Quase 3 mil armas de fogo registradas em nome de caçadores, atiradores e colecionadores, os CACs, além de clubes de tiro, foram roubadas ou extraviadas no Brasil desde janeiro de 2018. É um problema que tende a se agravar em 2022. Se for mantida a média registrada entre janeiro e maio, os casos de armas legais cujo destino passou a ser ignorado pelas autoridades irão ultrapassar, de longe, os dos quatro anos anteriores.
Desde janeiro de 2018, 2.893 armas legais de CACs e clubes de tiro foram roubadas ou extraviadas no Brasil. Os dados, reunidos pelo comando-geral do Exército, foram entregues ao Intercept por meio de um pedido feito via Lei de Acesso à Informação.
Entre 2018 e 2020, os casos de armas perdidas se mantiveram num patamar mais ou menos estável, entre 509 e 606 ao ano – apenas casos em que houve comunicação do furto ou extravio. Em 2021, houve um salto para quase 700. Se a média atual for mantida, serão mais de 1.100 casos em 2022.
Os dados também permitem constatar que a política armamentista implementada por Jair Bolsonaro, combinada à pouca fiscalização, resultou em um aumento no número de armas legais em circulação – e também no aumento do sumiço delas, seja por roubo ou extravio.
Em 2021, pouco mais de 58 armas foram extraviadas por mês. Se o restante de 2022 mantiver o ritmo registrado em seus cinco primeiros meses, o ano irá fechar com quase o dobro de armas legais extraviadas – 95 por mês. Nessa estimativa, chegaríamos a 1.142 armas perdidas ou roubadas num único ano.
São Paulo e Rio Grande do Sul lideram, com folga, o ranking dos estados com mais casos. Nada menos que 1.082 armas que pertenciam a CACs e clubes de tiro hoje têm paradeiro desconhecido em São Paulo desde 2018; no Rio Grande do Sul, são 721. Os dois estados reúnem mais de 200 clubes de tiro e 250 mil CACs ativos.
No ano passado, uma reportagem da Agência Pública revelou que, em média, os CACs perdiam três armas por dia. Embora também demonstrem que os extravios e roubos de armas estão aumentando, os números enviados pelo Comando do Exército ao Intercept são ligeiramente menores do que os informados à Pública. Questionado, o Exército não explicou o por quê.
A guinada armamentista
Foi por meio de um decreto que, em 2019, Jair Bolsonaro expandiu o limite de armas e munições permitidas para os CACs. Até então, eles podiam ter, no máximo, 16. Com a mudança, quem tem o registro pode ter até 60 – quase quatro vezes mais. E 30 delas podem ser de calibre restrito, caso dos fuzis.
Em fevereiro de 2021, Bolsonaro tentou afrouxar ainda mais as regras. Com quatro decretos, autorizou CACs a portarem – ou seja, carregarem para todo lado – até duas armas, além de permitir que menores de idade participassem de clubes de tiro. O presidente também tentou retirar a exigência de que candidatos a CAC comprovem aptidão psicológica para usar armas, que precisa ser chancelada por um psicólogo cadastrado na Polícia Federal. A tentativa, no entanto, foi frustrada pela ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, que suspendeu 13 pontos dos decretos.
Mas as políticas de afrouxamento surtiram efeito. Segundo o último Anuário de Segurança Pública, os registros de CACs ativos saltaram 474% no governo Bolsonaro: de 197 mil, em 2019, passaram a 674 mil em maio de 2022. E não há dúvidas de que esse pessoal compra armas. Segundo a Polícia Federal, entre 2020 e 2021, os registros de novas armas cresceram 114,5%.
De 2019 em diante, mais de 550 mil brasileiros pediram registro para se tornarem CACs. Com isso, atualmente órgãos públicos já têm arsenais menores do que o reunido por particulares, registrou o Anuário de Segurança Pública. O número de armas de uso amador já supera o das polícias militares somadas. De acordo com dados do Sistema de Gerenciamento Militar de Armas publicados no Anuário, quase 58% das armas brasileiras estavam nas mãos de CACs até o final de maio de 2022.
Mas Bolsonaro não apenas facilitou o acesso às armas. Ele também reduziu a fiscalização sobre o uso e o porte delas. O governo de extrema direita revogou três portarias que facilitavam a fiscalização e rastreamento de armas e munições. De acordo com o Instituto Igarapé, uma ONG que monitora as seguranças pública, climática e digital e suas consequências para a democracia, o dinheiro disponível para a para fiscalização de lojas, clubes de tiros e CACs caíram 15% entre 2018 e 2020.
Nas mãos do PCC
Os resultados dessa política desastrosa começam a aparecer. Em junho, a Polícia Civil de São Paulo encontrou armas legais registradas em nome de CACs na casa de pessoas envolvidas com o PCC, o Primeiro Comando da Capital. Anísio Amaral da Silva, um dos suspeitos de chefiar uma quadrilha que comanda empresas de ônibus na zona leste da capital, tinha em sua casa seis armas – entre elas, um fuzil e uma metralhadora. Todas haviam sido compradas de forma legal por um parente sem antecedentes criminais.
No endereço de Ubiratan Antonio da Cunha, outro suspeito de relação com o PCC, a polícia encontrou duas pistolas legalizadas. Sem antecedentes criminais, Cunha também possui licença de CAC. Já no caso de Jair Ramos de Freitas, nem uma longa lista de crimes e passagens pela polícia o impediu de conseguir o registro de CAC – e de comprar armas legais em seu nome. A principal hipótese da polícia é a de que laranjas estejam vendendo armas legais aos criminosos.
Em Macapá, o dono de um clube de tiro viu nos próprios clientes, cheios de armas e munições em casa, uma oportunidade. De acordo com uma investigação da Polícia Civil do Amapá, ele repassava os endereços em que as armas estava registradas registrados no clube para criminosos, que planejavam assaltos.
Todos integravam uma quadrilha suspeita de vender armas e munição ilegalmente. “A investigação conseguiu comprovar que membros da organização criminosa realizavam esse comércio ilegal de armas de fogo através de um despachante que era sócio de um grupo de tiro. Ele se aproveitava da própria condição para repassar as informações dos clientes”, disse o delegado Estefano Santos ao G1.
Pode piorar
Jair Bolsonaro ainda tenta alterar o Estatuto do Desarmamento com um projeto de lei que atualmente está no Senado. O PL 3723/2019, de autoria do poder Executivo, propõe derrubar, por exemplo, o limite máximo de armas e munições compradas por CACs. A nova redação estabelece apenas um mínimo (sim, um mínimo) de 16 armas. O texto também dispensa o uso de dispositivos de segurança, identificação e rastreabilidade em armas e munições, hoje obrigatórios.
O projeto de lei já foi aprovado pela Câmara dos Deputados no ano passado, e deveria ser votado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado em março. Ele foi, no entanto, retirado da pauta graças a um pedido de alguns senadores. Entre eles, estão Eliziane Gama, do Cidadania do Maranhão, Simone Tebet, do MDB do Mato Grosso do Sul, e Eduardo Girão, do Podemos cearense. Após defenderem o adiamento da votação do texto, os três relataram ter sofrido ameaças de apoiadores do projeto.
Em uma nota técnica sobre o PL 3723/2019, publicada em dezembro de 2021, os institutos Sou da Paz e Igarapé alertam para o risco de desvio de “grandes arsenais para a ilegalidade”. “São incontáveis casos de roubos e desvios de armas e munições de clubes de tiro e CACs para o crime organizado, incluindo ações relacionadas ao domínio territorial por facções criminosas, milícias, e ao sitiamento de cidades durante grandes assaltos a agências bancárias”, diz o documento, que dá como exemplo o caso de Ronnie Lessa.
O ex-policial, acusado de ser o assassino de Marielle Franco e Anderson Gomes, era atirador desportivo. Contra ele, também pesa a acusação de usar autorizações de importação para traficar fuzis.
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