Em dezembro de 2019, a dona de casa Josileide da Gama foi forçada a entregar os dois filhos a uma irmã. A justiça não permite que a mãe fale com as crianças por telefone, e Gama não deve chegar a menos de 300 metros dos meninos. Isso porque o Judiciário a considera suspeita de negligência e de expor os filhos a um “ambiente inadequado” – segundo ela, o terreiro de Jurema que funciona em sua casa. Pela forma que a religião afro-ameríndia é descrita no processo, a defesa acredita que a razão da suspensão da guarda seja apenas fruto de intolerância religiosa.
Juremeira há oito anos, Gama é mãe de santo, vive com uma deficiência física e morava com os filhos e o pai de santo Joalisson Gomes da Silva, seu cuidador, até a 1ª Vara da Infância e Juventude de João Pessoa decidir puni-la por “não promover os cuidados essenciais com alimentação, educação, higiene, bem como expor os filhos em um ambiente inadequado”. Apesar de esse tipo de caso ter o prazo de 120 dias para ser decidido, ainda não houve veredito. Desde a suspensão, Gama só viu os filhos – hoje com 11 e 15 anos – quatro vezes, em março do ano passado.
O caso chamou a atenção do então presidente da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB na Paraíba, Franklin Soares, que assumiu a defesa depois da suspensão da guarda. “A denúncia do Ministério Público é recheada de termos que considero preconceituosos. Por exemplo, quando se fala que o culto da Jurema é uma algazarra, regada a bebida, fumo e com presença de pessoas de índole duvidosa”, me disse o advogado.
De acordo com Gama, o terreiro fica no último cômodo da casa, enquanto o quarto das crianças fica no primeiro, o que não as colocaria em contato com as atividades religiosas. “Eu amo a minha religião e amo os meus filhos. Eu não abro as portas da minha casa para o mal, mas, sim, para ajudar as pessoas”, explicou.
Encontrei disputas judiciais semelhantes em Pernambuco, Rio de Janeiro, Distrito Federal e São Paulo. Em todas elas, a inserção de crianças e adolescentes em cultos religiosos de matriz afro-ameríndia ou o contato com a religião se transformaram em argumento para pedidos de suspensão ou de perda do poder familiar – o termo jurídico para a supressão do direito de guarda pelos pais ou responsáveis legais. Segundo dois juristas e uma pesquisadora da Universidade do Estado de São Paulo, a Unifesp, essa situação tem sido cada vez mais frequente.
Ex-presidente da Comissão de Liberdade Religiosa da OAB do Distrito Federal, a advogada Patricia Zapponi afirmou que, nos últimos quatro anos, viu um aumento desse tipo de caso. “Dentro do direito de família, não se tinha tanta ocorrência com relação à religião. Hoje, você já vê contendas gigantes postuladas em cima disso”, me contou. No escritório dela, independente da Comissão da OAB, chegaram 18 casos nos últimos três anos, 15 deles envolvendo religiões de matriz africana.
O advogado Hédio Silva Junior, ex-secretário de Justiça do Estado de São Paulo e atual coordenador executivo do Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-brasileiras, contabilizou três casos em que atuou diretamente, desde 2019, além de outros três de que tomou conhecimento por parte de colegas – todos relacionados ao contato de crianças e adolescentes com rituais de religiões afro. Até então, Junior só havia atuado em uma situação do tipo, em 2007.
“Esses casos que têm chegado até nós são a ponta de um iceberg imenso. Certamente há milhares espalhados pelo país”, acredita. Em 18 de abril, o Uol revelou que as denúncias de intolerância religiosa triplicaram no estado de São Paulo entre 2016 e 2021. Há cinco anos, as delegacias paulistas registraram 5.124 ocorrências do crime. Já no ano passado, o número subiu para alarmantes 15.296 registros.
A questão preocupa os advogados, porque acontece no mesmo momento em que o Brasil como um todo registra um aumento das denúncias de violações de direito à liberdade de religião e crença. Em 2019, segundo dados obtidos por nós, por meio da Lei de Acesso à Informação, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos registrou 714 denúncias de intolerância religiosa pelo Disque 100. Em 2020, foram 1.388, ou seja, 94% a mais que no ano anterior. Até então, na última década, o ano com mais denúncias era 2016, com 759 registros, de acordo com uma base de dados disponível no site do Ministério. O dado, porém, diverge do obtido por nós via LAI, em que constam 758. Em 2021, os dados mostram 1.021 denúncias.
O Painel de Dados da Ouvidoria do Ministério mostra que, entre 2021 e 2020, foram registradas 83 violações de direito à liberdade de religião e crença cujas vítimas eram crianças ou adolescentes. Os números, porém, podem ser ainda maiores. Os dados obtidos por nós via LAI mostram que o Ministério registrou 124 violações por intolerância religiosa com vítimas de 17 anos ou menos em 2021 e 2020. Dessas, 102 ocorreram apenas em 2021. Em 15 casos, a religião da vítima era o candomblé, em outros 10, a umbanda.
Como as disputas por guarda são analisadas em segredo de justiça, não há como saber em quantos pedidos de destituição a religião foi a causa ou pelo menos um argumento. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, 3,8 mil destituições do poder familiar foram julgadas procedentes até outubro do ano passado. Em 2020, considerando o ano todo, foram 4,9 mil, quase 240% a mais do que em 2019.
‘Estou esquecendo o cheiro deles’
Em setembro de 2019, depois de receber uma denúncia que a defesa suspeita ter vindo da irmã de Gama, o Conselho Tutelar da Região Norte de João Pessoa emitiu um relatório em que afirmava que Josileide Gama era negligente com os filhos e praticava violência psicológica contra eles. Segundo o documento, as crianças não tinham hora para comer e dormir, e faltavam cuidados com higiene e educação. Além disso, há uma afirmação na denúncia que leva a mãe e seu advogado a acreditarem que ela está sofrendo intolerância: a de que as crianças viviam em um ambiente atribulado, onde eram realizadas atividades religiosas “regadas a música alta e confusões até a madrugada”.
O relatório foi apresentado ao Ministério Público, que denunciou a situação em novembro do mesmo ano ao Judiciário da Paraíba. Segundo o MP, o Conselho Tutelar estava acompanhando as crianças desde 2018, devido às acusações de que elas viviam em um ambiente de farra, bebidas e cigarros. No relatório, o conselho traz uma “denúncia expressa de que a genitora costumava colocar pessoas dentro de casa para os rituais religiosos, que envolviam álcool e outras drogas e poluição sonora, que aconteciam no período noturno”.
Em 8 de novembro de 2019, quatro dias depois da denúncia, o juiz Adhailton Porto decretou a suspensão do poder familiar de Gama, seu afastamento dos filhos e a guarda provisória das crianças à sua irmã por até 90 dias. A decisão judicial não fala expressamente, em nenhum momento, de religião, mas alega que há indícios veementes de que os irmãos “estão expostos à situação de risco sob a guarda da genitora”.
Entre outros sinais de intolerância, o advogado de defesa aponta que as denúncias fazem referências ao título de pai de santo sempre entre aspas. “A denúncia é carregada com intolerância religiosa, posto que eu nunca vi o termo pastor ou o termo padre ser apresentado em documento oficial algum entre aspas”, avaliou Franklin Soares.
Outra alegação do Ministério Público é a de que o pai de santo teria agredido uma das crianças e que seria má influência para elas. A presença do homem seria desconfortável e causaria medo. A defesa diz que as crianças mudaram a percepção e depoimento sobre o homem depois que saíram da casa da mãe. “Eu acho um descaso grande. Uma coisa que eu não fui ouvido, não fui chamado. Estou levando uma culpa sem merecer”, diz Joalisson. Gama as desmentiu: “ele é uma pessoa maravilhosa, cuida de mim, dos meus filhos, me ajuda financeiramente”. O advogado também reforçou que a alegação não procede. “O Ministério Público e o Juízo da Infância e da Juventude não estão entendendo que essas cenas de violência foram protagonizadas pelo pai deles, o ex-marido da mãe de santo”, afirmou Soares.
A defesa de Gama questiona ainda o prazo dilatado para uma decisão definitiva, o que faz com que a mãe esteja sem os filhos há mais de dois anos. A decisão liminar deveria ter expirado em fevereiro de 2020, mas foi renovada em 24 de setembro por mais 120 dias. Ou seja, foram sete meses sem qualquer decisão judicial. “Quando a guarda de 90 dias termina, daí em diante é ilegal, pois não está amparada em NADA”, me escreveu Soares por mensagem de texto. O novo prazo deveria ter terminado em janeiro do ano passado, mas também foi prolongado sem que a justiça se pronunciasse. Apenas em maio de 2021, o juiz renovou o afastamento por tempo indefinido. Até agora, não há uma sentença. “Isso é uma amputação da figura materna na vida dos filhos”, afirmou Soares.
Nesse período, Gama chegou a comprar um chip de celular para poder se comunicar com os meninos. Em uma troca de mensagens rápida à qual tive acesso, um deles interrompe a conversa com a mãe, pois teme a chegada da tia. “Eu estou esquecendo o cheiro deles, não sei mais o que é um abraço. Nunca mais escutei essa palavra ‘mãe’. Escuto dos meus filhos de santo, mas da boca dos meus filhos, não”, lamentou Gama, em lágrimas.
Em nota, a promotora Soraya Nóbrega afirmou que não poderia me conceder entrevista, pois o processo está em segredo de justiça. Porém, reiterou que “o procedimento em questão não tem nenhuma relação com a prática religiosa da genitora, mas, e somente, com a conduta dela e com o seu dever de proteger os filhos menores de idade sob sua guarda”. Segundo ela, “não coube juízo de valor em relação à prática religiosa em si (que poderia ser de qualquer outra religião), mas a sua inadequação no ambiente no qual as crianças conviviam”.
O Ministério Público disse ainda que foram feitas diversas tentativas – não especificadas na nota – para que essa mãe pudesse, sem abrir mão da religião, cuidar dos seus filhos. “As crianças também foram ouvidas e manifestaram a insatisfação com os rituais na sua residência onde habitavam e com a presença da pessoa envolvida [o pai de santo Joalisson Gomes da Silva]”, afirmou o órgão em nota.
O Tribunal de Justiça da Paraíba afirmou que, se o prazo “estourou”, como dito, Gama deve procurar um advogado e questionar no processo. Soares afirmou que entrou com uma representação no CNJ, mas o órgão arquivou o pedido, pois julgou que não houve negligência judicial na questão.
Procurei também a irmã de Josileide, para a qual o Judiciário concedeu a guarda provisória das crianças. Joelma Gama desmente a relação da suspensão da guarda com questões de desrespeito à religião. “Eu não tenho intolerância religiosa com ninguém. Cada um tem a liberdade de escolher o que quer para a sua vida. Eu só tenho intolerância à irresponsabilidade. Se ela perdeu a guarda dos filhos, foi por conta de irresponsabilidade dela mesmo”, declarou.
Ritos demonizados
A maioria dos relatos que têm chegado ao conhecimento dos juristas que trabalham com terreiros de religiões afro-ameríndias mostra que o mais comum é uma mãe ser denunciada pelo pai, em meio a um processo de separação litigioso, depois de ela levar os filhos a um terreiro e iniciar as crianças na religião. Foi o que aconteceu com Juliana Arcanjo, denunciada em uma delegacia pelo ex-marido por crime de lesão corporal com violência doméstica agravada contra a filha, hoje com 12 anos.
O que Arcanjo fez foi levar a menina para participar de um rito de iniciação no candomblé, no interior de São Paulo, chamado de escarificação – cortes muito superficiais feitos na pele, em várias regiões do corpo, com o objetivo de oferecer proteção à pessoa. O ritual foi realizado em 2020 e, segundo a mãe, que também passou pelo procedimento, por interesse da própria criança. Em função da denúncia, levada ao Conselho Tutelar e ao Ministério Público, Arcanjo teve os poderes familiares suspensos em fevereiro de 2021 e até hoje não recuperou a guarda da menina.
“O pai tem a crença dele e julga a minha como errada, como prática satanista. Inclusive, já falou para a minha filha que, quando eu morrer, vou para o inferno por causa da minha religião”, ela me contou. A defesa alega que há intolerância religiosa na denúncia e, para exemplificar, compara a acusação de maus tratos com rituais praticados por outras religiões, como a circuncisão realizada por judeus e muçulmanos ou mesmo a colocação generalizada de brincos em bebês e crianças. “Eu nunca ouvi falar que algum judeu ou muçulmano teria ido para cadeia porque uma criança é circuncidada”, afirmou o advogado de defesa, Hédio Silva Junior.
Arcanjo foi absolvida na esfera criminal em 15 de julho de 2021. Na decisão, o juiz do Tribunal de Justiça de São Paulo Bruno Paiva Garcia afirmou que a tipificação da submissão da criança à escarificação como “crime de lesão corporal revela inaceitável intolerância religiosa”. De acordo com a sentença, “trata-se de uma lesão ínfima, insignificante, que não causou prejuízo físico, psicológico ou sequer estético à criança”.
O advogado de defesa aponta que existe a incidência de dois fatores: “o Conselho Tutelar, em uma manifestação absolutamente racista, preconceituosa e intolerante. E o pai, que também tem utilizado no processo o argumento da opção religiosa da mãe como argumento principal para manter essa guarda”.
Apesar da absolvição, a última vez que mãe e filha se encontraram foi em janeiro de 2021. Um juiz, agora, está escutando todos os envolvidos em entrevistas psicossociais para definir a sentença no processo de guarda. A mãe já foi ouvida, mas, segundo ela, o pai não compareceu na data prevista.
“Até para falar com vocês, eu passei o dia inteiro chorosa”, desabafou Arcanjo. “Saber que estou passando por essa situação, ser acusada de maltratar a sua própria filha, que você cuidou a vida inteira. O que ele está fazendo comigo não tem tamanho de crueldade”.
Em nota, o escritório de advocacia que representa o pai da criança, Satyro Sociedade de Advogados, afirmou não poder dar detalhes do caso, por correr em segredo de justiça, mas que “existem diversos outros fatos que não foram revelados pela genitora” e ainda estão sendo apurados. “Afirmamos ainda, com veemência, que o caso nada tem a ver com intolerância religiosa”, ressaltaram.
‘O Conselho Tutelar não vai na Igreja Católica reclamar que as crianças estão vendo o padre tomar um vinho’.
Residente do Distrito Federal, a advogada Patricia Zapponi já foi acionada pelo menos três vezes para ir até a delegacia defender uma mãe acusada de maus-tratos por levar um filho a um terreiro de religião de matriz afro-ameríndia.
No candomblé, por exemplo, a iniciação prevê que a pessoa fique no terreiro, em um quarto, recolhida, durante 21 dias. Nesse momento, há um renascimento para a nova vida, e são realizados rituais nos quais há também o corte de cabelo e as escarificações. “Há um desconhecimento das religiões de matriz africana, que tem ritos que, se você olhar a olho nu, vai dizer que é lesão corporal. Por isso, hoje oriento os terreiros para já avisarem ao Conselho Tutelar quando vão recolher uma criança, avisar que têm autorização dos pais”, explicou Zapponi.
Em alguns casos atendidos pela advogada, a avó era evangélica, e o pai e a mãe estavam se separando. “Ela ficou sabendo que a mãe levou a criança a um terreiro e fez uma denúncia ao Conselho Tutelar, chamou a polícia, para falar de cárcere privado”. Era como se a mãe estivesse deixando [o filho] sem comer, raspando a cabeça. “Foi preciso chegar e explicar que é um rito de passagem”, detalhou.
O caso mais famoso desse tipo no Brasil aconteceu Araçatuba, São Paulo, quando a manicure Kate Ana Belintani perdeu a guarda da filha por 17 dias, depois que a avó materna da criança alegou que a menina sofria maus-tratos em um centro de candomblé frequentado por Belintani. Na sentença que restituiu a guarda, o juiz afirmou que a própria adolescente, ao ser ouvida, disse estar de acordo com os ritos pelos quais havia passado. O laudo pericial também concluiu que não houve lesão corporal. “Minha filha sofre consequências [desse processo] até hoje, levo ela no psicólogo, no psiquiatra”, afirmou Belintani.
No Brasil, os pais podem perder o direito sob os filhos pelos seguintes motivos, de acordo com o Código Civil: morte dos pais ou da criança; emancipação; maioridade; adoção; e decisão judicial de destituição do poder familiar. A suspensão do poder familiar, como aconteceu com Josileide, é provisória, e pode ocorrer por uma denúncia em investigação. A denúncia pode vir via Conselho Tutelar, sendo investigada e acatada pelo Ministério Público, e em seguida encaminhada para o Judiciário. Há também pedidos de guarda dentro de um processo de separação entre os responsáveis legais.
Para a diretora nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família, Silvana do Monte Moreira, a classificação desses rituais como maus-tratos não tem amparo legal. “Não há qualquer possibilidade de uma religião de matriz africana, mesmo com todos os seus ritos, estar inserida em pontos que levem, segundo as leis que temos no Brasil, a uma suspensão do poder familiar”, disse.
Hédio Silva Junior complementa que um dos motivos para o crescimento dos casos de perda de guarda atrelados a possíveis intolerâncias religiosas é a penetração de religiosos neopentecostais nos Conselhos Tutelares. “Esses órgãos têm uma função institucional importantíssima no sistema de proteção e garantias dos direitos das crianças e adolescentes, mas estão se prestando a esse papel infame. Você não vê o Conselho Tutelar na Igreja Católica reclamando que as crianças estão vendo o padre tomar um vinhozinho. Então, é algo direcionado”, defendeu.
Terreiros se precavêm
Em 2019, Maria Estela viveu uma situação que nunca imaginou passar em seu templo de candomblé de nação Ketu, em uma cidade do interior de Goiás. A pedido de uma mulher que frequentava o local, iniciou o filho dela, então com 12 anos, na religião. Como parte dos ritos, a criança teve a cabeça raspada e a alimentação reduzida por alguns dias. O pai soube do ocorrido e denunciou ao Conselho Tutelar, que foi até o terreiro com a Polícia Militar para buscar a criança.
O episódio foi veiculado em veículos de imprensa locais como um resgate de uma criança maltratada em “rituais espirituais”. Pessoas foram até a frente do terreiro gritar. Maria Estela precisou ir até a delegacia prestar esclarecimentos. “Minha saúde era inabalável, mas a pressão psicológica foi tão grande. Eu fiquei um ano sem assistir televisão, sem pegar no celular, perdi clientes, minha vida foi para o buraco, porque fiquei totalmente desequilibrada”, lembrou ao conversar comigo.
Para evitar que casos semelhantes se repitam, hoje Maria Estela recorre a um mecanismo cada vez mais comum entre os terreiros do Distrito Federal e de Goiás: pede ao pai ou mãe que será iniciado na religião para preencher de próprio punho um documento reconhecendo que está ciente do que ocorrerá. Depois, o papel é levado para cartório, para reconhecimento de firma. “Infelizmente, a lei do nosso país não entende os cultos e as religiosidades de matrizes africanas”, se queixou.
Formalizar os terreiros e cuidar desse documento é uma orientação passada pela OAB do Distrito Federal para evitar novas criminalizações de ritos de iniciação de crianças e adolescentes. Para Pai Rodrigo Juremeiro, que mantém um templo em Valparaíso, estado de Goiás, e adotou a mesma prática de Maria Estela, o próprio fato de precisar haver um documento para iniciar uma criança na religião já mostra a diferença de tratamento. “A gente já vive nessa defensiva, né? Porque se a Constituição garante o direito de liberdade de credo, eu não precisaria, conceitualmente, ficar me prevenindo contra essas coisas”, argumentou. Para uma criança fazer uma crisma ou primeira comunhão, ritos católicos, por exemplo, esse não é um requisito.
Nas religiões afro-ameríndias, as tradições são passadas de maneira oral. Não há um acolhimento obrigatório para iniciar uma pessoa na religião, nem uma idade pré-determinada. “A macumba vê a criança e a infância de forma eufórica. A gente não precisa de um rito para limpar eles de qualquer pecado original. Não está na nossa cosmo-percepção de mundo. Então, o ingresso dela na religião, por meio de iniciações ou não, é visto sempre caso a caso”, explicou a professora da Unifesp e coordenadora do Grupo de Pesquisa LAROYÊ – Culturas Infantis e Pedagogias Descolonizadoras, Ellen de Lima Souza.
Para a pesquisadora, os processos de perda de guarda são mais um mecanismo de ataque e racismo religioso. “Não se está tirando só o direito da mãe, mas de toda uma comunidade. Você proíbe a criança de frequentar esse espaço onde ela é celebrada, ouvida, cuidada. Eles sabem muito bem que estão mexendo naquilo que é mais importante para a gente”, acrescenta Souza, que hoje acompanha um caso como os relatados aqui e tem conhecimento de pelo menos outras 15 crianças que estão imersas em processos de guarda cujos motes são a religião.
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