribunal de Justiça de São Paulo. Segundo ele, o próprio Código Penal, em seu artigo 153, infere que não há crime quando há justa causa. “Isso é uma forma de perseguir, [há] um abuso de autoridade na aplicação desse dispositivo. A OAB e o Ministério Público deveriam agir para provocar o trancamento da ação e para que as autoridades respondam por abuso”, avaliou.
“Advogadas têm toda a liberdade, independência, autonomia e autoridade para decidir o que fazer em prol da cliente.”
O juiz pondera que, mesmo se as advogadas forem responsáveis pelo processo ter vindo a público, ainda assim estariam agindo dentro da lei. “Houve justa causa. Se elas não tivessem feito isso, provavelmente o resultado teria sido terrível. De qualquer forma, elas como advogadas têm toda a liberdade, independência, autonomia e autoridade para decidir o que fazer em prol da cliente”.
Também na avaliação do juiz, não há o que ser criminalizado em relação à violação do depoimento especial, considerando que a lei foi criada para proteger a criança – o que não se viu durante a audiência realizada para convencê-la a continuar com a gestação. Nela, a juíza Joana Ribeiro perguntou à menina se ela “suportaria ficar mais um pouquinho”. “Em vez de a gente tirar da tua barriga e ver ele morrendo e agonizando, é isso que acontece”, continuou a promotora Alberton no vídeo que chocou o país.
“As advogadas tinham o dever de revelar para mostrar que a criança estava sendo vítima de violência e, possivelmente, do crime de abuso de autoridade. Isso não implica violação de sigilo”, afirmou o juiz.
Para Mariana Albuquerque, advogada do Instituto Alana, organização que atua em defesa dos direitos das crianças, a criminalização das advogadas, pelo fato de a denúncia vir a público, não condiz com o respeito ao melhor interesse da criança, previsto no artigo 24 da lei 13.431. “Ele tem como estrutura a proteção de crianças e adolescentes. A gente não pode usar o sentido de um artigo para justificar violência, não publicizar para esconder violações”, destacou.
Advogadas foram denunciadas também na OAB
Um dia após publicarmos uma reportagem sobre a perseguição policial às advogadas, em 23 de maio, a OAB de Santa Catarina deu encaminhamento a uma representação no Tribunal de Ética e Disciplina que requer a instauração de procedimento disciplinar contra Daniela Felix pela atuação no caso. Em 24 de maio, foi publicada no Diário Eletrônico da Ordem dos Advogados do Brasil a intimação de Felix para que ela apresentasse esclarecimentos preliminares.
A representação havia sido protocolada 10 meses antes por um time de deputados ultraconservadores: os federais Chris Tonietto, do PL fluminense, presidenta da Frente Parlamentar Mista Contra o Aborto e em Defesa da Vida; Diego Garcia, do Republicanos do Paraná, presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família; e a deputada estadual Ana Caroline Campagnolo, do PL de Santa Catarina. Campagnolo, vale lembrar, foi a responsável pela instalação e a relatoria da CPI do Aborto na Assembleia Legislativa de Santa Catarina, criada por deputados conservadores para investigar o procedimento e o nosso jornalismo.
No documento enviado à OAB, parlamentares miram somente Felix, alegando que ela teria infringido artigos do Estatuto da OAB e do Código de Ética e Disciplina do órgão, além de ter violado o segredo profissional e praticado patrocínio infiel, previstos respectivamente nos artigos 154 e 355, caput, do Código Penal. Sugerem ainda que a advogada pode ter cometido o crime tipificado no art. 125, que é provocar aborto sem o consentimento da gestante.
“Toda e qualquer manifestação de que eu agi de forma antiética ou criminosa é totalmente improcedente. Se alguém quebrou condutas éticas nessa relação processual, foram representantes de órgãos do estado, e não a advocacia. A minha conduta e a da outra advogada foram totalmente condizentes com a defesa de uma criança em situação de vulnerabilidade, tendo seu direito violado”, afirmou Felix, que já apresentou sua manifestação à OAB, pela improcedência total da representação.
Na análise da defensora pública Nalida Coelho, a ação das frentes parlamentares é uma demonstração de abuso do direito de representação e uma tentativa de coagir advogadas no livre exercício da profissão – além de fomentar a violação do direito ao aborto legal. “É mais uma tentativa para que, no futuro, outras meninas sejam levadas a desistir [do aborto legal] e outras advogadas sejam levadas a não fazerem esse requerimento”, avaliou.
Romantização do estupro
Na visão desses parlamentares, a menina de 11 anos, que engravidou aos 10, sequer seria vítima de estupro e, por isso, não teria direito ao procedimento. Segundo defendem, a criança não se qualificaria como vítima, porque a gravidez teria sido “fruto de relacionamento entre a menina de 11 anos e um adolescente de 13 anos (filho do padrasto dela)”, declararam.
Na época da publicação da reportagem, o Intercept optou por não revelar detalhes do estupro ou da investigação criminal para proteger a menina e sua família. O fato de a polícia ter concluído que a autoria da violência sexual envolve um menino de 13 anos, no entanto, não suprime o caráter de vítima de estupro da menina, como lembrou a coordenadora do Nudem. Segundo ela, não há que se discutir consentimento sexual quando se trata de menores de 14 anos. “É muito perverso abrir debate em relação à possibilidade de consentimento da vítima. A presunção de vulnerabilidade é absoluta para menores de 14 anos. A ideia da lei é de que não há capacidade de consentir”, enfatizou a defensora, referindo-se ao artigo 217-A do Código Penal, que tipifica o estupro de vulnerável.
No ponto de vista de Coelho, a representação se configura como uma estratégia de revitimização de mulheres e meninas em casos de estupro. “Uma menina que está numa situação de violência crônica, o que deve ensejar olhar de proteção, é posta sob investigação: se cogita a possibilidade de ela ter culpa em relação ao que está vivenciando”, apontou.
Para Pedro Vaca, relator especial para a Liberdade de Expressão na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, as atuais investigações sobre o caso “foram precedidas por discurso estigmatizante contra pessoas defensoras de direito das mulheres”. “O Catarinas e o Intercept se focaram na atuação do poder público e seu papel frente ao acesso de direitos reprodutivos. Atuação de funcionários públicos estiveram no centro de atenção e foram questionadas. Não há qualquer dúvida de que a atuação dos operadores de justiça está submetida ao escrutínio do debate público”, ele nos disse.
Defensores dos direitos das mulheres pedem respostas
A preocupação com a criminalização das profissionais envolvidas na garantia do direito da menina motivou um comunicado da ONU ao governo brasileiro. No documento – tornado público na semana passada, após o prazo de 60 dias sem que houvesse resposta do estado –, a organização demonstra especial preocupação com a perseguição às jornalistas que atuaram na cobertura do caso e acerca da violação dos direitos sexuais e reprodutivos das meninas no Brasil. A ONU citou ainda o caso do Piauí, em que uma menina de 12 anos, grávida pela segunda vez após estupro, também teve o aborto legal dificultado.
No documento, que será apresentado ao Conselho de Direitos Humanos, o organismo internacional demanda que o governo indique os desdobramentos da CPI do aborto. E pede que o Brasil informe “se o estado de Santa Catarina ou qualquer outra autoridade competente pretende processar a menina e sua família, profissionais de saúde, advogados, jornalistas e outros defensores de direitos humanos que trabalharam no caso para garantir o acesso ao aborto”.
O Ministério das Mulheres informou ao Intercept que está reunindo as informações requisitadas junto às áreas técnicas e outras pastas para enviar uma resposta conjunta. “O enfrentamento à violência sexual contra meninas e mulheres, assim como a garantia dos direitos previstos em lei, é uma das prioridades”, disse o ministério, que afirmou estar reestruturando áreas de atendimento à vítimas de violência. A pasta também afirmou que está atenta “à criminalização e perseguição de jornalistas mulheres, em especial as que cobrem pautas sociais”.
O caso da menina de SC e seus desdobramentos também foi denunciado em audiência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em 8 de março deste ano. Pedro Vaca explica que a corte reconheceu historicamente que a ativação de mecanismos penais contra jornalistas pode possuir um efeito nocivo à liberdade de expressão. “Instaura-se um clima de temor, que leva à autocensura das jornalistas. No caso do Portal Catarinas e Intercept, há ainda uma incerteza muito grande sobre o alcance das investigações e processos. Isso tudo afeta diretamente as pessoas que podem ser criminalizadas”, explica.
No dia 15 de junho, advogadas de cinco organizações em defesa dos direitos das meninas e mulheres enviaram um pedido de providências a deputadas federais do campo progressista para que realizem pronunciamento público em favor das advogadas criminalizadas, que oficiem o Ministério Público de Tijucas para prestar esclarecimentos sobre o inquérito policial e que se manifestem em favor do arquivamento. Em relação à representação na OAB/SC, demandam que oficiem o órgão para prestar esclarecimentos sobre a análise de admissibilidade da representação e que solicitem o seu arquivamento.
“A gente não pode usar o sentido de um artigo para justificar violência, não publicizar para esconder violações.”
“As tentativas de perseguição tomaram proporções que ameaçam as liberdades profissionais de todas as envolvidas, que atuaram nos estritos limites legais”, afirmam no documento as representantes do Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular, Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, Anis – Instituto de Bioética, Cladem Brasil e Cravinas – Clínica de Direitos Sexuais e Reprodutivos e Direitos Humanos da Universidade de Brasília.
O Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SC é o responsável por instaurar ou não o processo ético-disciplinar. Entramos em contato para entender, entre outras questões, o motivo de a representação ter sido encaminhada somente agora, quase um ano após o protocolo e por que não houve o arquivamento imediato, já que a representação tem como tese central a desqualificação da menina enquanto vítima de estupro.
Por meio de sua assessoria de imprensa, a OAB informou que não pode se manifestar, porque os procedimentos são sigilosos. No entanto, ressaltou que a tramitação do procedimento “não significa concordância ou não com o que foi representado”. A ordem não explicou por que ignorou por 10 meses a representação e só encaminhou o processo no dia seguinte à reportagem que revelou a perseguição às advogadas.
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