Foto: Pedro Ladeira/Folhapress

Documentos contradizem versão de ministro da Defesa de Bolsonaro para negar apoio aos Yanomami

General Paulo Sérgio alegou "falta de condições" para aterrissagem de helicópteros durante crise humanitária dos indígenas em Roraima.

Foto: Pedro Ladeira/Folhapress

O ministro da Defesa de Jair Bolsonaro, o general do Exército Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, mentiu sobre as condições de uma pista de pouso e também ignorou um plano alternativo da Polícia Federal, a PF, para negar apoio a uma ação emergencial contra o garimpo na Terra Indígena Yanomami, em fins de 2022. 

Paulo Sérgio sepultou a chance de cooperar com uma ação demandada por diversos órgãos públicos alegando “falta de condições de operação” de uma pista de pouso anexa a uma base do Exército em Roraima. Mas a pista nunca deixou de operar, e sempre esteve apta a receber aeronaves até maiores que a solicitada pela PF. Além disso, a PF sugeriu usar uma outra pista na operação – algo que o ministro parece não ter nem notado.

Documentos recebidos via Lei de Acesso à Informação pelo Intercept permitem enxergar em detalhes a negligência da mais alta autoridade militar do país durante a crise humanitária vivida pelos  Yanomami. O caso narrado nesta reportagem ocorreu entre meados de outubro e o fim de novembro do ano passado.

Os documentos mostram a atuação do Ministério da Defesa a partir de um pedido urgente feito pela procuradora Eliana Torelly, do Ministério Público Federal. Em ofício, ela solicita o uso de helicópteros para “para viabilizar a imediata deflagração da operação na referida região”, escreveu, em 14 de outubro, a Paulo Sérgio. Torelly, à época, coordenava a 6a Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, responsável por zelar pelos direitos de populações indígenas e comunidades tradicionais. O ofício dela narra detalhes da crise e fala em “risco iminente de confronto de grandes proporções”.

EMBEDAR OFÍCIO TORELLY 

Quatro dias depois, Paulo Sérgio remeteu o pedido ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, então comandado pelo delegado de Polícia Federal Anderson Torres – atualmente preso pela suspeita de participação nos atos golpistas de 8 de janeiro em Brasília. 

Em 10 de novembro, um punhado de documentos encaminhados por Torres chegou às mãos do ministro da Defesa. Entre eles, um despacho assinado pelo delegado José Roberto Peres, então superintendente da Polícia Federal em Roraima. O policial confirmou a necessidade de um helicóptero para o transporte de policiais e indicou que já havia feito um planejamento operacional que previa o desembarque numa pista da região conhecida como Espadim, às margens do rio Uraricoera, no município de Amajari. O Uraricoera é crucial para o garimpo na terra Yanomami: balsas garimpeiras ilegais operam em suas águas, que também são usadas para o transporte de insumos fornecidos à atividade  criminosa.

Mas Paulo Sérgio ignorou o plano traçado pela PF. Em vez disso, num ofício lacônico enviado a Torres em 23 de novembro, falou da “indisponibilidade temporária da pista de pouso do 4o Pelotão Especial de Fronteira, em Surucucu, por motivos de manutenção, o que inviabiliza o deslocamento das equipes e o transporte” de combustíveis, gêneros alimentícios e equipamentos e negou o apoio. A pista do Surucucu fica a dezenas de quilômetros ao sul da do Espadim. E nunca esteve indisponível, segundo um documento do Exército também enviado à reportagem. 

A pista e o dinheiro

A pista do Surucucu está localizada em região estratégica para ações de combate ao garimpo. Ela fica a menos de 50 quilômetros, em linha reta, de cinco das principais frentes de exploração ilegal de ouro na Terra Indígena Yanomami, nas localidades de Homoxi, Xitei, Feijão Queimado, Alto do Rio Parima e na “pista do Fernando”. Funciona anexa ao pólo-base Surucucu, uma estrutura de atendimento à saúde indígena, e ao 4o Pelotão Especial de Fronteira do Exército.

Com 1.100 metros de extensão e pavimentada, ela permite pousos e decolagens de aeronaves grandes, como o C-105 Amazonas, um bimotor cargueiro fabricado pela Airbus. Como a pista está em mau estado de conservação, operações com aeronaves do porte do C-105 foram interrompidas, mas ela nunca deixou de receber aviões menores – como o C-98 Caravan, um monomotor para até 14 passageiros idêntico ao operado pela companhia aérea Azul Conecta em voos regionais. 

Logo, não há restrições para o pouso de um helicóptero com seis policiais, como pediram PF e MPF na ocasião. “Em condições plenas de operação, a pista de pouso e decolagem é capaz de receber aeronaves C-105. Como dito anteriormente, nas condições atuais, ela recebe aeronaves C-98”, confirmou o Exército. 

Atualmente, a pista do Surucucu passa por obras de recuperação. Para o trabalho, a Força Aérea Brasileira lançou sobre a pista “36 toneladas de materiais de reparo e equipamentos como compactador de solos, cortadora de asfalto e soprador”, que pousam amparados por pára-quedas. 

O ministro Paulo Sérgio contrapôs ainda um segundo argumento para recusar a ajuda pleiteada pela Polícia Federal e o Ministério Público Federal: “a falta de indicação da fonte de recursos financeiros indispensáveis ao custeio das atividades abarcadas no pleito, considerando que esta pasta [da Defesa] não possui ação orçamentária destinada ao aporte dessa natureza”. 

Em um texto de divulgação, a Força Aérea Brasileira confirma que a pista do Surucucu tem capacidade para receber helicópteros, inclusive de grande porte, com capacidade para até 20 passageiros.

As Forças Armadas passaram a cobrar pelos custos de operações graças a um decreto assinado em 2020 por Jair Bolsonaro e seu ministro da Economia, Paulo Guedes.  O decreto faz com que operações como a solicitada por PF e MPF na Amazônia passem a depender da boa vontade de quem tem a chave do cofre. Dois policiais federais acostumados a realizar operações na Amazônia me relataram que ficavam de mãos atadas ao se depararem com a exigência. Às vezes, segundo um deles, o próprio Ministério da Justiça alegava não ter dinheiro para arcar com os custos apresentados. “O Exército agora é uma empresa de prestação de serviços”, ironizou outro.

Via assessoria de imprensa, o Ministério Público Federal de Brasília informou que jamais recebeu uma resposta oficial de Paulo Sérgio a respeito da decisão de negar o apoio solicitado pela procuradora Eliana Torelly. A única resposta que a 6a CCR recebeu do ministro da Defesa foi o ofício de 18 de outubro, em que Paulo Sérgio informava estar enviando o pleito ao Ministério da Justiça. Já o MPF de Roraima me disse que à época encaminhou ao Ibama um pedido semelhante ao feito ao Ministério da Defesa. “O Ibama atendeu o pedido e realizou a operação no ponto indicado pelo MPF”.

Também perguntei ao Ministério da Defesa por que o ex-ministro Paulo Sérgio ignorou o planejamento feito pelo delegado José Roberto Peres, se ele não sabia que a pista do Surucucu estava apta a receber operações de aeronaves como as do tipo solicitado pela PF e por qual motivo descartou antecipadamente a operação sem tentar um ressarcimento de custos. A pasta, atualmente comandada por José Múcio Monteiro, se limitou a dizer que mantém o que está dito no ofício de 23 de novembro passado, assinado por Paulo Sérgio.

O Ministério da Justiça, atualmente comandado por Flávio Dino, não soube informar se a operação de apoio foi realizada ou não, e me orientou a procurar a Polícia Federal. A PF confirmou que não houve operação. Não consegui contato com o ex-ministro Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira.

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