Cinco dias depois da morte de Adriano da Nóbrega, em fevereiro de 2020, uma de suas irmãs afirmou em um telefonema que queriam ligar seu irmão a “Bolsonaro”.
Tatiana Magalhães da Nóbrega estaria se referindo ao presidente da República, Jair Bolsonaro, segundo trecho do relatório técnico da Subsecretaria de Inteligência da Secretaria de Polícia Civil do Rio de Janeiro. O Intercept teve acesso com exclusividade ao documento, elaborado a partir da análise das quebras de sigilos telefônicos e telemáticos dela e de outros suspeitos de integrar a organização criminosa responsável pela proteção e continuidade dos negócios ilícitos do ex-capitão do Bope, o batalhão de elite do Rio de Janeiro.
O monitoramento teve início em 6 de fevereiro de 2019, poucos dias depois de Adriano ter tido a prisão decretada na operação Intocáveis, que levou o Ministério Público a denunciar policiais e ex-policiais militares ligados à milícia de Rio das Pedras e da Muzema, na zona oeste do Rio. Uma das principais atividades da organização criminosa é a construção ilegal de prédios em terrenos invadidos.
Na conversa interceptada em 14 de fevereiro de 2020, Tatiana fala com uma mulher não identificada, lamenta a dificuldade em liberar o enterro do irmão e diz que Adriano “tinha muita coisa e mexia com muita gente”. Depois, cita o presidente.
As quebras de sigilos de comunicação dos suspeitos foram sendo renovadas sistematicamente até 21 de fevereiro de 2020, 12 dias depois de Adriano ter sido localizado numa propriedade rural do povoado baiano de Esplanada, a 170 quilômetros de Salvador, em uma controversa operação conjunta das polícias do Rio e da Bahia, que terminou com a morte do ex-caveira.
Mas, sete dias depois da conversa em que o nome do presidente aparece, um relatório mostra a opção do MP por não renovar as escutas no telefone da irmã do ex-capitão. Os relatórios contendo as ligações são fechados a cada 15 dias, prazo legal de cada interceptação.
Para iniciar um novo período de grampos, é necessária uma nova autorização da justiça, o que os promotores desencorajaram:
O Ministério Público fluminense não tem atribuição para investigar o presidente da República. Entretanto, cabe à instituição encaminhar as informações à Procuradoria-Geral da República, a PGR, que tem a prerrogativa de apurar suspeitas relacionadas ao chefe do Executivo. Funcionários do MP, com quem conversei sob a condição de anonimato, afirmam que o processo jamais foi encaminhado à instância superior. Instado a responder se remeteu o caso à PGR, o Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado do MP do Rio, o Gaeco, informou apenas que as investigações estão sob sigilo; “razão pela qual não é possível fornecer as informações solicitadas”. Entramos em contato com a PGR, que não se manifestou até a publicação desta reportagem.
Mas Tatiana da Nóbrega não foi a única a não ter renovadas as quebras de sigilos que poderiam esclarecer a relação de seu irmão Adriano com os Bolsonaros. Outros suspeitos de integrar a rede de proteção do ex-capitão, que chefiava o Escritório do Crime – milícia especializada em assassinatos por encomenda – também tiveram seus monitoramentos suspensos. Dentre eles, o vereador de Esplanada Gilsinho da Dedé, dono do sítio onde Adriano estava escondido. O político é do PSL, partido no qual Bolsonaro se elegeu presidente.
Na ocasião, Gilsinho afirmou não conhecer o ex-capitão e chegou a dizer que o miliciano teria invadido seu sítio. As interceptações, no entanto, revelam que o vereador encontrou pessoalmente o ex-caveira em pelo menos duas ocasiões, uma delas durante uma vaquejada, em Itabaianinha, no Sergipe.
O suposto compadrio entre o chefe da milícia de matadores de aluguel e o presidente, citado de forma lacônica por Tatiana da Nóbrega, também foi ressaltado em outra conversa interceptada. Dessa vez, em 15 de fevereiro de 2020, seis dias após a morte do ex-capitão. No diálogo, classificado pela polícia como de média relevância, Luiz Carlos Felipe Martins, o Orelha, conta que “Adriano dizia que se fodia por ser amigo do Presidente da República”. De acordo com o MP, Orelha atuava como um dos homens de confiança do miliciano. Após a sua morte, foi ele quem tratou da venda de cabeças de gado do espólio do ex-capitão. Assim como Tatiana e o vereador Gilsinho, Orelha também teve o monitoramento de suas comunicações suspenso dias depois de mencionar o presidente ao telefone. A assessoria da Presidência da República não comentou o teor da gravação.
Caso de família
A ligação dos Bolsonaros com os milicianos da zona oeste do Rio vem de longa data. Flávio, então deputado estadual, nomeou a mãe e a ex-mulher de Adriano em seu antigo gabinete na Assembleia Legislativa do Rio. Raimunda Veras Magalhães e Danielle Mendonça da Nóbrega recebiam sem trabalhar e devolviam parte dos salários ao ex-PM Fabrício Queiroz, que atuava como assessor do parlamentar – as famosas rachadinhas. Inclusive, o MP do Rio protocolou uma denúncia contra Flávio citando Adriano como um dos envolvidos no caso.
Amigo do ex-capitão Adriano nos tempos de Polícia Militar, Queiroz é um dos muitos PMs e militares que orbitam a família Bolsonaro desde os anos 1980. Suboficial reformado da PM, ele serviu com o número 1 da República na Brigada de Infantaria Pára-Quedista, na Vila Militar, no Rio. Desde então, estreitaram os laços de amizade, que levaram Queiroz a ocupar o cargo de assessor do primeiro filho. “Ele [Queiroz] é meu amigo desde 1985, é meu soldado”, já afirmou Bolsonaro ao ser questionado sobre a relação com o assessor.
Flávio Bolsonaro afirma que a responsabilidade pelas nomeações da mãe e da ex-mulher de Adriano da Nóbrega em seu gabinete foi de Queiroz, que confirmou a versão em depoimento. Entretanto, vale lembrar que o atual senador do clã Bolsonaro e o miliciano eram próximos. Flávio já havia até entregue a medalha Tiradentes, principal honraria da Assembleia Legislativa do Rio, ao ex-capitão. Ronnie Lessa, outro ex-PM do Escritório do Crime, mora no mesmo condomínio de Jair e Carlos Bolsonaro, a poucas casas de distância. Lessa está sendo investigado como um dos executores do assassinato da vereadora Marielle Franco e está preso hoje.
Queiroz também mantinha contatos frequentes com integrantes do Escritório do Crime. As ligações suspeitas foram detalhadas em meio às investigações do esquema de rachadinha no antigo gabinete de Flávio Bolsonaro e das atividades criminosas do grupo, que resultou em dois processos que tramitam no Tribunal de Justiça do Rio.
Os promotores estão investigando a ampliação das atividades criminosas da milícia comandada pelo ex-caveira do Bope. Em inquérito ainda não concluído, o MP apura se o ramo de construção de prédios ilegais teria sido financiado em parte com recursos provenientes da rachadinha no gabinete do então deputado Flávio Bolsonaro, como o Intercept revelou, em abril de 2020. Na ocasião, o clã presidencial silenciou sobre as suspeitas. Outro inquérito das rachadinhas, já finalizado, indiciou Flávio Bolsonaro. Mas segue paralisado na justiça enquanto os advogados do primeiro filho tentam anular as provas levantadas nas investigações.
Um ano depois da morte de Adriano da Nóbrega, a misteriosa teia de relações do ex-capitão com personagens da política fluminense – incluindo o clã Bolsonaro – e do submundo da polícia e da contravenção parece ter sido sepultada com o matador de aluguel.
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