Desde 1º de janeiro, contamos com um Ministério das Mulheres; um dos Direitos Humanos; um da Igualdade Racial; e um dos Povos Originários no lugar da amálgama bolsonarista que foi o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos de Damares Alves. Com filiação religiosa pentecostal, ela colocou a família no centro de suas políticas. A retirada do termo do nome dos ministérios é bom sinal, e o governo Lula indica que vai mudar a rota perigosa em que a ex-ministra nos colocou – já que é justamente no seio familiar que mulheres, crianças e adolescentes mais sofrem violência.
Os rumos tomados por Damares desdobraram-se de dois fatores, um local e outro mais amplo, ligado à ascensão da direita global. Começo pelo segundo, sua filiação à agenda antigênero internacional. Surgida nos anos 1990 nos debates católicos conservadores, ela é uma reação do Vaticano e de pensadores religiosos diante das propostas de acordos e tratados internacionais – firmados por meio da ONU e em torno das Conferências do Cairo e Beijing – que faziam uso do termo “gênero” na defesa de direitos das mulheres e minorias.
O movimento antigênero questionava certas ideias feministas e de igualdade de direitos entre homens e mulheres. Particularmente, aquelas ligadas à tentativa de se construir direitos reprodutivos e o reconhecimento do aborto enquanto uma questão de saúde pública. A partir dessa visão impulsionada pela igreja, o conceito de gênero seria uma “ideologia” que visaria destruir as famílias e o casal heterossexual. Aqui, a família nuclear heteronormativa aparece como “família natural”, por oposição ao gênero como algo falso e artificial.
Essa agenda se alia a um discurso muito promovido no Brasil, que costuma responsabilizar as famílias supostamente “desestruturadas” pela violência urbana ou pela rebeldia de alunos no ambiente escolar, culpando muitas vezes o divórcio ou a emancipação das mulheres trazida pelo feminismo. O fato de que muitas famílias são chefiadas por mulheres – no censo de 2010, era o caso de 37,3% dos lares, quase nove a cada 10 deles sem a presença de um cônjuge – aparece como um suposto problema social. No entanto, os arranjos familiares no Brasil sempre foram mais variados do que o ideal de família urbana fundada no casal heterossexual, como tantos estudos históricos já demonstraram.
O modelo ideal de família heteronormativa formada por casal e filhos, vivendo em um domicílio independente, foi promovido no antigo governo como se a família fosse o sujeito dos direitos a ser defendido. Vista como unidade básica da sociedade, a manutenção das famílias foi privilegiada pelos serviços de atendimento à violência doméstica, que passaram a insistir na conservação do núcleo familiar em lugar da proteção efetiva às vítimas de violência doméstica, reforçando que elas devem buscar a harmonia e a recomposição familiar mesmo em contexto de abusos, com o fim de evitar uma separação.
É resultado dessa perspectiva a proposta feita pelo governo Jair Bolsonaro de um corte de 94% da verba destinada a políticas de combate à violência contra mulheres em 2023 – assim como o esforço de Damares para que crianças estupradas não tivessem acesso ao aborto legal, em casos que ganharam destaque na imprensa nos últimos anos.
Vem também daí o reforço de estereótipos de gênero que aprisionam mulheres à função de mães e cuidadoras do lar, dedicadas aos filhos e ao marido, enquanto o homem mantém maior poder, assumindo o papel de autoridade e a responsabilização pelo sustento. “Meninas vestem rosa, meninos vestem azul” foi, afinal de contas, o mote do governo, inspirado pelo movimento antigênero internacional.
O maior desafio será enfrentar o tanto que o foco na família agrada ao Congresso conservador.
Ao analisarmos os dados de violência doméstica e feminicídios, fica claro que esses estereótipos estão imbricados às agressões. Ou seja, muitas vezes, uma mulher é agredida ou mesmo assassinada por seu companheiro por não cumprir o ideal de esposa imaginado por ele – e promovido oficialmente nos últimos quatro anos pelo governo. É no espaço doméstico, lembremos, que essas duas formas de violência mais acontecem. Segundo o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 65,5% dos feminicídios foram cometidos na residência da vítima. Essa ênfase na família e a redução da verba para políticas de atendimento às vítimas de violência tende, no médio prazo, a gerar um aumento dos casos de agressões e feminicídios.
O modelo ideal de família, no entanto, não é aquele que realmente protege as crianças, como quis fazer crer a ex-ministra. O mesmo anuário aponta ainda para cerca de meio milhão de estupros por ano, 75,5% deles cometidos contra menores de 14 anos – ou seja, estupros de vulnerável – e apenas 10% efetivamente denunciados. Praticamente nove a cada 10 vítimas de até 13 anos são meninas, e 80% de seus agressores são conhecidos delas – são pais, padrastos, parentes, vizinhos, amigos, conhecidos da família.
A verdadeira pauta de direitos humanos não é a defesa da família. Se os dados apontam que as relações familiares são geradoras de conflitos e agressões contra mulheres e crianças, é preciso retomar a defesa das mulheres, das crianças e adolescentes – o que, muitas vezes, passa por protegê-las de núcleos familiares marcados pela desigualdade e pela repetida violência.
O maior desafio para essa mudança é o quanto o foco na família agrada a amplos setores conservadores que tomaram o Executivo por quatro anos e seguirão presentes no Congresso, onde o discurso antigênero vem ganhando espaço desde o início dos anos 2000 e mantém sua força. Encampado por amplos setores das bancadas religiosas, ele permitiu inclusive a coalizão entre evangélicos e católicos conservadores.
Essa aliança continua atuando e já vinha marcando sua posição em diversas propostas legislativas desde o governo Dilma – algumas delas, projetadas em torno de figuras de grande poder político, como Eduardo Cunha, Silas Malafaia, ou Marco Feliciano. Sua força política foi materializada, por exemplo, na retirada do termo “gênero” do Plano Nacional de Educação, em 2014, e no domínio que conseguiram em postos chave, como a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.
Com um Congresso repleto de expoentes do bolsonarismo – como a própria Damares Alves, agora senadora pelo Distrito Federal – retirar da unidade familiar o foco que ganhou nos últimos quatro anos será um desafio. Mas os direitos das mulheres, estejam eles no campo do enfrentamento à violência ou da autonomia sexual e reprodutiva, só avançarão se o governo Lula entrar nesta batalha, como indica fazer ao recompor o Ministério das Mulheres, comandado por Cida Gonçalves, com novas pastas e secretarias voltadas à promoção de direitos humanos.
Outro sinal positivo veio da nova ministra Cida Gonçalves, que destacou em seu discurso de posse na terça-feira, dia 3, que o antigo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos levou a cabo um “projeto de destruição” em que “a mulher como sujeito de direitos só foi vista e pensada dentro de uma construção determinada de família patriarcal”. Ela prosseguiu: “A família no singular apaga a diversidade brasileira e a centralidade da mulher enquanto foco de elaboração e implementação das políticas. Há famílias plurais e no plural. Este é um ministério que as reconhece e que as acolhe”.
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Agradeço à Jacqueline Moraes Teixeira e à Marília Moschkovich, que me auxiliaram nessa reflexão.
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