Ilustração: Intercept Brasil

Revolta, impotência, tristeza 

Brasileiros ganham frações de centavos para melhorar sua inteligência artificial


O que acontece quando um robô aspirador encontra um cocô de cachorro no seu caminho? Há alguns anos, o previsível desastre tinha até um nome: poopocalypse – algo como cocôcalipse, em inglês – e atormentava fabricantes e donos de aparelhos. Fotos de chão com fezes espalhadas apareciam aos montes na internet. A solução foi treinar os robôzinhos a identificarem um cocô  e, assim, aprenderem a desviar deles. 

A partir de 2021, as fabricantes passaram a lançar robôs “inteligentes” capazes de identificar as fezes. Além de desviarem, versões mais avançadas tiravam até uma foto e enviavam ao dono para avisar sobre a sujeira. 

Enquanto a imprensa e a indústria festejavam os avanços da tecnologia, Antônia, de 54 anos, trabalhava de sua casa no Brasil. Sua tarefa? Fotografar fezes de animais domésticos em todos os cantos possíveis. Por cada imagem enviada, ganhava alguns centavos de dólar. Antônia alega ter tirado mais de 250 fotos de cocô. O objetivo das imagens era justamente treinar a inteligência artificial de um aspirador robô. Graças ao trabalho de centavos de Antônia aqui no Brasil, um robô bem treinado, em algum canto do mundo, desviou de um cocô de cachorro.

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Antônia obtém parte de sua renda trabalhando na internet. Cadastrada em uma plataforma que repassa pequenos serviços a pessoas em todo o mundo – o chamado microtrabalho –, ela tem que cumprir tarefas variadas de contratantes confidenciais para acumular dinheiro. Orgulhosamente, ela diz aos conhecidos que trabalha com inteligência artificial. É verdade. 

É o trabalho repetitivo dela e de outros milhares profissionais mal remunerados pelo mundo – especialmente em países em desenvolvimento – que ajuda a treinar redes neurais, técnicas computacionais que aprendem a processar dados como o cérebro humano – a festejada inteligência artificial. 

Antônia foi uma das pessoas entrevistadas para uma pesquisa inédita, lançada hoje, que revela como funciona o microtrabalho brasileiro que alimenta diferentes tipos de inteligência artificial. Feito por pesquisadores do Laboratório de Trabalho, Saúde e Processos de Subjetivação da Universidade Estadual de Minas Gerais, e do DipLab, centro que pesquisa trabalho de plataforma do Instituto Politécnico de Paris, é o maior estudo a analisar o valor do trabalho dos empregados invisíveis do setor de tecnologia no Brasil. 

Para uma rede neural aprender, ela deve ser alimentada com dados. É aí que entra esse microtrabalho. Além de engenheiros e especialistas em big data, é preciso um extenso trabalho de coleta, classificação e verificação de dados. Quem faz isso são empresas intermediárias, como Amazon Mechanical Turk, da Amazon, Appen, ClickWorker e Microworkers, que cadastram pessoas interessadas em executar pequenas tarefas rápidas por centavos ou até frações de centavos. 

O trabalho, feito em uma plataforma digital e gerido por algoritmos, vai além de enviar fotos de cocô. Passa por avaliação de sites pornográficos e moderação de imagens violentas e discurso de ódio – uma maneira de treinar os algoritmos a identificarem esse tipo de post automaticamente. Além do alto custo psicológico, o levantamento aponta que brasileiros recebem um dos menores salários do mundo para executarem essas funções. Os pagamentos são, em média, de 1,92 dólares por hora de trabalho. No mundo, para se ter uma ideia, o valor por hora médio recebido para esse tipo de trabalho em 2018 era de US$ 4,43. 

O rendimento médio mensal dos trabalhadores, contando com todas suas fontes de renda, é de cerca de R$ 1.866.

É ainda menos do que a OpenAI, criadora do ChatGPT, pagou para trabalhadores quenianos moderarem violência e discurso de ódio, em uma revelação que abalou o mundo da tecnologia. Por mês, em média, o rendimento médio mensal dos trabalhadores, contando com todas suas fontes de renda, é de cerca de R$ 1.866 – um salário mínimo e meio. 

Os pesquisadores coletaram informações de 477 trabalhadores brasileiros que atuam, em tempo integral ou parcial, realizando tarefas em plataformas de microtrabalho. Outros 15 trabalhadores foram entrevistados em profundidade. 

Em geral, eles utilizam plataformas que intermedeiam a gestão das pequenas tarefas – quase sempre repetitivas e que duram poucos segundos – e os contratantes. Uma das mais usadas por aqui é a Clickworker, que possui mais de quatro milhões de microtrabalhadores registrados em todo o mundo. Também integram a lista a europeia Appen e a UHRS, que pertence à Microsoft. Segundo os pesquisadores, parte significativa dos trabalhadores já atuou em mais de uma dessas plataformas. Grandes empresas como Google, Meta e Microsoft estão entre as que contratam esse tipo de serviço invisível, mal pago e nada regulado no Brasil.

Revolta, impotência, tristeza

Tarefas como a de Antônia são classificadas pelos trabalhadores como “estranhas”, mas os serviços vão além. A pesquisa mapeou que as plataformas possuem trabalhos para classificação de imagens, teste e avaliação de aplicativos, transcrição de áudios – como acontece no TikTok –, exibição de vídeos e criação de perfis falsos em redes sociais para impulsionamento de conteúdos, entre outros.

O pior trabalho, porém, é unânime entre os trabalhadores: moderação de redes sociais. Por trás de uma timeline limpinha há uma série de trabalhadores sem suporte identificando e removendo da plataforma conteúdos sobre violência física e sexual, acidentes, mortes e discurso de ódio – materiais que podem causar danos psicológicos a quem é exposto. “Você precisa ter um psicológico forte pra trabalhar nisso”, um dos entrevistados relatou aos pesquisadores. “Eles falam que se você for ver e não conseguir terminar, nem começa”.

Matheus Viana Braz, um dos autores do relatório, contou ao Intercept que quando perguntados sobre seus sentimentos em relação a esse tipo de tarefa, predominam nas respostas dos trabalhadores “relatos relacionados a revolta, impotência, tristeza e incômodo”. Isso é vivido de maneira individual pelos trabalhadores, que são impedidos de se constituir em grupos ou associações, e eventualmente fiscalizados por olheiros das empresas até nos grupos paralelos que formam no WhatsApp ou Facebook para trocar experiências.

As tarefas realizadas são avaliadas e podem ser rejeitadas sem explicações. Nesse caso, não há pagamento.

Em seus contratos e termos de uso, as plataformas se resguardam de qualquer dano que o trabalho fornecido por elas possa causar. A OneForma, uma das maiores plataformas de microtrabalho do mundo, descreve em seu termo de confidencialidade que “o contratado está ciente da possível existência de conteúdos adultos em materiais transmitidos como parte dos trabalhos nos projetos através do website e, consequentemente, aceita a mencionada possibilidade, renunciando a todas as reclamações decorrentes desse fato”. Todos os trabalhadores precisam assinar o termo. 

O Amazon Mechanical Turk, plataforma similar da gigante americana Amazon, também tem uma ressalva parecida. “Embora essas tarefas suscitem angústia e sentimentos de ansiedade nos trabalhadores, as plataformas parecem se eximir dos riscos psicossociais dessas  atividades. Ou seja, cabe tão somente a cada trabalhador buscar sozinho alternativas para confrontar tais situações, na direção da preservação de sua saúde”, resumiu Viana.

Ganhe pouco, e às vezes nem ganhe

Como em todo processo de informalização e flexibilização do trabalho, uma das características do microtrabalho gerenciado por grandes companhias é a assimetria na relação entre a empresa que contrata o serviço e o trabalhador que cumpre a função. Sem qualquer resguardo legal, os trabalhadores precisam se sujeitar ao que é estipulado pela plataforma – isso se aplica especialmente ao valor pago.

O preço por tarefa não é negociável, e as plataformas costumam remunerar os trabalhadores por atividade feita ou hora de trabalho enviado. Diferente de um serviço regido pela CLT, em que é considerado trabalho tudo o que é feito dentro de um período pré-determinado, no microtrabalho, como em quase todas as outras atividades da economia de plataforma, você só é remunerado pelo que efetivamente entregou. 

Todo o preparo é um trabalho pelo qual não se recebe. Se sua tarefa for transcrever uma hora de áudio, por exemplo, o valor pago será referente a uma hora – não importando que você tenha levado duas ou três horas para digitar o que ouvia. Os trabalhadores da pesquisa passam em média 15 horas trabalhando por semana nas tarefas. Isso gera, na média, um rendimento mensal de R$ 582. E às vezes nem isso chega ao bolso dos trabalhadores.

As tarefas realizadas são avaliadas depois, e podem ser rejeitadas sem explicações. Nesse caso, apesar do trabalho ter sido feito, não há pagamento. Perguntados pelos pesquisadores sobre o valor que esperavam ter recebido no mês anterior de acordo com as tarefas realizadas, os trabalhadores indicaram, em média, R$ 1,6 mil. Mas o valor médio real foi quase três vezes menor.

A escolaridade dos brasileiros que atuam com microtrabalho é maior do que a média, apesar do pagamento ser menor. Gráfico: Intercept Brasil

Isso afeta de maneira desigual cerca de um terço dos trabalhadores de microtarefas. Os dados mostram que 33% dos trabalhadores têm como sua única fonte de renda o trabalho nas plataformas. Apesar de não sabermos se há uma correlação entre os dois grupos, o número é próximo do percentual de trabalhadores ouvidos que trabalham todos os sete dias da semana – 31,9%. 66% dos trabalhadores conta com um valor mínimo a ser obtido nas plataformas para poder realizar o pagamento de suas contas mensais.

A incerteza e instabilidade promovidas pelas plataformas são, segundo a pesquisa, a principal queixa dos trabalhadores. As ofertas não são claras ou possuem previsibilidade. Mesmo considerando quem trabalha em outra atividade e usa as microtarefas como um complemento, a renda média mensal dos trabalhadores de plataforma é um terço menor que a renda média da população brasileira.

Quase 40% dos trabalhadores de microtrabalho possuem ensino superior completo.

Apesar dos ganhos inferiores, o nível de escolaridade dos trabalhadores pesquisados é maior que a média geral da população brasileira. Quase 40% dos trabalhadores de microtrabalho possuem ensino superior completo, contra pouco mais de 20% dos brasileiros com emprego formal. Os números para ensino médio, profissionalizante e mestrado também são maiores do que a média da população. Para os pesquisadores, as plataformas de microtrabalho “radicalizam um processo de informalização e flexibilização do trabalho, inclusive em estratos sociais com maiores níveis de escolarização”.

Um trabalho feminino

Mulheres são minoria no mercado de tecnologia. Entre quem desenvolve softwares, com contratos formais e altos salários, mulheres eram 12% em 2021. Mas, no microtrabalho precarizado, elas são a maioria: de acordo com o levantamento, quase 64% dos trabalhadores que alimentam as inteligências artificiais são mulheres.

Para Viana, essa organização reforça que embora se tratem das mesmas tecnologias, o trabalho qualificado da produção de tecnologia e o trabalho precário de manutenção se encontram em posições opostas – no que ele define como “cadeia global de suprimento de força de trabalho”. Isto é, se destinam as piores condições e atividades de trabalho ao sul global, às mulheres e às populações marginalizadas, de maneira geral.

Essa força de trabalho principalmente feminina é uma particularidade brasileira. “Em países em desenvolvimento as mulheres constituem um em cada cinco ‘microtrabalhadores’”, Viana explica. “Em nosso estudo, no entanto, descobrimos que três em cada cinco trabalhadores no Brasil são mulheres”. E elas não apenas estão em maior número, mas também trabalham proporcionalmente mais do que homens.

Segundo a pesquisa, 68% das mulheres entram nas plataformas à procura de novas tarefas ao menos uma vez por dia. Entre os homens, a porcentagem é 56%. O período gasto por elas em seus acessos são mais curtos, no entanto, o que indica a Viana que as atividades são realizadas a qualquer tempo livre disponível, intercalando uma responsabilidade e outra. Mulheres dedicam, em média, dez horas semanais a mais do que homens em atividades domésticas ou cuidado de pessoas, e Viana ouviu na pesquisa mulheres que relataram a mescla entre as diversas jornadas de trabalho, remunerado ou não, com as microtarefas. 

Três em cada cinco trabalhadores no Brasil são mulheres.

Uma mãe que realizava o trabalho durante a madrugada enquanto amamentava o filho descreveu de maneira prática a situação aos pesquisadores: “em uma mão seguro meu bebê, na outra realizo algumas microtarefas”.

O que pode parecer positivo em alguma medida, com mulheres alcançando autonomia e realizando trabalhos que não poderiam se não houvesse flexibilidade, é questionável pela dinâmica do trabalho. “Apesar das plataformas serem apontadas como uma fonte alternativa de renda, um meio de empoderamento, ou até mesmo uma forma de flexibilizar a rotina de trabalho das mulheres, a realidade é bem diferente”, diz Viana. “Em vez de proporcionarem independência, essas plataformas parecem enclausurar as mulheres em um ciclo de dependência, onde parte significativa de seu tempo livre é dedicada à realização de tarefas. Nossos dados não indicam que a autonomia financeira tem sido alcançada por meio desse tipo de trabalho”.

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