Estava no caixa do supermercado quando comecei involuntariamente a ouvir: “Esse pessoal não quer trabalhar, só quer ficar na rua, pedindo. Já ofereci dez reais para um menino desses aí lavar meu carro e ele não quis”. Era uma senhora que acabara de ser abordada, ali dentro, por um adolescente. Ela falava alto e olhava ao redor procurando validação para sua indignação: o jovem, um rapaz negro e com as roupas muito sujas, pediu que ela pagasse um pacote de biscoito para ele, que permanecia por perto, constrangido, esperando que outra pessoa o ajudasse.
Mas como assim alguém com aquele aspecto, aquela cor e aquele grau de pobreza, negava a sacrossanta bondade da classe média, traduzida ali em dez reais?
(…)
Lembrei desse episódio, presenciado na véspera do último Natal, em Recife, quando li o tweet comemorativo do prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, sobre o fato de a família de Moïse Kabagambe passar a gerenciar o quiosque no qual o rapaz foi barbaramente assassinado com várias pauladas no dia 24 de janeiro.
Em resposta, diversas pessoas aplaudiram a atitude.
Era justamente a banalização da barbárie que acontecia ali, e não só: era também, e mais uma vez, a banalização do sofrimento, da tragédia e do trauma comuns no interior das populações negras.
Percebam: para “reparar” a dor e o racismo enfrentados não só pela família do jovem assassinado, mas pelas populações africanas que penam para conseguir um emprego no Brasil, a prefeitura decidiu oferecer como presente a própria cena do crime.
Eu não consigo pensar em outra palavra, senão perversidade, para definir essa operação. Isso não só pelo fato de a família, ao gerenciar o quiosque/memorial à beira-mar da Barra da Tijuca, ter que conviver diariamente com o espaço no qual o moço de 24 anos foi trucidado. Perverso também é o estado, aqui representado pela prefeitura do Rio, se comportar como uma espécie de grande benfeitor ao vender enfrentamento ao racismo quando na verdade está alimentando o mesmo.
Trauma, dor, sofrimento psicológico e questões de ordem emocional ou mental são raramente associadas à gente preta (e principalmente gente preta e pobre) quando estão atrelados a cuidado, colo, acolhimento. Afinal, somos pessoas fortes, resilientes, guerreiras, que dão conta de tudo. É uma perspectiva também internalizada, vista antes como mérito, e reproduzida entre nós pessoas negras, como há pouco foi visto no caso de Natália, no BBB, quando ela falou que a escravidão estava baseada na “eficiência” de pretos e pretas para o trabalho.
O que parece a princípio elogio guarda também um traço sombrio: se nosso valor está somente em nossa força, os outros aspectos que também nos humanizam – emoções, necessidades, sonhos, medos, desejos – são minimizados ou apagados. No limite, somos ótimas máquinas ou eficientes burros de carga. Dificilmente, no imaginário comum, a clássica mocinha frágil que desmaia e precisa de amparo, cuidado e proteção será uma garota negra.
É dentro dessa lógica que reside a possibilidade de, sem qualquer constrangimento, oferecer para a família de Moïse a cintilante chance de trabalhar e gerenciar o local no qual o congolês foi assassinado. Não basta que Lotsove Ivone, mãe do rapaz, ou Kevin, seu irmão de sete anos, convivam para sempre com as imagens nas quais vemos o jovem sofrer mais de 30 pauladas. Também poderão, cada um a seu modo, ela com o coração da mãe, ele com o coração de menino, imaginar in loco o sofrimento de Moïse e a selvageria dos brasileiros que o mataram. Ah, mas eles são fortes. Foram mais de 30 pauladas. Ah, mas eles aguentam. Mais de 30 pauladas. Ah, mas eles são guerreiros. Mais de 30 pauladas.
Mas eles aguentam.
Além disso – e foi por conta dessa questão que lembrei do jovem pedinte no supermercado –, há no imaginário ultra classista e racista brasileiro a crença de que pessoas em situação muito vulnerável devem aceitar qualquer coisa ofertada. É a lógica da “mãozinha”, do “agrado”, algo que vai não só ajudá-las a sair, ainda que temporariamente, de uma condição muito difícil, mas ainda propaga aos quatro cantos o quanto nós, que oferecemos a ajuda, somos muito bons.
É aquela história: brasileiro adora caridade, mas detesta política pública de combate à fome. Curte distribuir, vez ou outra, uma cesta básica, mas chamava o “finado” Bolsa Família de “bolsa esmola”. O que importa se a mortalidade infantil no Nordeste caiu quase 50% entre 2000 a 2014 graças a ações do estado, como mostra este estudo, se podemos culpabilizar pessoas miseráveis pela própria condição? Se alguém não precisa da minha “ajudinha”, caem as chances de que eu me torne herói, ou, pelo menos, de que eu consiga explorá-la em benefício próprio.
Quase 100% dos congoleses que buscaram refúgio no Brasil e vivem no Rio de Janeiro moram em favelas e/ou vivem sob a pressão de muita pobreza. Vários têm boa formação escolar e/ou técnica – são pedagogos, fotógrafos ou trabalham com informática, como mostra essa boa matéria da BBC Brasil. Mas, na República das Milícias, a qualificação destes africanos fala mais baixo que a cor e a origem de todos eles. Assim, por causa do nosso racismo e xenofobia recalcados, a maioria desses refugiados trabalha aceitando pagamentos baixíssimos. No texto da BBC, a coordenadora do Programa de Atendimento a Refugiados da Cáritas RJ, Aline Thuller, conta que muita gente oferece a eles algo como R$ 35 por serviços de faxina que custam em média R$ 200 a diária. Também é comum que ofereçam apenas casa e comida como pagamento.
É por isso que há dois erros fáceis nas críticas sobre o caso quiosque/família de Moïse: o primeiro é dizer simplesmente que, se “eles aceitaram” a suposta benesse de Paes, não há o que discutir; o segundo é criticar o grupo justamente por ter topado a futura tarefa. O racismo continua prevalecendo em ambos os olhares.
Em um contexto de super-exploração e estigmatização, agravados pela tragédia da covid-19, é muito compreensível que mãe, irmãos e amigos de Moïse queiram gerenciar um dos quiosques (localizados, segundo diversos relatos na imprensa e nas redes, em áreas de atuação das milícias). Você diria não à chance de cuidar de seus filhos e de si um pouco mais dignamente? Uma dignidade que se traduz, por exemplo, em um almoço melhor, um aluguel pago ou um sapato em boas condições de uso? Sintetizando: uma dignidade que afaste você e eles das chances de linchamento?
Mas, entre escolher a extrema vulnerabilidade ou alguma estabilidade trabalhando onde um irmão meu foi assassinado, há alguma outra opção?
O problema não está no aceite da família. O problema está na oferta.
Ela é a tradução da falta de cuidado usual, histórico, com quem cometeu o erro de nascer preto demais e, no caso de Moïse, de nascer preto, africano e vir morar no Brasil. Dizer que eles “podiam escolher” e não topar o projeto significa entender, repito, que poderiam optar entre a estabilidade que poderão encontrar gerenciando o quiosque/memorial ou os subempregos que, no final, levou um deles ao espancamento bárbaro e à morte. A lógica liberal da “escolha” não cabe aqui e usá-la como argumento só demonstra nossa dificuldade de compreensão do que significa ser um subcidadão nesse país.
Marketing da solidariedade
É preciso dizer que, segundo o secretário municipal da Fazenda, Pedro Paulo Carvalho, os quiosques Biruta e Tropicália serão transformados, em reparação à família, em um memorial dedicado não apenas ao congolês morto, mas à cultura africana (a família irá gerenciar apenas um deles, justamente o Tropicália).
Nas redes, a prefeitura divulgou que a parceria com a operadora Orla Rio “vai criar um lugar de homenagem e gerar empregos para pessoas refugiadas”. Ainda segundo o anúncio, o espaço terá “danças típicas”, comidas e outras manifestações culturais congolesas. Segundo a assessoria de imprensa do órgão, será firmada uma parceria com o Sesc e o Senac, prefeitura, Orla Rio e organizações sociais para criar um programa de capacitação para que os imigrantes atuem na área da gastronomia (apesar, é bom lembrar, do fato que vários deles já chegarem ao Brasil com qualificações profissionais).
No último sábado, dia 5, quando aconteceram protestos pedindo justiça para Moïse e ainda por pessoas como Durval Teófilo (morto por um vizinho que o “confundiu” com um bandido), o projeto arquitetônico já foi divulgado: nele vemos os espaços encimados por bandeiras da República Democrática do Congo, além de uma imagem de Moïse e guarda-sóis com estamparia africana. Nos quiosques, há equipamentos de lanchonete, como vitrines expositoras de alimentos. Tudo muito bonito e organizado, tudo bastante vendável para redes nacionais e internacionais, de modo que o fato de o crime ter acontecido dia 24 de janeiro, mas ter ganhado o debate público dias depois, soa como mero detalhe.
Segundo o advogado da família, Rodrigo Mondego, o projeto do quiosque/memorial não é uma reparação em si porque não vem de quem tem responsabilidade objetiva sobre o ocorrido. Ele informa que uma ação estudada é, através da defensoria pública, pedir a responsabilização civil por parte dos responsáveis pelo crime, que teriam que indenizar a família. Rodrigo também diz que a última aceitou gerir o quiosque/memorial por se tratar de uma homenagem a Moïse. Os familiares de Moïse foram procurados, mas não responderam às mensagens e ligações. Entendemos o fato e que esse momento de dor e luto vem sendo atravessado, ainda, por uma série de pedidos de entrevistas.
Sim, é importante e simbólico que se crie um lugar que não deixe esquecer o que aconteceu ali, que não apague da memória o quanto desumanos e racistas nós podemos ser. Também é importante que esse lugar não signifique apenas dor, mas também futuro e possibilidades, por isso é louvável por parte da prefeitura que apenas pessoas refugiadas possam trabalhar ali – torcemos que em condições legais e dignas.
Mas falamos de outra coisa, e não somente de um memorial, quando nesse bojo se inclui o convite para que a própria família da pessoa linchada no local venda água, cerveja e caipirinhas ou quaisquer outros produtos no espaço onde ocorreu a selvageria. É medonho e descuidado. Ou melhor – volto ao adjetivo –, é perverso. À procura de respostas rápidas para uma questão tão delicada, mais uma vez se ofereceu o que parecia uma solução fantástica, principalmente para o marketing da solidariedade que quer fazer acreditar que o Rio de Janeiro apenas continua lindo.
Atualmente coordenando um estudo que trata de racismo e sofrimento, o psicanalista e pesquisador Érico Andrade, da Universidade Federal de Pernambuco, diz que a solução do caso não pode ser simplesmente ofertar o espólio da dor para pessoas negras que são constrangidas a aceitar o gesto. “No [quiosque] Tropicália, o racismo ganhou matéria, corpo, sangue, mas o modo como o poder público vem tratando o caso mostra outra faceta do racismo: os ouvidos tapados para o que dizem os movimentos negros, os intelectuais negros, a comunidade negra. O racismo é estrutural porque ele é um sistema que opera todas as ações da sociedade: desde a violência explícita à violência simbólica e o início do seu combate passa pela possibilidade das pessoas negras protagonizarem as suas escolhas sem que sejam obrigadas ou constrangidas a seguirem a lógica que muitas vezes é a responsável por as levarem para a terra da qual nunca foram proprietárias em vida.”
Lotsove Ivone, que vive em Madureira, há pouco mais de 20 quilômetros da Barra da Tijuca, trabalha há anos como trancista, embelezando cabelos. Veio para o Brasil em 2014 fugindo de uma guerra civil que já fizera desaparecer o pai de seus filhos, além de outros parentes. Que demais opções foram dadas para ela? Abrir um salão, por exemplo? Quais as opções para seus filhos? Em uma cidade como o Rio, a única possibilidade de trabalho para a família era mesmo no quiosque onde um dos seus foi morto? O que faziam, em que trabalhavam e o que queriam estas pessoas (que tentaram escapar do sofrimento em seu país) antes de Moïse ser assassinado?
Certamente, o sonho de nenhum deles era gerenciar um espaço que só nasceu a partir do sofrimento e morte de um dos seus. É frescura perguntar quais eram os sonhos desses imigrantes? É frescura gente negra e pobre escolher o que quer? É frescura gente negra e pobre ter vontades e sonhar?
Quero finalizar o texto com outro homem negro vindo, assim como Moïse, da República Democrática do Congo, o professor e antropólogo Kabengele Munanga. Ficou famosa uma entrevista sua na qual ele diz que o racismo é o crime perfeito. Não consigo deixar de pensar como a entrega do espaço do sofrimento para ser cuidado pela própria família do jovem morto é um grande exemplo desse crime que ele expõe: resultado de uma diferença tornada em desigualdade, de uma política neoliberal que costuma morder muito e às vezes soprar um pouco, o novo destino da família é aplaudido fortemente, capitalizando gestões e políticos. É uma das faces silenciosas e perfeitas desse mecanismo: eu ganho créditos e saio bem na foto quando, supostamente, alivio a dor dos outros – mas é uma dor, percebam, que muitas vezes eu mesma provoquei.
(…)
Algumas entre as muitas perguntas fundamentais sobre o caso e o que efetivamente a prefeitura do Rio deve apurar e publicizar, mesmo que renda poucos likes nas redes:
- Quem foram os guardas municipais que se negaram a ajudar o congolês apesar de terem sido avisados do que acontecia por uma auxiliar de serviços gerais?
- Por qual razão estes agentes públicos não prestaram socorro?
- Como a prefeitura vai atuar na formação racial destes agentes, vários deles também negros?
- Quais as medidas para aumentar a empregabilidade de refugiados que já têm qualificação profissional e hoje recorrem ao subemprego?
Atualização, 8/2, 12h38: Este texto foi atualizado para mencionar que a família de Moïse foi procurada, mas não respondeu os pedidos de entrevista.
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