Após uma reportagem mostrar que 36% dos locais de votação no Rio Grande do Sul não tinham condições de acessibilidade para eleitores com dificuldade de locomoção, a Ordem dos Advogados no estado, a OAB-RS, pediu ao Tribunal Regional Eleitoral gaúcho que tomasse medidas para reverter esse quadro, com a instalação de rampas e elevadores. O objetivo era assegurar que todos pudessem votar, já que há mais de 26,000 eleitores com deficiência no estado. Algumas dessas exigências constam em uma resolução do próprio TSE, de 2012. O alerta da OAB, porém, não foi suficiente.
Neste depoimento ao Intercept, a gaúcha Gabriela Silva, 38 anos, relata como foi impedida de votar no primeiro turno das eleições municipais em Porto Alegre ao ter sua seção eleitoral trocada para o segundo andar de um prédio sem acessibilidade. Segundo o TRE-RS, não constava a necessidade especial no cadastro de Gabriela. Detalhe: Gabriela vota há 20 anos no mesmo local e nasceu com dificuldades de locomoção.
A eleitora foi orientada a justificar seu voto. O Tribunal também lhe disse para repetir o procedimento no segundo turno, o que obrigará Gabriela a se deslocar novamente até a seção para justificar a abstenção. “Mesmo em uma eleição, a acessibilidade não é prioridade. Até o processo eleitoral é pensado e feito em cima de uma normatividade do corpo”, desabafa Gabriela. No Brasil, são 12,5 milhões de pessoas com deficiência, um total de 6,7% da população. O número cresce para quase um quarto da população brasileira, cerca de 46 milhões, se consideradas pessoas com algum grau de dificuldade para enxergar, ouvir, caminhar ou subir e descer degraus, conforme dados do IBGE.
Segundo o advogado Francisco Telles, vice-presidente da Comissão Especial de Direitos da Pessoa com Deficiência da OAB-RS, o Tribunal deveria assegurar em caráter de urgência o direito ao voto de Gabriela para o segundo turno. “Me custa a crer que seja tão difícil retorná-la para uma seção térrea”, disse Telles. “Há uma barreira quase intransponível que afasta as pessoas com deficiência não só do processo político como também do processo eleitoral, o que é inadmissível e viola convenções da ONU que o Brasil é signatário e tem status constitucional”, alerta o advogado.
Após o contato do Intercept na quinta-feira, 19 de novembro, o juízo eleitoral passou a verificar junto à escola onde Gabriela vota a possibilidade da instalação no térreo da sua seção. Nesta quarta-feira, 25, o TRE-RS confirmou que a mudança será feita para que Gabriela exerça seu direito.
Na sexta-feira anterior às eleições de domingo, sem conseguir acessar o E-título, entrei no site do Tribunal para checar minha seção e vi que ela havia sido trocada. A vida toda, desde meu registro como eleitora em 2000, votei sempre no mesmo lugar: no térreo da Escola João Antônio Satte, bairro Rubem Berta, zona norte de Porto Alegre. Achei esquisita a troca apesar de continuar no mesmo prédio, mas imaginei que poderia ter sido algum tipo de mudança qualquer.
No domingo, saí de casa por volta das 11h. Moro a cerca de 20 minutos da escola, e minha vizinha me levou. Não tenho uma cadeira de rodas motorizada, então ela me levou manualmente mesmo, empurrando. É um trajeto que a gente faz andando quase no meio da rua, na margem do asfalto e evitando os carros, já que as calçadas de Porto Alegre são terríveis.
Quando chegamos no colégio, descobri que essa seção nova havia sido movida para o segundo andar da escola – e não havia nenhum recurso de acessibilidade que me permitisse subir até lá. Sem conseguir chegar até a urna, fui orientada a ir até à seção especial que havia nesse mesmo colégio, no térreo, onde a presidenta da mesa entrou em contato com o TRE. Essa seção é específica para pessoas com dificuldade de locomoção e descobri no dia que eu não estava cadastrada para votar ali.
Esperamos cerca de 20 minutos até essa presidenta da mesa ter uma resposta: ela me explicou que eu não poderia votar. Disse que, segundo o TRE, eu precisaria justificar e não votaria nem no primeiro turno, nem no segundo. Falaram que transferiram minha seção porque, no meu cadastro eleitoral, não diz que sou PCD e que, quando fiz meu título, em 2000, essa informação não era solicitada no cadastro. Perguntei, então, como é que seria no segundo turno e fui informada que eu teria de ir ao colégio de novo para justificar presencialmente, já que o E-título faz isso apenas pela localização do aparelho, em caso da pessoa estar fora de seu domicílio eleitoral.
Não consegui votar! Trocaram a minha seção pro andar superior e só me restou justificar.
— Gabi (@Bruxinhagabis) November 15, 2020
Segundo o TRE, nessas duas semanas não haveria tempo hábil para me trocar de seção. É como se dissessem ‘ah, não pode votar, justifica aí, o teu voto não precisa’. Eu vou ter de me deslocar mais uma vez só para não votar – algo que uma pessoa sem deficiência faz de casa, pelo E-título, que não contempla casos como o meu.
Na ata do primeiro turno, a mesária justificou a abstenção escrevendo que não pude acessar a seção por ter problemas de locomoção. Quando cheguei em casa, registrei uma reclamação na ouvidoria do TRE, mas até agora não me atenderam e recebi apenas respostas automáticas. Nas redes sociais, vi vários relatos de pessoas com deficiência dizendo que tiveram dificuldade de votar. Em alguns casos, como o meu.
Eis que trocaram a minha seção para votar. A sala tem um degrau grande. O pessoal não quer me descer pra não dar b.o. Chamaram a moça da acessibilidade que me falou para IR PARA CASA e justificar e depois ir até o cartório modificar o rolê.
Ser pcd é isso.— Partes ♿ (@partesart) November 15, 2020
Eu acho um absurdo meu direito ao voto ser negado por estar em uma cadeira de rodas. Entendo não poder trocar a seção, mas não compreendo porque me mandam justificar meu voto pura e simplesmente. O TRE não me deu nenhuma uma opção, e eu não aceito ser carregada escadaria acima! A orientação que me deram é ir até um cartório eleitoral e atualizar meu cadastro para 2022, já que para esse ano nada poderia ser feito.
Estamos em 2020 e ainda não temos sistemas de acessibilidade? Já vivi outros casos assim. Ir ao SUS e não conseguir acessar o posto, ficar horas esperando para conseguir entrar em um banco e depois horas a mais para poder sair. Acessibilidade não é prioridade durante as eleições nem é prioridade para a sociedade como um todo.
A impressão que tenho é que não vejo muita diferença dos anos 1990 para cá. Naquela época, minha mãe precisou brigar para eu conseguir acessar uma escola regular e garantir meu direito à educação. Hoje, tenho 38 anos e preciso brigar para assegurar meu direito ao voto. Quando se é uma pessoa com deficiência, é preciso lutar pelo acesso ao básico.
O que disse TSE
Em resposta ao Intercept, o Tribunal Superior Eleitoral disse que não há norma que permita a alteração de uma seção eleitoral entre o primeiro e o segundo turno. O TSE ressaltou, contudo, que “há a possibilidade do eleitor informar ao juiz eleitoral de sua zona o ocorrido no primeiro turno para que o magistrado avalie as condições (…) e a possibilidade de alocação da seção eleitoral em área com maior acessibilidade no local de votação”.
Segundo o TSE, informações de deficiência de eleitores só começaram a ser coletadas em 2003 – três anos depois do registro de Gabriela como eleitora. É obrigação dos Tribunais Regionais Eleitorais, segundo o artigo 7º de uma resolução de 2012, solicitar, por meio de campanhas de comunicação, a atualização cadastral do eleitor com deficiência e conscientizá-lo do processo eleitoral.
O TSE também afirmou que o E-Título serve para o eleitor justificar seu voto somente quando estiver fora de seu domicílio eleitoral e que, salvo neste tipo de caso, “todos os eleitores, pessoas com deficiência ou não, que tiveram qualquer outro motivo para justificar a ausência às urnas deve fazer o procedimento regular para justificativa”.
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