Quem me conhece sabe que sou muito pouco afeito ao futebol. Não tenho time, o que me deixa um pouco à parte do universo – majoritariamente masculino e ainda bem homofóbico – de se zoar e ser zoado pelas afiliações futebolísticas. Mas nesta quinta-feira, 26 de novembro, uma mensagem da mestranda Leila Dumaresq que chegou no grupo de WhatsApp do nosso laboratório de política de drogas na Unicamp me fez querer escrever sobre futebol. Leila criticava uma fala do ex-jogador Júnior sobre a morte de Diego Maradona.
A mensagem da Leila me fez relembrar as peripécias de Maradona que eu testemunhei. Nasci em 1972 e não vi Pelé jogar ao vivo, em seu auge. Mas Maradona, sim, eu vi, pela TV. Testemunhei-o vingando o conflito das Malvinas no jogo contra a Inglaterra em 1986, provando que apesar do clichê, o futebol é mesmo um sucedâneo da guerra. Vi o gol de mão mais famoso da história. E no espírito maroto de ser também um sudaca e latino-americano, vibrei.
Maradona não tinha a majestade olímpica de um Pelé, mas tinha a força que só um deus zombeteiro poderia ter. Irreverente, irritante, iluminado. Dava raiva de ver quando era contra a gente, mas era impossível de não se admirar. Ele abria os caminhos, tal qual um Exu dos gramados. Criava mundos como os demiurgos zueiros das tradições ameríndias.
E como qualquer deus zombeteiro, Maradona era demasiado humano, e teve realmente que lidar com muitas atribulações em sua vida, a maioria causadas por ele mesmo. O mais conhecido é o seu envolvimento com álcool e cocaína. Não vou me alongar a falar sobre isso, pois há farto material na imprensa, esses dias, para atender a esta demanda.
Apesar de toda sua genialidade, muitas pessoas têm escolhido falar de Maradona pela ótica da falta.
Desde que a mensagem da Leila abriu os meus olhos, o que mais me chamou a atenção desde o triste ocorrido é, que, apesar de toda sua genialidade, muitas pessoas têm escolhido falar de Maradona pela ótica da falta. Disserta-se sobre o que Maradona poderia ter alcançado em sua vida se, em última instância… ele não tivesse sido Diego Armando Maradona.
Neste momento, não temos a menor ideia se sua morte teve a ver com seu abuso de drogas, um problema reconhecido por ele mesmo: “Sabe que jogador eu teria sido se não tivesse usado drogas? Um jogador do caralho. Tenho 53 anos, mas é como se tivesse 78”.
Sim, há boa chance de que a vida de Maradona tenha sido encurtada pelos excessos. Isso é triste, e poderia ter sido evitado. Mas isso não muda o fato que se o julgamos pelas hipotéticas limitações causadas por seu envolvimento com substâncias, estaremos medindo o jogador somente pelo tamanho do estigma de “drogado”.
O mundo do futebol é conservador – pelo menos na cara que ele mostra ao público. Não faltaram falas apressadas de comentaristas, técnicos e jogadores brasileiros frisando os maus exemplos de Maradona. Poucos são os que reconheceram com sensibilidade, como Juca Kfouri, que não deve ter sido fácil ser turbinado pela cocaína da Camorra napolitana. E há menos ainda os que fazem a fatídica pergunta: será que Maradona teria presenteado o Napoli com tantas vitórias se não fosse a energia infindável que ele obtinha no doping com cocaína?
Não acho que se deva ignorar o que aconteceu, mas há muito mais na biografia de Maradona para contemplarmos, além de cenas memoráveis com a bola: sua origem em uma favela de Buenos Aires, a ausência de receio em se posicionar politicamente e até outras polêmicas. Enfim, sua vida.
É impossível dizer quem teria sido Maradona sem as drogas. Mas, com elas, ele foi o que poderia ter sido: um jogador do caralho. Como psiquiatra, espero e trabalho para desenvolvermos melhores formas de prevenção e tratamento para que pessoas com problemas como os dele vivam melhor no futuro.
As drogas definitivamente assustam as pessoas. Mas comentaristas de futebol não são pais preocupados precisando explicar a seus filhos o que pode acontecer quando alguém usa substâncias psicoativas.
A moralização do discurso sobre drogas nos faz focar demais na ideia de usuários como “inimigos públicos” e, com isso, não conseguimos enxergar sem preconceitos as pessoas que as usam. Vislumbrar com clareza que estamos lidando com indivíduos que sofrem é um passo fundamental para oferecer para a minoria de usuários problemáticos de drogas os cuidados que eles necessitam.
De forma inversa, na malfadada guerra às drogas que continua a ser travada – neste caso, um conflito que não pode ser substituído por jogos de bola – não são as drogas que são alvejadas. São corpos humanos que são empilhados nos necrotérios ou nos cárceres, sem encontrar solução para o drama humano que advém do nosso talento em sucumbir àquilo que nos é delicioso.
Se conseguirmos conter o impulso de julgar Maradona pelos seus supostos pecados, poderemos perceber que nenhum deles o torna menor. E nem maior. Celebremos seu gênio, lamentemos sua falta, mas não deixemos o discurso moralista desmerecer o brilho de Dieguito.
Ele fez o que podia e deu o que tinha. E, olhem, isso não foi pouca coisa.
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