Apenas duas semanas após a eleição de Bolsonaro, a Folha publicou um editorial intitulado “Ensaio de otimismo — Agenda liberal e formação da equipe encorajam previsões mais favoráveis para a economia”. Os donos do jornal se mostraram otimistas com o então governo eleito. Segundo eles, “a agenda liberal do presidente eleito” e a “equipe gabaritada de Paulo Guedes” seriam o grande motivo desse otimismo.
Corta para 2022. Apenas duas semanas após a eleição de Lula, a Folha publicou um editorial intitulado “Mau começo — Lula ignora que responsabilidade fiscal é social e mina confiança em seu governo”. Os donos do jornal se mostraram pessimistas com o governo eleito. Segundo eles, “Lula conseguiu derrubar grande parte das esperanças de que seu governo irá adotar uma política econômica racional e socialmente responsável”.
A presença de Paulo Guedes no governo Bolsonaro trouxe otimismo para a turma da Faria Lima e outros tarados pela agenda neoliberal, como os donos da Folha. O discurso golpista e fascista de Bolsonaro não atrapalhou esse otimismo. O posto Ipiranga estava ali para garantir o enxugamento do Estado com privatizações e cortes nos gastos públicos. Já a promessa de Lula de que aumentará os gastos com serviços públicos prestados aos que mais dependem do Estado — os mais pobres — dá calafrios nos faria limers e na maioria dos donos da imprensa. É o desprezo pelos mais pobres que norteia os humores dos ricos obcecados pelo Estado mínimo.
Nas últimas semanas temos assistido à consolidação desse sufocamento dos gastos públicos em nome da responsabilidade fiscal. O processo de transição trouxe à tona a hecatombe promovida pela agenda ultraliberal de Paulo Guedes. O país está falido. O fim do governo Bolsonaro escancara a realidade de um Estado agonizante, que não tem dinheiro nem para comprar papel higiênico para as universidades. O cumprimento do teto de gastos é a justificativa para o corte de verbas destinadas a áreas essenciais como Educação e Saúde. É revoltante constatar que essa responsabilidade fiscal de araque seja pregada no último mês de um governo que arrombou o teto de gastos nos meses anteriores para comprar votos através de orçamento secreto. Revoltante, mas não surpreendente. O cinismo é uma das grandes marcas do bolsonarismo.
Dito isso, é importante registrar que a situação de calamidade em que nos encontramos não é resultado de uma crise criada por um governo trapalhão, mas da consolidação de um projeto de destruição do Estado que não começou no governo Bolsonaro. Ele vem desde a derrubada do governo Dilma, cujo objetivo foi justamente o de dar fôlego a esse processo de sufocamento do Estado. O teto de gastos implantado por Michel Temer, com apoio maciço da imprensa, do alto empresariado e dos mercados, representou uma camisa de força no Estado brasileiro. O trágico fim do governo Bolsonaro é o ponto final da Ponte para o Futuro construída por Temer.
O novo bloqueio de gastos do governo federal no Orçamento de 2022 prejudicou várias áreas e interrompeu diversos serviços fundamentais do país. Os cortes chegam a quase R$ 6 bilhões. A administração do governo está paralisada porque não há mais dinheiro para nada. Coisas básicas como a emissão de passaportes pela Polícia Federal e a manutenção dos carros da Polícia Rodoviária Federal foram prejudicadas. As áreas mais afetadas pelos cortes são justamente as que o bolsonarismo mais desprezou durante o mandato: educação e saúde.
No governo Bolsonaro, o Ministério da Educação, o MEC, virou cabide de emprego para lunáticos saídos da escolinha do professor Olavo de Carvalho. Nos quatro anos de bolsonarismo, a pasta teve cinco ministros diferentes, todos sem nenhuma experiência administrativa no setor, mas com muito fanatismo ideológico. O MEC virou um instrumento de luta contra o marxismo cultural — esse monstro fabricado pela mente doentia de Olavo de Carvalho. Foram quatro anos de ataques ao Enem, perseguição a professores, precarização da pesquisa científica e muita, mas muita corrupção. A pasta sofreu um desmonte sem precedentes. O orçamento previsto pelo governo para o MEC no próximo ano é de R$ 12 a 15 bilhões abaixo do montante mínimo para o básico funcionar.
Falta dinheiro para coisas básicas como pesquisas, livros didáticos, transporte escolar, merenda e papel higiênico. O desenvolvimento da ciência no país sofreu um tombo nunca antes visto. Os cortes levarão a um calote que atingirá 200 mil pesquisadores da Capes e 14 mil médicos residentes de hospitais federais. O funcionamento básico de todas as universidades federais está ameaçado. O Brasil virou uma nação em ruínas.
Mas isso não aconteceu da noite pro dia. A destruição do MEC talvez seja o projeto mais bem sucedido do governo Bolsonaro. Como esquecer da declaração do mais olavista dos ministros, Ricardo Velez, que afirmou que “universidade não é para todos, mas somente para algumas pessoas”?
O projeto de destruição da saúde pública também tem sido bem sucedido. Depois de acumular quase 700 mil mortes por Covid, o país pode ter que descartar 13 milhões de doses de imunizantes contra a doença com prazo de validade prestes a expirar por falta de planejamento. Segundo o TCU, trata-se de um prejuízo de quase R$ 2 bi. O Ministério da Saúde tem resistido aos pedidos de informações feitos pelo governo de transição. Não se sabe qual é o estoque de medicamentos na rede pública. Não se sabe quantas pessoas estão na fila em busca de atendimento no SUS. Não se sabe sobre a previsão de aquisição de vacinas do Programa Nacional de Imunizações. Não se sabe nada.
O que se sabe é que Bolsonaro bloqueou mais de R$ 1,6 bilhão do orçamento da Saúde. Soma-se a isso mais R$ 2,23 bilhões que ele havia bloqueado anteriormente. São quase R$ 4 bilhões em cortes na Saúde. Trata-se de uma tragédia para a vida das pessoas que dependem do SUS, mas mais um dia normal para os tarados do Estado mínimo que têm plano de saúde que cobre o Sírio Libanês.
A aprovação da PEC da Transição nesta semana é uma vitória de Lula na contenção dos danos da tragédia instalada por Bolsonaro. O texto da proposta prevê a destinação de R$ 145 bilhões para o pagamento do Auxílio Brasil, bem como um furo do teto de gastos em R$ 23 bilhões, que ajudariam o governo a honrar seus compromissos deste final de ano.
As informações colhidas pelo governo de transição mostram muito mais do que meros cortes de verbas, mas uma completa destruição do Estado. Mesmo com essa calamidade promovida por Paulo Guedes, o mercado e setores da imprensa seguem cobrando do novo governo o uso da mesma cartilha que nos trouxe até aqui. O que vemos hoje não é apenas resultado de um governo comandado por um fascista maluco. É a conclusão de um projeto antigo apoiado pelo mercado financeiro e pelo grosso da imprensa. A dilapidação do Estado brasileiro é um projeto dos mais ricos. Se a Folha e os mercados estão pessimistas com o governo, então temos motivos para sonhar com um país melhor.
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