“Procuradoria-Geral da República vai ao Supremo para invalidar mais de 30 mil patentes e ameaça retomada da economia”. A manchete, estampada na capa do jornal Valor Econômico de 28 de março, não poderia ser mais clara. Em uma página inteira, com textos, infográficos e números destacados, especialistas alertavam sobre os riscos à economia e à inovação de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, ou ADI, que, se aprovada pelo STF, reduzirá o prazo de validade de algumas patentes no Brasil.
Um leitor desatento poderia nem notar que os anúncios não eram materiais jornalísticos, mas sim publieditoriais, jargão usado para definir conteúdos publicitários disfarçados de matérias jornalísticas, com que são visualmente parecidos.
Uma semana depois, na Folha de S.Paulo, outro alerta sobre a ADI, que estava prestes a ser julgada, em uma página inteira do primeiro caderno. “Alteração em patentes pode prejudicar acesso a novos medicamentos no país”, dizia a manchete, também seguida por texto, mais infográficos e números.
Na semana seguinte às publicações, estava marcado o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5529, a ADI 5529/DF, que questiona a constitucionalidade do artigo 40 da Lei de Propriedade Industrial, em vigor desde 1997. Esse parágrafo define que o prazo de vigência de uma patente não pode ser menor que dez anos. A lei determina um prazo de 20 anos para exploração da propriedade. Mas, como o parágrafo faz com que esse tempo corra a partir do momento em que a patente foi concedida, o que pode demorar anos, na prática ele acaba estendendo o prazo para além dos 20 anos, fazendo com que monopólios no Brasil sejam mais longos do que deveriam.
Isso afeta dezenas de medicamentos, inclusive o tocilizumabe, anti-inflamatório que já se mostrou eficaz no tratamento de casos graves de covid-19. Criado pela companhia japonesa Chugai Pharmaceutical em parceria com a suíça Roche, ele já está em domínio público – ou seja, pode ser produzido por qualquer farmacêutica – em vários países desde 2017. Mas, no Brasil, tem uso restrito até 2023.
Foi por isso que a ação, proposta pela indústria nacional de medicamentos genéricos, entrou na pauta do STF. Nela, as empresas farmacêuticas brasileiras argumentam que a retirada do artigo 40 da lei ajudaria a derrubar o preço e a facilitar o acesso a remédios. Organizações de acesso a medicamentos defendem a mesma tese, também endossada pelo Tribunal de Contas da União. Em uma “estimativa conservadora“, o TCU projeta que o poder público teria economizado mais de R$ 900 milhões entre 2010 e 2019 se o artigo não estendesse o prazo das patentes.
No total, quase 2 mil medicamentos seriam afetados com o julgamento. Um outro exemplo é o da bedaquilina, usada no tratamento da tuberculose. A Johnson & Johnson cobra 400 dólares por seis meses de tratamento (cerca de R$ 2.180 na cotação atual) – mas pesquisadores argumentam que o preço poderia cair para 48 dólares (cerca de R$ 216) se a patente fosse derrubada.
Com a urgência da pandemia, o procurador-geral da República Augusto Aras pediu a suspensão do artigo 40, e o julgamento, que estava marcado para 26 de maio, foi inicialmente antecipado para 7 de abril.
Foi aí que começou a enxurrada de anúncios alarmistas para tentar pressionar a opinião pública. Segundo os textos bancados pela indústria, a ADI, se aprovada, “poderá invalidar ou declarar extintas em torno de 47% de todas as patentes de invenção vigentes no Brasil — quase 31 mil, de empresas de diversos setores”. Os publieditoriais garantem que “também estão em risco 12.667 pedidos de patente depositados no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual”.
No Valor, apenas uma pequena faixa amarela no canto superior da página sinalizava que aquela era uma “capa promocional” – a maneira como escolheram nomear o conteúdo pago. O publieditorial foi assinado pela Licks Attorneys, um escritório de advocacia que atua nas áreas de ciência, tecnologia, infraestrutura e defesa e tem escritórios em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Curitiba e Tóquio.
Segundo a tabela de publicidade das organizações Globo, dona do Valor Econômico, um anúncio em página dupla no jornal com conteúdo customizado não sai por menos de R$ 300 mil. O publieditorial também foi replicado na versão online da publicação – onde uma ação de branded content custa R$ 351 mil. Ou seja: em uma estimativa grosseira, o lobby das farmacêuticas gastou pelo menos R$ 700 mil para convencer os leitores de apenas um jornal.
Na Folha de S.Paulo, publicação semelhante levou o selo do Estúdio Folha, braço do jornal responsável por ações de publieditorial. Assinada pela Interfarma, a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa que representa o interesses de dezenas de farmacêuticas estrangeiras como Roche, Sanofi, Takeda e GSK, ela mostra que a ação no STF pode impactar mais de 35 mil patentes, causando “impacto econômico em vários setores”. O anúncio de uma página inteira no primeiro caderno do jornal custa em torno de R$ 400 mil. Já o preço dos publieditoriais do Estúdio Folha não são públicos. Os valores aproximados foram confirmados por um profissional que trabalha na área.
No Estadão, o mesmo tipo de conteúdo: “Decisão do STF sobre nulidade de mais de 31 mil patentes de invenção ameaça retomada da economia”, dizia a manchete, assinada pelo mesmo Licks Attorneys. No dia anterior, o escritório de advocacia havia realizado, junto com o jornal, um webinar para discutir o que chamou de “ataques à lei de patentes”. O debate contou com Otto Licks, sócio do escritório, o economista Samy Dana (aquele mesmo que distorceu um estudo para defender sua tese contra isolamento social), outro advogado especializado em propriedade intelectual e um gerente de inovação da Petrobras. Nenhum representante da oposição – o que é, claro, natural para um conteúdo patrocinado por um dos lados. No dia seguinte, a dois dias do julgamento, mais um publieditorial de cobertura do “debate” ganhou as páginas do jornal.
As multinacionais farmacêuticas, maiores interessadas na manutenção do artigo 40, não apareceram nas propagandas disfarçadas de jornalismo. Mas elas estão listadas como algumas das principais clientes do Licks Attorneys: Sanofi-Aventis Farmacêutica, Merck Sharp & Dohme e Gilead, a fabricante do Remdesivir, medicamento aprovado pela Anvisa para tratamento de covid-19, são algumas delas. Representando a Gilead, o escritório foi responsável pela ação que garantiu à farmacêutica, por exemplo, a manutenção das patentes do sofosbuvir, remédio usado para tratamento de hepatite C, no Brasil. A liminar barrou o acesso de genéricos do remédio a 15 mil pacientes.
Quem tem ‘espaço reduzido’ no jornal
Ocupar espaços em jornais não é uma estratégia nova. Nos anos 1990, durante a discussão da Lei de Propriedade Industrial, a mídia foi uma arma usada pelo lobby favorável ao alinhamento aos interesses da indústria multinacional, que defendia esticar os prazos de monopólios de medicamentos. O Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, conhecido pela sigla em inglês Trips, determinou que o prazo de patentes deve ser de 20 anos, e a lei brasileira colocou no mesmo balaio patentes em várias áreas, inclusive a da saúde, que até então era regida com regras próprias.
Na época, o Fórum pela Liberdade do Uso do Conhecimento, que pressionava por uma lei mais flexível, reclamou de não ter tido espaço na mídia. O debate se polarizava entre a defesa da indústria nacional e o alinhamento à legislação internacional, mais protetiva às empresas estrangeiras detentoras dos monopólios.
Segundo a pesquisadora Renata Reis, da UFRJ, que analisou o lobby da Lei de Propriedade Industrial em seu doutorado, metade dos artigos na Folha de S.Paulo eram assinados por indústrias ou associações empresariais. Só 7% eram de institutos de pesquisa. No Estadão, 71% dos artigos publicados sobre o tema eram a favor da aprovação da lei. “A SBPC [Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência], as associações de empresários nacionais do setor químico-farmacêutico e grupos de interesse público que claramente se opunham ao PL tiveram espaço reduzido no jornal”, diz a tese.
Agora, o cenário parece se repetir. Embora a Folha tenha reportado as divergências entre as farmacêuticas, o Valor publicou – desta vez, não como publicidade – que a disputa do STF “coloca em jogo” 31 mil patentes. O especialista entrevistado na reportagem é Otto Licks, sócio do escritório de advocacia que havia comprado a capa do jornal na semana anterior.
A decisão do STF estava prevista para o dia 7 de abril, mas foi suspensa por conta do julgamento da suspeição de Sergio Moro no caso de Lula. O ministro Dias Toffoli, no entanto, antecipou seu voto e decidiu pela suspensão do artigo 40 da lei para patentes registradas a partir de 2021. O caso, no entanto, ainda deveria ir a julgamento dos outros ministros, previsto para o dia 22. Com o reagendamento, começou uma nova investida na imprensa.
No dia 20, o mesmo Licks Attorneys promoveu um webinar com o tema “Ataques à lei de patentes”. No que seria o dia do julgamento, o Estadão veiculou mais um publieditorial assinado pelo escritório de advocacia. O título era dramático: “Dia decisivo para o futuro da inovação”. O preço de uma página inteira no caderno de Economia e Negócios, onde o anúncio foi publicado, ultrapassa R$ 400 mil. Como o anúncio foi feito com branded content, esse valor pode ganhar mais R$ 200 mil de acréscimo. A um dia da nova data do julgamento, remarcado para 28 de abril, o Estadão ainda veiculou na Coluna do Fausto um artigo de Otto Licks intitulado “Não existe extensão de patente no Brasil”.
Nesta quarta-feira, se mantida a continuação do julgamento, os demais ministros decidirão se suspendem o artigo e se essa suspensão é válida retroativamente. Dois dias depois, o ministro Luiz Fux já tem compromisso na agenda. Ele fará a palestra inaugural de um seminário promovido pelo Instituto Dannemann Siemsen, ligado ao escritório de mesmo nome. E nem será a primeira vez: ele já participou de um evento do mesmo instituto no ano passado, época em que era relator da ADI 5529/DF. O escritório, que se apresenta como “líder em propriedade intelectual na América Latina”, tem como clientes alguns interessados diretos no julgamento no STF – entre eles, a Interfarma.
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