Conteúdo sensível: relato sobre violência doméstica e homicídio infantil.
Os filhos de Jane Soares da Silva, Lucas e Mariah, de 9 e 6 anos, foram mortos pelo pai, Mário Eduardo Paulino, em 4 de março de 2019. O casal estava separado desde dezembro de 2015, após um relacionamento marcado por violência psicológica. Ele a ameaçava e a perseguia – mas era ela quem sofria o risco constante de perder a guarda das crianças.
Sob a ameaça de ser denunciada por alienação parental, Silva foi obrigada pela justiça a deixar os filhos encontrarem o pai de segunda a sexta, assim como em finais de semana alternados e feriados. Mesmo alertando inúmeras vezes que o ex-marido era agressivo, ela diz que nunca foi ouvida. “Eu tinha que estar o tempo inteiro correndo atrás de médico, psicólogo, escola e todo tipo de documentos, para provar que tudo que ele dizia era mentira. Já ele, qualquer coisa que falava, juízes e promotores acatavam”.
O terceiro texto da série “Em nome dos pais” mostra que, ao negligenciar as denúncias das mães e as obrigar a entregarem os filhos aos pais agressores, juízes, promotores, psicólogos e assistentes sociais colocam em risco a vida dessas crianças. Os filhos de Silva estão entre as vítimas da Lei de Alienação Parental.
Desde que eles foram assassinados, a mãe se uniu a um grupo de mulheres que luta pela revogação da lei. Por meio de um perfil no Instagram e de reportagens na imprensa, Silva já contou partes da sua história. Agora, o Intercept publica um relato completo.
O depoimento foi editado apenas para fins de clareza.
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Eu tinha dois filhos. Lucas, de 9 anos, e Mariah, de 6. Eles foram mortos pelo pai, Mário Eduardo Paulino. Era segunda-feira de carnaval, dia 4 de março de 2019. Incontáveis são as vezes que meu coração grita de desespero, dor, amor e saudade, enquanto ainda espero acordar desse grande pesadelo.
Meu casamento foi marcado por violência psicológica. Mário me ameaçava muito, dizia que ia me matar, que ia me picar e colocar dentro de uma mala – chegou a dizer isso para os meus pais. Ele também os ameaçava, assim como aos meus irmãos e às minhas sobrinhas. Esse abuso psicológico acontecia o tempo todo. Eu achava que ele poderia mesmo fazer alguma coisa comigo. Quando consegui sair de casa, em dezembro de 2015, começou uma perseguição que parecia vingança. Até hoje não encontrei resposta para o que Mário fazia.
Assim que dei entrada no divórcio, ele me acusou de alienação parental. Alegava que eu tinha problemas psicológicos e não tinha condições financeiras de ficar com as crianças, porque eu não trabalhava. Antes disso, porém, já tinha feito várias denúncias contra mim no Conselho Tutelar, alegando que eu não cuidava dos meus filhos. Uma vez, denunciou que Mariah tinha incontinência urinária e que eu não a levava ao médico. Em outra ocasião, por acidente, ela encostou no ferro quando eu estava passando roupa, e ele falou que eu a machuquei. Hoje, percebo que estava preparando o cenário para tomar a guarda das crianças quando eu saísse de casa.
‘Qualquer coisa que ele falava, juízes e promotores acatavam – não precisava provar nada’.
Em junho de 2016, o juiz determinou uma audiência de conciliação, em que fui me senti praticamente obrigada a aceitar tudo que me impuseram. As condições eram deixar o pai buscá-los na escola todos os dias e almoçar ou jantar com eles uma vez por semana. Em finais de semana alternados, ele os levaria para dormir em sua casa.
Quando tudo aconteceu, era uma visita estendida, porque juntava o fim de semana com o feriado de carnaval. Ele pegou as crianças na sexta-feira e, no sábado, ligou dizendo que precisava falar comigo. Eu disse que, quando ele trouxesse as crianças, a gente conversava. No domingo à noite, falei com o Lucas por telefone. Perguntei pela Mariah, e ele disse que ela estava tomando banho. Eu ainda a ouvi brincando no chuveiro.
Na segunda, logo pela manhã, mandei uma mensagem para o meu filho, mas ele nem recebeu. Na hora do almoço, tentei ligar. Mário costumava desligar o telefone das crianças para eu não falar com elas. Então, achei que fosse isso.
À tarde, comecei a ficar muito preocupada, porque nem ele mesmo acessava o celular. A última visualização tinha sido às 4h da manhã. Às 17h, liguei para uma das irmãs dele e falei que precisava que ela o achasse, porque estava acontecendo alguma coisa. Ela falou que já tinha tentando ligar, sem sucesso. Aí eu perdi o chão – ele não me atender, eu já estava acostumada, mas não atender a irmã era outra história.
Por volta de 18h, fui até a casa dele. Tinha acabado de pegar o ônibus, quando a sua irmã me mandou uma mensagem, dizendo para eu esperar pelo pior. Pouco tempo depois, veio a outra mensagem – Lucas e Mário estavam mortos. Mariah ainda foi encontrada com vida, mas morreu no hospital. A partir daquele momento, eu não vi mais nada. Fui socorrida pela população dentro do ônibus e fiquei no meio do caminho entre a minha casa e a dele.
O que aconteceu, soubemos depois pelos exames de sangue feitos nas crianças, é que ele deu bebida alcoólica para elas não resistirem e atirou na cabeça dos meus filhos. Depois, se suicidou da mesma forma. Era por volta das 18h.
Antes, eu tinha planos, conseguia vislumbrar o amanhã. De lá para cá, aprendi que não devemos planejar nada. Enquanto eu tentava falar com meus filhos, eles ainda estavam vivos. Durante todo o dia, estavam trancados em casa, incomunicáveis, mas vivos. Em questão de horas, tudo mudou.
O sistema de justiça tem culpa pela morte do Lucas e da Mariah. Na verdade, foi um conjunto de responsáveis – o Conselho Tutelar, o Centro de Referência e Assistência Social, o Cras, o Judiciário, o Ministério Público. Por causa da acusação de alienação parental, eu tinha que estar o tempo inteiro correndo atrás de médico, psicólogo, escola e todo tipo de documentos para provar que tudo que ele dizia era mentira. Qualquer coisa que ele falava, juízes e promotores acatavam – não precisava provar nada. Simplesmente, falava meia dúzia de balelas e eu tinha que prestar contas.
Foi nesse contexto que o juiz determinou fazermos acompanhamento com uma psicóloga e uma assistente social, mesmo eu dizendo que não fazia nada, mesmo provando tudo, mesmo as crianças contando o que o pai fazia, eu tinha que ir lá nesse acompanhamento compulsório para prestar contas. E era um processo extremamente abusivo, porque eu fui tratada como louca e alienadora o tempo todo.
Quando Mário começou a fazer coisas absurdas, eu sempre denunciava. Ele dizia para as crianças perguntarem onde eu estava e o que estava fazendo. Ele as ensinou a perguntar várias vezes a mesma coisa, para ver se eu entrava em contradição, caso me ligassem e eu não pudesse atender na hora. Meus filhos contaram isso para mim e para a psicóloga.
Uma vez, Mário instalou uma espécie de rastreador no tablet da Mariah, e ela falou que dava para saber o lugar onde a gente estava e que ele acompanhava pelo celular. Em muitas ocasiões, os vizinhos me contaram que o viam parado com o carro próximo de onde eu morava. As pessoas diziam para eu ter cuidado na hora de sair e voltar, para não ficar sozinha.
Ele chegou a picotar todas as roupas do Lucas e da Mariah. Eu tirei foto de tudo. Isso foi colocado no processo, mas o Judiciário passou por cima, como se nada tivesse acontecendo. O Cras também. As instituições optaram por dar credibilidade a ele, e não a mim e às crianças. Era discrepante o tratamento. Minhas denúncias nunca tiveram a mesma atenção.
O Judiciário e o Ministério Público, que dizem estar ali para defender os direitos das crianças, me obrigaram a aceitar ele ter contato todos os dias com elas. Diante de todas as denúncias que eu já tinha feito, era no mínimo para terem pedido um estudo psicológico nosso e, dali, tomar outras medidas. Mas nunca pediram isso. Podiam ter determinado a visita assistida. Foi negligência.
E continuam me negligenciando. Em março, faz quatro anos da morte dos meus filhos e, desde então, eu tento conseguir uma pasta de desenhos do Lucas, que está com a família paterna. Já pedi amigavelmente, mas não me deram. Há um ano e meio, entrei com pedido judicial e até agora não tive resposta. É uma coisa tão simples para decidir e que para mim representa tanto. Ter essa pasta de volta é resgatar um pouco dessa memória. Até isso estão me negando.
‘Acabar com a Lei de Alienação Parental é fazer justiça pelos meus filhos’.
Hoje, luto arduamente com outras mulheres pela revogação da Lei de Alienação Parental. Acabar com ela é fazer justiça pelos meus filhos, Lucas e Mariah, e por tantas crianças que também perdem a vida, literal ou simbolicamente, vítimas de uma legislação que protege abusadores e agressores. Nossa luta é mostrar as atrocidades do sistema de justiça, incapaz de julgar e de proteger quem realmente precisa de proteção. Nossa luta é árdua, para não entregar nossos filhos para morrerem.
“A morte recalcula a vida” – essa frase tem tanto a dizer. A morte dos meus filhos me fez ver que muitas vezes fazemos planos, e eles talvez nem se concluam. Desde aquele dia, passei a viver um momento de cada vez. As horas do relógio não são as mesmas. Nada mais é como foi um dia. Vivo constantemente recalculando a rota.
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