‘Não tem corrupção’: como a Lava Jato (ainda) ajuda na popularidade de Bolsonaro

‘Não tem corrupção’: como a Lava Jato (ainda) ajuda na popularidade de Bolsonaro

A operação cimentou a ideia que tudo mais é aceitável se não houver corrupção. Bolsonaro segue usando a máxima para manter fiel esse eleitor de visão estreita.

‘Não tem corrupção’: como a Lava Jato (ainda) ajuda na popularidade de Bolsonaro

“Dois anos e meio sem acusação de corrupção é uma coisa fantástica”, mentiu Jair Bolsonaro, dias atrás, se referindo ao próprio governo. Expor mais uma mentira do presidente não é o objetivo deste texto (mas, se você quiser, basta clicar aqui, aqui ou aqui). O que pretendo é chamar a atenção para o que está oculto na fala: tudo mais é aceitável se não houver desvio de dinheiro público. E que tal percepção sustenta os índices de aprovação –  altos, em face de tudo o que assistimos diariamente – do governo Bolsonaro.

Acha que estou exagerando?

Está saindo do forno uma pesquisa qualitativa com eleitores de Jair Bolsonaro de seis capitais das cinco regiões do país. É o maior levantamento do tipo já realizado. O que os pesquisadores buscaram descobrir é que razões esses eleitores exibem para manter o apoio ao presidente apesar das mais de 550 mil mortes por covid-19, do desrespeito à dor dos familiares, da destruição da Amazônia e do patrimônio cultural brasileiro.

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Uma das conclusões: a percepção de que, apesar de tudo, ele não é corrupto. “O que ouvimos [dos pesquisados] é que, se Bolsonaro for envolvido diretamente em caso de corrupção, seu apoio desmorona”, me disse o professor João Feres Júnior, um dos autores da pesquisa produzida pelo Laboratório de Estudos da Mídia e Esfera Pública da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, a Uerj, em parceria com o Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa. Mesmo as lambanças de Flávio, o 01, em parceria com o primeiro-amigo Fabrício Queiroz, não afetam a fé em Bolsonaro. O pai não é culpado pelos pecados do filho, ouviram os pesquisadores.

Feres não é o único pesquisador a se espantar com isso. “Um paradoxo chega a reger a relação entre a opinião pública e o bolsonarismo: ao mesmo tempo que o cidadão não aprova o desempenho do capitão negacionista na pandemia e não se mostra disposto a votar nos candidatos indicados por ele, parte substancial da cidadania continua aprovando seu governo”, escreveu o cientista político Leonardo Avritzer, professor titular da Universidade Federal de Minas Gerais, no primeiro capítulo de “Governo Bolsonaro: Retrocesso Democrático e Degradação Política” (Autêntica, 2021), uma coletânea de artigos organizada por ele, Fábio Kerche e Marjorie Marona.

Tão importante quanto essa constatação é ponderar sobre o que consolidou na sociedade brasileira a ideia de que o roubo de dinheiro público é o pecado capital, o único delito que não merece perdão. A resposta parece óbvia: a Lava Jato.

Tão logo a operação que começou mirando doleiros que atuavam a partir de um posto de gasolina em Brasília foi ganhando espaço, seus personagens – tendo à frente um procurador com cara de adolescente nerd, uma visão de mundo simplória e um carregado sotaque curitibano – aproveitaram para passar o recado.

Quem rouba milhões mata milhões“, “O Brasil não é propriedade de corruptos“. “A corrupção desvia R$ 200 bilhões por ano“. A cada ação ostensiva semanal da Lava Jato, Deltan Dallagnol aproveitava para pregar contra o que considerava o mal maior da República. Ninguém se lembrou de pedir que o imberbe procurador comprovasse suas hipérboles. As manchetes estavam garantidas, afinal. E Dallagnol tinha até a solução para o problema que diagnosticava: “Precisamos de uma reforma política, da aprovação de medidas contra a corrupção e a impunidade”.

‘Não tem corrupção’: como a Lava Jato (ainda) ajuda na popularidade de Bolsonaro

A cada ação da Lava Jato, Dallagnol pregava contra o que considerava o mal maior da República: a corrupção.

Foto: Heuler Andrey/AFP via Getty Images

O roteiro é conhecido. O consórcio entre juízes de primeira e segunda instância e o Ministério Público Federal personificou na figura de Lula todo o mal que diagnosticou e condenou o ex-presidente a tempo de retirá-lo das eleições de 2018. Sergio Moro deu uma força extra ao mandar prender o petista e – para garantir que não desse chabu – tornar pública a delação premiada de Antonio Palocci que para os procuradores não valia um centavo. Bolsonaro foi eleito, Moro pegou o primeiro avião para o Rio de Janeiro e, ansioso feito criança em loja de brinquedos, anunciou que seria ministro da extrema direita antes mesmo de recolocar os pés em Curitiba. “O Brasil está mudando”, regozijou-se Dallagnol um tempo depois.

“O repúdio à corrupção, inflado pelo lavajatismo, foi o cimento que conectou evangélicos, conservadores e militaristas no bolsonarismo em 2018”, falou João Feres, a partir dos resultados da pesquisa que realizou.

Voltamos a 2021. Jair Bolsonaro anunciou a recondução de Augusto Aras ao cargo de procurador-geral da República. Amigo do peito do presidente, Aras entregou a Bolsonaro o que ele precisava: um Ministério Público em parte amordaçado, em outra acovardado o suficiente para que operações como a Lava Jato, a Greenfield e a Satiagraha sumissem do noticiário. Foi um serviço tão bem feito, o de Aras, que sequer foi preciso que a fração de procuradores e promotores dispostos a colaborar abertamente com a extrema direita, liderada por Ailton Benedito, ganhasse protagonismo.

Sergio Moro foi humilhado em reunião tornada pública, saiu com o rabo entre as pernas e hoje vive nos Estados Unidos, com conje e tudo, o doce cotidiano de quem já pode deixar a máscara em casa. Sua tropa de escoteiros não teve melhor sorte. Dallagnol precisou pedir para deixar a Lava Jato, que logo depois deixou ela mesma de existir. Roberson Pozzobon correu o risco de ser mandado de volta à monótona Guarapuava, no interior do Paraná, mas acabou com um cargo de consolação na estrutura criada por Aras, o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado, Gaeco.

Mas a indignação seletiva deles todos segue a anestesiar a nação. A CPI da Covid precisou encontrar suspeitas de corrupção de gente próxima a Bolsonaro para pegar fogo. Enquanto tudo o que havia eram evidências de que o presidente matou centenas de milhares de nós sem necessidade, a coisa ia em banho-maria. Faz sentido?

Para a Lava Jato, faz. Ainda ativos no Twitter, Moro, Dallagnol e Pozzobon não se importaram em produzir meros 280 caracteres em memória dos 500 mil brasileiros mortos pela covid-19, marca atingida em 19 de junho passado. Tampouco se ouviu deles palavras de repúdio à demora na compra de vacinas e às dezenas de aglomerações promovidas por Bolsonaro ao longo da pandemia.

O assunto deles segue o mesmo: a corrupção como mal maior da nação. É um projeto de poder – que não deixa de existir porque não deu certo com Bolsonaro. Sem ter feito um pedido de desculpas aos brasileiros por sua participação no governo das 500 mil mortes, Moro fomenta especulações sobre uma candidatura presidencial. Dallagnol jamais negou o desejo de disputar eleições, ainda que preferisse fazer isso sem perder o belo salário vitalício e a mamata dos 60 dias de férias anuais.

A procuradora Thaméa Danelon, rosto mais famoso do braço paulista da Lava Jato, é a prova de que não se deve esperar autocrítica da turma. Convertida em colunista de sites e programas de tevê bolsonaristas, ela cravou num deles, dias atrás, que a corrupção é o grande mal do Brasil. Causar deliberadamente dezenas de milhares de mortes pela gestão criminosa da pandemia, fazer propaganda de remédios ineficazes, destruir instituições como o Ministério da Saúde, o da Educação, a Fundação Palmares, a Cinemateca Brasileira, o CNPq? Bobagem.

Jair Bolsonaro agradece pela força.

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