Ao Intercept, Cremesp afirma que falar em violência obstétrica é ofender médicos

Conselho de Medicina de São Paulo se nega a admitir que médicos violam mulheres no parto rotineiramente – e que é seu papel fiscalizá-los e puni-los.


O Conselho Regional de Medicina de São Paulo enviou ao Intercept uma resposta à nota publicada ontem neste blog. No texto, mostramos como o Cremesp acionou a OAB-SP contra uma advogada por ensinar mulheres a identificar, prevenir e denunciar a violência obstétrica. Segundo o conselho, isso configura uma “evidente” ofensa à categoria médica. Horas depois, recebemos uma nota do órgão, que reproduzimos aqui em sua íntegra, seguida de comentários:

Sobre o envio de ofício à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), referente a curso sobre “violência obstétrica” e “parto humanizado”, que seria ministrado pela referida advogada, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) esclarece, em primeiro lugar, que em nenhum momento teve o intuito de cercear a liberdade de expressão da profissional ou de deslegitimar seu trabalho frente à advocacia, mas sim, de chamar a atenção para os riscos do uso da expressão “violência obstétrica”.

O termo “violência obstétrica” foi considerado inadequado pelo Ministério da Saúde, ao emitir parecer, em 2019, afirmando que a expressão tem “conotação inadequada e não agrega valor à assistência à saúde, prejudicando a busca pelo cuidado humanizado no continuum gestação-parto-puerpério”. Em consonância, o Conselho Federal de Medicina (CFM) manifestou que o termo é inapropriado e deve ter seu uso abolido, visto que estigmatiza a prática médica e interfere de forma prejudicial na relação médico-paciente.

O Cremesp defende que a assistência obstétrica deve respeitar os protocolos assistenciais, sempre visando o binômio materno-fetal. A formação médica, alicerçada no Juramento de Hipócrates, tem como um de seus princípios fundamentais a beneficência — e não o contrário. Expressões como “violência obstétrica” fragilizam a relação médico-paciente e estigmatizam toda uma classe profissional.

Atos de violência devem ser encarados e rigorosamente punidos como crimes que são, e não atribuídos à Medicina, que tem como principal objetivo a atenção e o cuidado ao paciente.

É verdade que, desde 2019, o Ministério da Saúde da Saúde de Bolsonaro tenta fingir que a violência obstétrica não existe. Como mencionamos em uma notícia sobre o tema na época, a pasta seguia na esteira do CFM, que já havia caracterizado a expressão como “uma agressão contra a especialidade médica de ginecologia e obstetrícia”.

Tanto o ministério quanto os conselhos transformam vítimas em agressoras ao criar a narrativa corporativista de que a violência obstétrica é um termo criado para difamar médicos, e não um abuso cometido por maus profissionais contra uma a cada três mulheres no Brasil.

Um abuso, vale lembrar, que os próprios conselhos regionais de medicina e o CFM têm o papel institucional de combater. Afinal, são essas entidades – ao menos em teoria – as responsáveis por fiscalizar a conduta dos médicos e lhes aplicar penalidades, se e quando necessário.

Mas não parece ser levado em consideração pelo Cremesp que a violência praticada pelos maus médicos “interfere de forma prejudicial” em sua relação com as pacientes. É a conscientização sobre a existência desses abusos, aparentemente, que “fragiliza” relações. Da mesma forma, é a luta contra a violência obstétrica, e não a prática da violência obstétrica em si que, para o conselho, “estigmatiza” a obstetrícia.

O Cremesp arremata sua nota insinuando que quem luta contra a violência obstétrica está perseguindo “a Medicina” – esse ente tornado intocável e romantizado por conselhos profissionais que se negam a enxergar que, sim, há médicos violentando mulheres na gravidez e no parto rotineiramente. E que a postura dos conselhos diante desses casos é uma das grandes razões para que eles sigam existindo.

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