Em 2002, o ex-prefeito Celso Daniel, de Santo André, São Paulo, foi sequestrado e assassinado. Naquele mesmo ano, os irmãos do petista levantaram a hipótese de que o crime teria motivações políticas. Segundo a tese, a morte teria sido queima de arquivo, já que Celso Daniel teria conhecimento de um esquema de propinas envolvendo o PT e empresas de ônibus da cidade.
Mas todos os indícios e provas apontaram para um crime comum. A quadrilha que matou o prefeito foi presa pela Polícia Civil. Os integrantes já estavam na mira dos policiais como suspeitos de serem os responsáveis por uma onda de sequestros na região. Segundo a polícia, todos os casos seguiam o mesmo padrão: escolhiam-se vítimas em carros de luxo para fazer o chamado sequestro-relâmpago. Na maioria desses crimes, a vítima entregava o dinheiro e era liberada. Em outros, elas foram mortas como Celso Daniel. Com a confissão da quadrilha, a polícia então fechou o caso e concluiu ter sido um crime comum.
Os irmãos do prefeito não se conformaram com a conclusão do caso. Atendendo a um pedido deles, o Ministério Público reabriu a investigação ainda em 2002. Mesmo sem um mísero indício ou prova de crime político, a linha de investigação dos irmãos foi supervalorizada pelo MP e pela imprensa, deixando a opinião pública com muitas dúvidas.
Ela se baseava apenas no depoimento de um irmão de Celso Daniel, que disse ter ouvido do petista Gilberto Carvalho uma confissão de que entregava propinas para José Dirceu. À época, o tucano Nelson Jobim, então ministro da Justiça de FHC, rejeitou levar o processo adiante por absoluta falta de provas. Afirmou o ministro no despacho: “A prova com a qual o Ministério Público Federal quer desencadear um inquérito policial contra o senhor deputado José Dirceu não tem fundamento legal”.
De lá para cá, o caso teve muitas idas e vindas na Justiça, mas tudo seguia apontando na direção do crime comum. Só os irmãos do prefeito e o MP, alimentados pela imprensa, insistiam na tese de crime político. As suspeitas da motivação política foram exploradas pelos adversários políticos do PT em absolutamente todas as eleições nestes últimos 20 anos. Virou uma poderosa arma eleitoral.
A exploração da coisa foi longe. O caso foi parar na CPI dos Bingos sem ter nenhuma relação com os bingos e chegou até a ser investigado pela Lava Jato. Tudo isso faz com que até hoje o bolsonarismo mobilize suas guerrilhas virtuais para perguntar “Quem matou Celso Daniel?”.
Na última eleição presidencial, o candidato Alvaro Dias — aquele que foi poupado pela Lava Jato e hoje é aliado de Sergio Moro — pediu em um debate na Globo para Haddad entregar um bilhete para Lula. O conteúdo do bilhete foi revelado depois em suas redes sociais: “Quem mandou matar Celso Daniel? Você sabe!”
Agora, 20 anos depois, o Grupo Globo decidiu lançar uma série documental “O Caso Celso Daniel”, com oito episódios, sobre o assassinato do petista. Apesar de colocar novamente o assunto em evidência em um ano de eleição, o documentário tem a pretensão de ser imparcial ao apresentar igualmente as versões de crime político e crime comum. Mas a imparcialidade ficou só na pretensão mesmo.
Apesar de não defender nenhuma tese, a série coloca a versão dos irmãos de Celso Daniel, sem nenhuma prova, baseada apenas em ilações colhidas aqui e acolá, em pé de igualdade com o que concluiu as profundas investigações da polícia – estas, sim, baseadas em provas e testemunhas. Ao longo dos episódios, a chama da dúvida da participação do PT no crime permanece acesa.
É bastante provável que um espectador menos atento termine o documentário achando que o PT é o mandante do crime, mesmo que os fatos que provam o contrário tenham sido escancarados ao longo dos episódios. A tentativa de se mostrar imparcial, dando a mesma credibilidade para todas as versões, tornou uma delas, a conspiratória, uma versão legítima.
Apesar de afirmar que o documentário é isento, Joana Henning, produtora responsável, já tentou emplacar um documentário crítico a Lula. Segundo uma reportagem do UOL, Henning tentou arrecadar R$ 2 5 milhões de crowdfunding para fazer o documentário, mas não chegou perto disso e o projeto foi engavetado. O roteirista que havia sido escalado para esse projeto foi Guilherme Fiúza, um jornalista que defende Bolsonaro com unhas e dentes e hoje faz pregação antivacina no noticiário. Já o narrador do documentário seria Marcelo Madureira, um humorista famoso pelo antipetismo ferrenho.
Em 2016, o tucano Sérgio Sá Leitão, que foi ministro da Cultura de Temer e hoje é secretário de Cultura do governo Doria, se tornou sócio de Henning no estúdio que comandaria o projeto e ajudou Fiúza a escrever o roteiro. A produtora se cercou de antipetistas para fazer um documentário para bater em Lula. Após ver esse projeto ir por água abaixo por falta de dinheiro, Henning agora consegue lançar o documentário sobre o Celso Daniel junto com a Globo. Há que ser muito ingênuo para acreditar que esse notório viés antipetista da produtora — e do grupo Globo — não tenha contaminado o documentário de Celso Daniel.
‘A tentativa de se mostrar imparcial, dando a mesma credibilidade para todas as versões, tornou uma delas, a conspiratória, uma versão legítima.’
Antes do lançamento do documentário, três jornalistas da Globo, ouvidos pelo UOL sob anonimato, garantiram não ser possível “ressuscitar o tema sob o ponto de vista do interesse jornalístico”, já que o crime foi esclarecido pela polícia e pelo Judiciário. Para eles, a série “irá apenas resgatar teorias conspiratórias”. Um desses jornalistas disse que “a sensação é que a emissora quer encontrar um jeito de barrar o candidato do PT nas eleições, Lula”.
Apesar disso, o documentário não é para se jogar fora por inteiro. Os depoimentos de Marcelo Godoy, jornalista do Estadão que acompanhou de perto o caso à época, não deixam dúvidas de que tudo o que foi investigado acabou apontando para crime comum. “Eu nunca vi um caso ter sido investigado como esse caso foi. O inquérito foi aberto mais de uma vez. O inquérito foi refeito por mais de um delegado”.
Em 2005, quando o MP reabriu o inquérito mais uma vez a pedido da família de Celso Daniel, os promotores indicaram uma nova delegada para cuidar do caso, Elisabete Sato. O jornalista a entrevistou no dia em que foi nomeada para retomar a investigação: “Ela disse pra mim ‘É um crime político’. Ela tinha convicção de que era um crime político.” A delegada, então, fez uma nova apuração durante um ano inteiro. Além de ouvir dezenas de testemunhas, Sato ouviu também os sete sequestradores, que negaram a existência de um mandante ou de motivação política.
Ao fim do inquérito, mesmo tendo começado a investigação com a convicção de que foi crime político, a delegada chegou à mesma conclusão da primeira investigação feita em 2002: crime comum. No despacho, a delegada afirmou que “a voracidade do Gaeco de Santo André [órgão ligado ao Ministério Público] sucumbiu diante da falta de provas”.
Mas nem assim o assunto saiu do noticiário. Os irmãos de Celso Daniel passaram a cogitar a hipótese da delegada ter sofrido ameaças, mesmo não havendo o mísero indício disso. Mesmo com o DHPP, o DEIC e a Polícia Federal apontando para um crime comum, a dúvida sobre o envolvimento do PT no caso segue viva no imaginário do povo brasileiro. Claro, a tese inicial do MP foi comprada com unhas e dentes pela imprensa. Não poderia ser diferente depois de duas décadas de noticiário martelando essa dúvida na cabeça da população.
Ao fim do documentário, a senadora tucana Mara Gabrilli afirma achar que o mandante do crime “foi o trio: Lula, José Dirceu e Gilberto Carvalho”. FHC, adversário político de Lula e presidente à época do crime, aparece afirmando não haver nada que indique alguma motivação política. E assim a obra deixa para o espectador livre para acreditar em alguma das teses, mesmo que uma delas seja absolutamente fantasiosa.
O crime comum foi fartamente comprovado, apesar das interrogações que a série joga a todo tempo: 1) o MP tentou a todo custo forçar a tese de crime político, mesmo sem indícios; 2) o amigo e segurança de Celso Daniel, Sérgio Gomes da Silva, conhecido como Sombra, acusado de participar do crime, foi inocentado após ser tratado como assassino pelo noticiário e pelo MP; 3) a grande imprensa, embriagada de antipetismo, alimentou a conspiração e atuou como porta-voz da tese do MP.
O documentário atinge um público que já vem com o olhar viciado pela cobertura desastrosa da imprensa nos últimos 20 anos. Neste contexto, apresentar todas as versões com a mesma credibilidade não torna o documentário imparcial. Pelo contrário, ajuda a manter no ar as teorias fantasiosas em ano eleitoral.
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