Sodexo acobertou denúncias de racismo e misoginia de funcionário – até ele ser preso por injúria racial

Sodexo acobertou denúncias de racismo e misoginia de funcionário – até ele ser preso por injúria racial

Arquiteto preso após chamar oficial de 'preto' e 'macaco' em samba no Rio havia sido denunciado diversas vezes antes, mas se beneficiou da tolerância da empresa.

Sodexo acobertou denúncias de racismo e misoginia de funcionário – até ele ser preso por injúria racial

Fernando Bravim Kruger estava em um samba tradicional no centro do Rio de Janeiro na madrugada de domingo, 21 de maio. Por volta das 2h da manhã uma pessoa esbarrou nele, o que foi suficiente para começar uma confusão. Não houve briga física, mas Kruger propagou seu ódio com insultos verbais. Em discussão com um grupo de amigos da pessoa, ele chamou um dos envolvidos de “preto” e “macaco”. Todos foram levados à delegacia, e Kruger foi detido em flagrante pelo crime de injúria racial.

A prisão foi o ápice da crescente do comportamento de ódio de Kruger. Por ao menos três anos, pessoas próximas a ele acompanharam uma série de ofensas a minorias promovidas nas redes sociais e denunciaram seus ataques virtuais à Sodexo, onde o agressor trabalhou entre 2017 e 2023 como coordenador de projetos.

As denúncias contra Kruger foram feitas em um sistema de comunicação anônima do setor de compliance da empresa. A área é responsável por estabelecer diretrizes de comportamento e aplicar punições nos casos necessários. O Intercept teve acesso a duas das denúncias registradas contra ele, bem como às mensagens enviadas pelo compliance da empresa aos denunciantes.

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As denúncias, feitas entre outubro de 2020 e março de 2023, continham mensagens à empresa e prints de publicações em que Kruger era abertamente racista, misógino e transfóbico. Em uma delas, no Twitter, ele diz que João Pedrosa, participante do BBB21 que sofreu racismo dentro da casa, não era “tão bem-resolvido com sua negritude” porque denunciou o racismo sofrido. Em outra, disse que quem votasse no PT apenas por ser contra Bolsonaro merecia “tortura chinesa, com fiapo de bambu embaixo da unha”. 

Kruger, que é gay, também insinuou, compartilhando uma notícia de que o Papa Francisco apoia união civil entre homossexuais, que ele estaria apoiando “putaria dentro do seminário”. Ele ainda chamou a cineasta Petra Costa, em notícia sobre a indicação ao Oscar do documentário “Democracia em Vertigem”, de “vagabunda”.

Em resposta à denúncia, a Sodexo afirmou que a “preocupação foi enviada a uma equipe dedicada” e seria “analisada adequadamente”, e incentivou o denunciante a “fornecer qualquer informação adicional ou documentação [de] suporte que, no seu entendimento, possa nos ajudar a endereçar sua preocupação”. “Sua ação positiva tornará nossa empresa um lugar melhor para todos”, garantiu.

Exatamente seis meses depois, a Sodexo enviou uma nova mensagem ao denunciante: “Obrigado pelo envio do seu relato. Informamos que o tema foi devidamente apurado e endereçado. Por questões de segurança e confidencialidade, os detalhes são mantidos em sigilo”. Kruger seguia em seu cargo – e destilando ódio na internet.

Mais publicações preconceituosas foram anexadas à mesma denúncia e, um mês depois, a empresa informou por mensagem que “o tema foi reavaliado internamente e as ações necessárias foram realizadas”. Novamente, informações sobre tais ações foram mantidas em sigilo.

Kruger então mandou um recado no seu Instagram. No prédio onde ficava o escritório da Sodexo no Rio de Janeiro à época, o coordenador postou uma foto ao lado de uma carranca, escultura de proteção contra mau-olhado. “Aos invejosos e fofoqueiros de plantão que andam vigiando a minha vida”, escreveu.

Finalmente, oito meses após a denúncia, o compliance da Sodexo encaminhou uma última mensagem ao denunciante: “Informamos que o tema foi devidamente analisado e tratado pela Sodexo. A Sodexo tem processos e políticas internas para tratar todas as denúncias recebidas, bem como para assegurar a não retaliação e confidencialidade das pessoas impactadas nesse processo. A Sodexo garante que as ações que forem necessárias serão tomadas”. O denunciante seguiu enviando mensagens à companhia por mais de um ano, mas nenhuma foi respondida.

Uma ex-funcionária da Sodexo ouvida pelo Intercept sob anonimato informou que, antes da pandemia, Kruger participou de uma conversa na empresa sobre a denúncia e foi firmado uma espécie de termo de ajuste de conduta – “que não adiantou nada, obviamente”, ela ressaltou. “Eu acho que a Sodexo nunca levou o assunto de forma séria”. 

Kruger, que era responsável pela implementação de novos restaurantes da marca no Rio de Janeiro, era gerenciado por duas pessoas: Simone Fiorese, gerente regional de operações, funcionária da Sodexo desde 1998, e Cristina Barreto, na empresa desde 2011 e também gerente regional. Uma pessoa próxima de Kruger relatou ao Intercept que “os chefões dele estavam abafando” as denúncias. A ex-funcionária ouvida, por sua vez, sugere que pelo comportamento não se dar dentro da empresa seus gestores “não davam a devida importância” ao assunto. “Gastaram pouca energia em querer entender o problema”, ela afirma. 

Pedimos à Sodexo um posicionamento dos gestores de Kruger sobre as denúncias recebidas contra o funcionário, mas não tivemos retorno.

A falta de ação e as respostas padronizadas do compliance ajudam na percepção. A segunda denúncia a que tivemos acesso, feita em agosto de 2022, dois anos após a primeira, teve apenas uma resposta: “Obrigado pelo envio do seu relato. Informamos que o tema foi devidamente apurado e endereçado. Por questões de segurança e confidencialidade, os detalhes são mantidos em sigilo” – ou seja, a mesma mensagem anterior.

Foto: Reprodução

Após a resposta, o denunciante anexou mais informações contra Kruger e avisou à Sodexo que Kruger havia publicado – em tom irônico – querer tatuar uma suástica. A empresa não respondeu. A publicação foi feita logo após as eleições, em novembro de 2022.

Quatro meses depois, o denunciante enviou uma última mensagem à empresa: “vamos expor a Sodexo”. Kruger só foi demitido em abril de 2023 – quatro semanas depois do ultimato. Um mês depois, ele foi preso por injúria racial
no Rio de Janeiro.

Enviamos 12 perguntas à Sodexo questionando o histórico, a função do setor de compliance quando um funcionário é denunciado e as ações tomadas pela empresa em relação a Kruger, além do pedido de posicionamento de seus gestores. Nenhuma pergunta foi respondida. A Sodexo se limitou a dizer: “Fernando Bravim Kruger não faz parte do quadro de funcionários da Sodexo, por isso, a empresa não se pronunciará em relação à situação”.

Sabonete, livros e chocolate Lindt

Kruger foi solto no dia seguinte à prisão, na audiência de custódia, e aguarda pelo fim da investigação em liberdade. Aos seus amigos, encaminhou uma mensagem falando dos próximos passos: “Lá na frente, sem prazo, as pessoas que foram na delegacia serão chamadas novamente para confirmar o que falaram e, aí sim, eu posso apresentar testemunhas que estavam lá no dia. Porém, até agora quem estava comigo não apareceu, não me atende, não está interessado, ou seja, não eram meus amigos de verdade”.

Ele aproveitou o texto para explicar que, pelas medidas cautelares, está proibido de sair entre 22h e 6h e de se ausentar por mais de sete dias do Rio de Janeiro. Também pediu aos amigos que não fiquem perguntando se o que foi publicado pela imprensa é verdade. Ele diz não ter lido nada, porque a imprensa “não quer ajudar, só quer condenar”.

Kruger contou aos amigos que voltou a se consultar com um psicólogo, que teria se mostrado “muito impressionado com tudo o que aconteceu” e dito que Kruger “não é essa pessoa pintada pela imprensa só porque disse uma frase”. Apesar de acreditar nisso, o arquiteto comentou sobre a possibilidade de ser condenado pelo crime: “Não existe mais prisão especial para [quem possui] curso superior. Em caso de condenação, quero todos na fila em Bangu VIII aos domingos com sabonete, livros e chocolate Lindt”.

Atualização – 15 de junho de 2023, 16h46

Após a publicação desta reportagem, a Sodexo Benefícios entrou em contato com o Intercept para informar que é uma empresa distinta da Sodexo On Site, onde Kruger trabalhou. As duas empresas, no entanto, fazem parte do mesmo grupo Sodexo, segundo a própria assessoria. O Intercept entrou em contato com as duas assessorias de imprensa durante a apuração de reportagem e publicou a resposta recebida na íntegra.

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