Responsável por investigar e punir profissionais da saúde que violem a ética médica, o Conselho Federal de Medicina levou nove meses para se pronunciar sobre os falsos tratamentos para covid-19 estimulados pelo governo federal. A omissão, no entanto, não acabou. Em um artigo publicado no último domingo, Mauro Ribeiro, presidente do CFM, deixou claro que o conselho não irá agir para acabar com a farsa do tratamento precoce.
O que as recentes notas e manifestações do CFM e dos conselhos regionais de medicina não dizem é que essa é uma orientação e vontade interna, com o intuito de não romper o alinhamento ideológico das chefias desses órgãos com o presidente Jair Bolsonaro, conforme revela a apuração do Intercept.
Conversamos com 11 médicos, ex-presidentes de conselhos regionais e ex-conselheiros dos órgãos, que revelaram os bastidores de ação dessas instituições e como elas se isolaram do debate sobre a maior crise de saúde pública do século, que já matou mais de 200 mil pessoas. Tudo para não corroer o apoio do presidente e de seus seguidores.
As fontes ouvidas, sob condição de anonimato, afirmaram que, internamente, a orientação aos médicos que integram tanto o conselho federal quanto o conselho regional de São Paulo, o maior do Brasil, é de evitar se posicionar. Seja em redes sociais privadas ou em entrevistas à imprensa, os profissionais de saúde devem evitar menções públicas sobre o uso de cloroquina, hidroxicloroquina e outros medicamentos defendidos pelo governo federal no combate à covid-19.
Orientação aos médicos é de evitar se posicionar em redes sociais e imprensa sobre tratamento precoce.
Estudos apontam que a cloroquina e a hidroxicloroquina são remédios com efeitos colaterais graves, como arritmia cardíaca e complicações renais, e comprovadamente ineficazes no tratamento da covid-19, mesmo em quadros graves. Em alguns casos, podem matar o paciente. O Código de Ética Médica veda ao médico a divulgação de promessas de resultados e cura, além de tratamentos sem comprovação científica, o sensacionalismo e a autopromoção. São os conselhos de medicina que, em tese, deveriam fiscalizar essas más práticas – mas estão omissos.
Após pressão da classe médica e da imprensa, os dois órgãos se manifestaram recentemente sobre o fantasioso “tratamento precoce”, defendido pelo Ministério da Saúde. Não há, porém, nenhuma intenção de desencorajá-lo. “O ponto fundamental que embasa o posicionamento do CFM é o respeito absoluto à autonomia do médico”, escreveu Ribeiro na Folha de S.Paulo. Para ele, as críticas ao uso de tratamentos desmentidos por diversos estudos não passam de uma “politização criminosa” a que o CFM não se renderá.
Bolsonaro e a omissão
O alinhamento entre Bolsonaro e o atual presidente do CFM, Mauro Ribeiro, foi elucidado ao longo de 2020. Em abril do ano passado, Ribeiro entregou ao presidente um parecer sobre o uso da hidroxicloroquina no tratamento da covid-19. A conclusão do cirurgião-geral, formado pela Faculdade de Medicina de Petrópolis, no Rio de Janeiro, foi de que não havia evidências de sucesso do medicamento no combate à doença. Mas, ainda assim, o presidente do CFM defendeu que os médicos estão autorizados a prescrever o medicamento, principalmente para casos leves, se julgarem necessário.
Um mês antes desse encontro, Bolsonaro compartilhou no Twitter um vídeo de Ribeiro. Nele, o presidente do CFM atacava os governadores do Nordeste que defendiam a proposta de trazer ao Brasil 15 mil profissionais da saúde brasileiros que atuavam no exterior para ajudar o setor público no combate à pandemia.
No dia 14 de janeiro deste ano, o governo federal lançou o aplicativo TrateCov e foi criticado por grande parte da comunidade científica do país. O app permitia que qualquer cidadão fizesse uma simulação de diagnóstico e recebesse indicação de tratamentos com remédios como a cloroquina. Demorou uma semana para que o conselho se manifestasse pedindo o cancelamento do aplicativo, que foi tirado do ar horas depois. Segundo o ministro Pazuello, a plataforma não teria sido disponibilizada, mas um “hacker” teria publicado o aplicativo de políticas públicas governamental.
Houve omissão também em relação à campanha de vacinação no país. O CFM não pressionou o governo federal em nenhum momento para agilizar a compra de vacinas contra a covid-19, enquanto Bolsonaro atuava em campanha contra a vacinação, dizendo que ele próprio não iria se vacinar e que as pessoas imunizadas poderiam virar um “jacaré”. O órgão só foi demonstrar apoio aos imunizantes depois de sofrer pressão pública de ex-dirigentes da entidade.
O Intercept procurou Mauro Ribeiro, presidente do conselho, mas não teve retorno.
Microcosmo de 2018
A mesma inação foi encontrada no Conselho Regional de Medicina de São Paulo, o Cremesp, considerado o maior do país, já que grande parte dos médicos brasileiros vivem no estado de São Paulo.
A primeira nota crítica às estratégias do governo federal também só veio após pressão da sociedade. Ainda em 14 de janeiro, ex-presidentes do Cremesp protocolaram uma carta no órgão pedindo que ele tomasse medidas legais e administrativas contra profissionais que divulgam informações falsas sobre o tratamento e a prevenção da covid-19.
Foi só depois disso, uma semana depois, que o Cremesp emitiu a primeira nota alertando a comunidade médica sobre a prescrição do tratamento precoce. “Reforçando que diretores clínicos, responsáveis técnicos e demais gestores não podem obrigar o médico a prescrevê-los”, escreveu o conselho.
O conselho paulista tem um cenário mais claro de influência do presidente Jair Bolsonaro. Além do fato de a atual gestão se autodefinir como “conservadora”, as fontes ouvidas pelo Intercept relataram que os médicos que hoje chefiam o conselho foram eleitos na esteira da vitória de Bolsonaro. Definem, inclusive, a eleição para a atual presidência do órgão como uma “micro-experiência da eleição à presidência [do Brasil]”. As duas ocorreram no mesmo período, em outubro de 2018.
Isso porque o pleito, conforme narram os médicos que participavam do conselho à época, foi marcado por discursos polarizados entre médicos de esquerda e de direita, além de uma campanha repleta de fake news relacionando candidatos a partidos de esquerda, como o PSOL e o PT.
O caso mais emblemático foi o de Marcos Boulos, infectologista e diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, a FMUSP. Como o próprio sobrenome sugere, o médico é pai de Guilherme Boulos, ex-candidato à prefeitura de São Paulo pelo PSOL. Isso foi um banquete para os produtores de notícias mentirosas, que tentaram descredibilizar as propostas do médico para o conselho pelo fato de ser pai do líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, o MTST.
Em uma das fake news, todos os líderes das seis chapas que participaram do pleito aparecem com suas definições e propostas de gestão. Boulos – o primeiro da imagem acima – tem suas propostas descritas como “socialistas”, é acusado de ter ligações com o PT e o PSOL e tem seu parentesco com Guilherme Boulos ressaltado no final do texto.
Ainda na mesma imagem, a chapa Mudança Já, ganhadora do pleito, divulga propostas pelo “fim da mordomia”, “fim do petismo” e “fim da partidarização do CRM [Conselho Regional de Medicina]“. Esse grupo, liderado pela médica Irene Abramovich e identificado pelo logotipo semelhante ao sinal de adição, é descrito como “conservador” no texto.
Outra fake news foi feita a partir de uma arte elaborada pela chapa de Boulos. Os fraudadores copiaram o layout colocaram o slogan da chapa do médico e uma foto do ex-presidente Lula. No centro, um texto diz que a chapa defendia a soltura do petista que, à época, estava preso na Superintendência da Polícia Federal em Curitiba.
A reportagem procurou Irene Abramovich, mas a médica não respondeu. A assessoria de imprensa do Cremesp enviou uma nota horas depois ao Intercept dizendo que o órgão tem se pronunciado sobre más práticas médicas e sobre a vacinação contra a covid-19.
“Além de mais de 700 fiscalizações – incluindo todos os hospitais de campanha –, o órgão interditou cautelarmente e está investigando profissionais que disseminavam fake news e falsos tratamentos, como o soro da imunidade, por exemplo, amplamente divulgado pela imprensa”, disse o conselho.
Sobre a hidroxicloroquina, o órgão ressalta que segue a decisão do conselho federal.
Já o CFM disse ser uma “autarquia pública que não possui vinculação política, ideológica ou partidária”. O órgão, em resposta à reportagem, ressaltou as recentes manifestações do presidente do Conselho em relação à cloroquina e à vacinação, além de outras notas publicadas no site da entidade defendendo a proteção dos profissionais da saúde durante a pandemia.
No entanto, há apenas uma nota, publicada em março de 2020, em que o conselho recomenda à população medidas reconhecidamente eficazes contra a covid-19, como uso de máscaras e o distanciamento social. Não há em nenhuma das postagens manifestações contrárias às dezenas de frases mentirosas e anticientíficas ditas pelo presidente da República.
‘É inaceitável’, diz Drauzio Varella
Cancerologista formado pela Universidade de São Paulo e médico pioneiro no tratamento da aids no Brasil, Drauzio Varella definiu como inadmissível a postura dos conselhos durante a pandemia.
“Nós temos a maior ameaça à saúde pública nos últimos 100 anos, e você não ouve uma palavra dos conselhos de medicina? Não dizem qual a posição deles? Nenhuma orientação aos médicos? Nenhuma palavra, com quase um ano de pandemia? É inaceitável”, me disse.
Na mesma linha do que outros médicos integrantes dos conselhos relataram ao Intercept, Drauzio ressaltou que mesmo as manifestações mais recentes dos órgãos ficaram pouco claras.
“Só assim [depois de pressão dos ex-presidentes] eles resolveram dizer o que pensavam? E ainda respondem de um jeito tão vago, que você não sabe exatamente o que querem dizer. Como se justifica uma coisa dessa? Num momento de crise, uma omissão desse nível?”, questionou.
Drauzio Varella relembrou o ano de 2018, quando o governo de Cuba retirou do Brasil os médicos que atuavam no país. Na ocasião, o CFM logo se manifestou contrário à manutenção dos médicos cubanos em solo brasileiro.
“Quando vieram os médicos cubanos, nós vimos a grita que foi. A grita que os conselhos fizeram, que era um absurdo, que estavam avacalhando a profissão médica, que os cubanos não tinham formação”, lembrou Drauzio. “Agora, você vê médicos dando nome completo defendendo tratamentos que não têm sentido, que foram abandonados no mundo inteiro. Eles demonstraram que não funciona. E o conselho fica quieto?”, indagou.
“Estamos com uma pandemia dessas. Os conselhos de medicina o que poderiam dizer? Primeiro, a coisa mais simples e imediata: usem máscara e evitem aglomerações. Você viu o conselho dar essa mensagem para a população? Uma coisa tão simples como essa”, concluiu.
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