João Filho

Folha lucra com debate falso sobre 'racismo reverso' em ano de revisão da lei de cotas

Folha ganha audiência com racismo e, mesmo com críticas dentro do próprio jornal, não pensa em mudar de rumo.

Folha lucra com debate falso sobre 'racismo reverso' em ano de revisão da lei de cotas

Folha lucra com debate falso sobre ‘racismo reverso’ em ano de revisão da lei de cotas

Foto: Nora Carol Photography/Getty Images; The Intercept Brasil

Quando o STF decidiu por unanimidade pela constitucionalidade das cotas raciais em 2012, a Folha de São Paulo publicou um editorial criticando a medida. Para os donos do jornal, as cotas deveriam ser apenas sociais, já que as raciais seriam um “erro”, uma “obsessão importada” dos EUA. Dez anos após a implementação da lei, já se sabe que as cotas raciais são muito mais efetivas na inclusão de estudantes pretos do que as cotas sociais.

Agora em 2022, ano em que a lei de cotas será revisada pelo Congresso Nacional sob um governo racista e autoritário, a Folha achou razoável se oferecer como palco para um debate que beira o inacreditável: o racismo contra brancos. O texto que despertou a discussão foi do antropólogo Antônio Risério, que costumeiramente escreve artigos para o jornal com base na ideia de que o racismo estrutural seria uma falácia. O título do artigo já é um tapa na cara de quem realmente sofre racismo no Brasil: “Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo”.

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No texto, ele defende que o racismo sofrido pelos negros não impede a existência de racismo contra brancos. Para sustentar a tese, elenca uma série de episódios anedóticos — quase todos dos EUA — em que brancos foram discriminados por pretos. O uso de exemplos excepcionais para defender a tese de que brancos podem sofrer racismo no Brasil contribui apenas para a minimização da gravidade do racismo estrutural. O jornal levanta uma discussão que não existe dentro da academia. É consenso nas ciências humanas que o racismo no Brasil é um sistema de poder construído historicamente para manter pretos em posições políticas e econômicas inferiores e garantir a manutenção dos privilégios que os brancos desfrutam desde a escravidão. Diante desse racismo estrutural escancarado, tratar o racismo contra brancos como uma chaga social que deve ser debatida pela opinião pública é, no mínimo, uma canalhice.

Mas então não é possível que brancos sejam discriminados por pretos? Claro que é. O racismo estrutural não invalida um possível racismo existente entre relações interpessoais. Mas essa discriminação não opera dentro de uma estrutura que oprime brancos e coloca pretos nas melhores posições políticas e econômicas. Quem é branco como eu sabe que um xingamento de “branquelo” ou “palmito” não tem o poder de nos ofender. Claro, a discriminação contra brancos opera dentro de uma lógica individual, e não dentro de uma estrutura construída socialmente que nos oprime há séculos.

‘Tratar a suposta discriminação contra brancos como um problema social a ser debatido em tempos em que a extrema direita racista está instalada no poder é imoral e desonesto. É o negacionismo científico em estado bruto travestido de opinião.’

Agora, chamar um preto de “macaco” é completamente diferente. Trata-se de uma ofensa que remete imediatamente ao racismo estrutural que nasceu na escravidão e hoje empurra pretos para as favelas e presídios. Quem equipara essas duas situações está, na prática, relativizando e minimizando a gravidade do racismo estrutural vigente. Tratar a suposta discriminação contra brancos como um problema social a ser debatido em tempos em que a extrema direita racista está instalada no poder é imoral e desonesto. É o negacionismo científico em estado bruto travestido de opinião. É como se o racismo fosse um fenômeno solto na história, sem nenhuma ligação com as relações de poder que movem a sociedade.

Colocar a exceção em pé de igualdade com a regra é a tônica de boa parte dos artigos de Risério na Folha sobre racismo. Não foi à toa que o antropólogo saiu em defesa do seu parceiro Leandro Narloch quando este escreveu para o jornal um texto romantizando a escravidão. Com base em um livro de Risério, Narloch destacou que algumas mulheres pretas ascenderam socialmente durante o período em que pretos eram chicoteados, vendidos e mortos pelos brancos dentro da lei. Levantar a bandeira do “racismo contra brancos” dentro desse contexto histórico e social não deixa de ser uma piada racista. E isso tem se tornado cada vez mais comum nas páginas da Folha.

A reação ao texto de Risério, claro, foi enorme. Jornalistas da Folha assinaram uma carta manifesto contra a recorrente publicação de textos que relativizam o racismo.

O manifesto destaca o uso da falsa polêmica como tática para gerar visualizações, o  que tem se tornado cada vez mais comum no jornal: “Acreditamos que buscar audiência às expensas da população negra seja incompatível com estar a serviço da democracia”. O texto termina convidando a direção do jornal para “uma reflexão e uma reavaliação sobre a forma como o racismo tem sido abordado”.

No Twitter e em sua coluna na Folha, o professor Silvio Almeida, um dos principais estudiosos do tema na academia, apontou o caráter negacionista do texto de Risério:

A resposta dos donos da Folha foi dura e imediata. O jornal rejeitou as reclamações do manifesto e se posicionou em defesa de Risério, ressaltando que textos que refutam a tese do antropólogo também foram publicados. A direção da Folha, sob o falso manto da pluralidade, trata a relativização do racismo como uma mera questão de opinião.

‘Pode-se inventar a tese de que brancos sofrem racismo, mas é proibido chamar um notório fascista de extremista. Isso está mais próximo da censura ou da pluralidade que a Folha tanto defende?’

Mas não foi só a Folha que se levantou contra os jornalistas da Folha. A Casa Grande da imprensa reagiu em peso. Para o Antagonista, o manifesto é um “pedido de censura prévia”. Para uma articulista da Gazeta do Povo — o jornal ligado a Opus Dei — a reação ao texto de Risério faz parte de “um pacto para silenciar vozes dissonantes”. É realmente incrível imaginar como a reação legítima de funcionários tem sido tratada como tentativa de censura. Isso me fez lembrar das últimas eleições, quando a Folha emitiu um comunicado interno exigindo aos seus jornalistas que não chamassem Bolsonaro de “extremista de direita”. Ou seja, pode-se inventar a tese de que brancos sofrem racismo, mas é proibido chamar um notório fascista de extremista. Isso está mais próximo da censura ou da pluralidade que a Folha tanto defende?

Na resposta, o jornal destacou um abaixo-assinado em apoio a Risério assinado por intelectuais e artistas. Entre os mais de 700 assinantes, há figuras curiosas como o antropólogo Roberto da Matta, que defendeu vigorosamente a volta da monarquia no plebiscito de 93. Tem também Hélio Beltrão, o engenheiro anarcocapitalista que preside o Instituto Millenium e que já escreveu coluna na Folha clamando pela liberação da hidroxicloroquina para o tratamento de covid. Tem também William Waack, o jornalista que foi demitido da Globo por racismo. Me parece natural que um defensor da volta da monarquia, um negacionista e um jornalista demitido por racismo saiam em defesa do atraso, do negacionismo e da relativização do racismo embutidos na tese de Risério. Só senti falta da assinatura de Sérgio Camargo, o bolsonarista que preside a Fundação Palmares.

Às vésperas do momento em que o país vai revisar a lei de cotas, um instrumento de combate ao racismo comprovadamente eficiente, a Folha ofereceu os holofotes para a tese estapafúrdia do racismo contra brancos desfilar. Essas falsas polêmicas geram audiência pro jornal ignorando as evidências e desrespeitando décadas de pesquisa científica sobre o tema. A Folha parece ter descoberto um novo nicho de mercado que opera sob a lógica da Economia da Atenção, mantendo o leitor envolto em uma série de textos contra e a favor de uma tese que não encontra eco na realidade. É uma tática comercial. Não se trata de pluralismo editorial, mas de lucro.

Trata-se de um debate que não existe dentro das universidades de ciências humanas, mas existe dentro da Folha. Me parece claro que toda essa polêmica artificial serve a dois propósitos: a manutenção do racismo estrutural e o crescimento da conta bancária dos donos da Folha.

 

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