Logo nos primeiros dias de março deste ano, cerca de 90 enfermeiros de Macapá receberam uma ordem da prefeitura: cada um teria que entregar kits com vitaminas, zinco e ivermectina em ao menos 15 casas, ou a 60 pessoas. Além dos enfermeiros, técnicos de enfermagem e agentes comunitários de saúde também foram convocados a distribuir massivamente o “kit covid”, que a prefeitura acreditava prevenir contra a covid-19. Participar deste mutirão não era uma escolha – quem se recusou, está desempregado ou teve que entrar na justiça para reverter a demissão.
O kit é comprovadamente ineficaz contra o coronavírus, como atestou a Organização Mundial de Saúde, a OMS, ao orientar que o medicamento não fosse utilizado no tratamento em pacientes com a covid-19. A Sociedade Brasileira de Infectologia também foi firme ao dizer que “tais medicamentos têm sua ineficácia comprovada”.
Os profissionais faziam parte das equipes do programa nacional de Estratégia de Saúde da Família, que recebe recursos do Ministério da Saúde, mas é gerido pelas prefeituras. Em 3 de março, a coordenadora do programa, Cristilene Vilhena, enviou mensagem para o grupo de WhatsApp Saúde Rural, em que estão os profissionais de saúde que atendem aos maiores distritos da capital, dizendo que todas as equipes estavam sendo convocadas para uma força tarefa para distribuir os kits.
“Cada equipe deverá retirar na sua UBS [Unidade Básica de Saúde] de lotação 600 kits para distribuir na sua área de cobertura. A logística é que cada equipe ESF tenha 10 profissionais envolvendo enfermeiros, técnicos e ACS, e cada profissional distribuirá em 15 casas ou a 60 pessoas. O público alvo são pessoas de 18 a 70 anos”, escreveu. Naquele dia, o Brasil já tinha chegado a mais de 259 mil mortos pela covid-19 e a própria fabricante da ivermectina já havia emitido uma nota falando que a medicação era ineficaz contra a doença.
No mesmo dia, o prefeito da capital, Antonio Furlan, do Cidadania, gravou um vídeo para o Instagram da prefeitura, anunciando a distribuição dos medicamentos “através das equipes de Estratégia da Saúde da Família”. Médico cardiologista, ele não viu problema em defender que o kit seria uma forma de “reforçar a imunidade da população”. Mas a distribuição não parou em março. Os kits foram distribuídos pelo menos até agosto, segundo mensagens de WhatsApp encaminhadas pela prefeitura aos profissionais as quais tive acesso.
Uma das enfermeiras com quem conversei trabalhava há seis anos no programa e foi demitida em setembro, segundo ela, por ter se recusado a distribuir o kit de tratamento precoce. Ela pediu para não ser identificada por medo de não conseguir um novo emprego. “Os medicamentos foram distribuídos na cidade inteira, em feiras, praças e até em distritos que ficavam distantes 12h de barco. Eu me recusei a entregar e passei a ser perseguida desde então”, conta.
Conversei com outras duas enfermeiras que discordavam da entrega do kit covid e também foram demitidas. Nenhuma quis se identificar por medo de sofrer mais represálias. “O diretor da UBS e a secretária de saúde me obrigaram a ir distribuir os kits com minha equipe. Eu achei isso totalmente irregular e fiz comentários na sala onde tinham pessoas próximas a eles. Fui entregar os kits por medo de perder o emprego, mas não adiantou nada”, contou uma das profissionais. A outra enfermeira, que também me disse ter sido demitida após criticar a distribuição dos kits, conseguiu o emprego de volta por decisão judicial. “Não justificaram nada para fazer meu desligamento, então recorri à justiça”.
O kit era entregue armazenado em pequenos sacos plásticos com os dizeres “farmácia covid-19”. Aos moldes do aplicativo TrateCov, depois descontinuado pelo governo federal, a “receita” era igual para todas as pessoas – dois comprimidos de ivermectina por dois dias seguidos e um comprimido de vitamina D também por dois dias; já os comprimidos de vitamina C e de zinco deveriam ser tomados por sete dias. Questionei a prefeitura sobre o kit e as demissões, mas não obtive resposta.
Mostrei a prescrição ao infectologista Bruno Ishigami, que acompanha pacientes infectados pelo novo coronavírus desde o início da pandemia e faz parte da equipe do Hospital Universitário Oswaldo Cruz, em Pernambuco, referência no atendimento da covid-19. Segundo ele, apesar da dose indicada na receita ser muito baixa para causar hepatite medicamentosa, um dos riscos do uso indiscriminado de ivermectina, a medicação tampouco tem qualquer efeito contra a covid-19. “Para maioria das pessoas, não faz mal, mas simplemente não serve para nada, é apenas enganação”.
É também desperdício de dinheiro público. Ao todo, foram distribuídos 150 mil kits em Macapá, que custaram cerca de R$ 3 milhões aos cofres do município, como revelou o UOL em março.
Presidente do Conselho Regional de Enfermagem do Amapá, o Coren-AP, Emília Pimentel disse que a entidade recebeu mais de 10 denúncias anônimas de profissionais que se sentiram coagidos a distribuir medicamentos sem prescrição médica. Elas serviram de base para o Coren abrir um processo administrativo.
Em 18 de março de 2021, o Coren do Amapá publicou uma decisão proibindo a categoria de prescrever, fracionar e distribuir remédios que não estivessem previamente estabelecidos em programas de saúde pública. O caso também foi encaminhado ao Ministério Público Estadual e o Ministério Público Federal que irá decidir se investiga ou não a atuação da prefeitura de Macapá.
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