Conheci Gidalva Lino dos Santos duas semanas antes da pandemia chegar. Quase não se falava sobre coronavírus à época. Eu estava trabalhando com monitoria no Museu da Imagem e do Som, o MIS, na capital paulista, e ela chegou como visitante me oferecendo álcool em gel. Eu estranhei o gesto. Ela, então, me alertou sobre o coronavírus. Prolongamos o papo dentro do ônibus do MIS, onde eu ficava para transportar os visitantes. Lá, ela me relatou que gostava de escrever e, como um livro aberto, contou sobre seus sonhos e sua visão de mundo, tudo em rápidos 15 minutos até a chegada ao museu.
Gidalva dos Santos nasceu em Pedrinhas, Sergipe, mas se mudou para São Paulo há 20 anos, deixando sua mãe e seus irmãos no nordeste. Há 14 anos, Dalva, como prefere ser chamada, escreve um livro de relatos de domésticas, mesclando realidade e fantasia. Ela diz já ter lido mais de mil livros em sua vida inteira e é especialmente fã das obras da escritora Carolina Maria de Jesus e da filósofa Djamila Ribeiro.
“Eu não sou doméstica por profissão, mas por falta de opção. Quando eu cheguei em São Paulo eu tinha só o segundo grau”, me disse ela durante o almoço, seis meses depois do nosso encontro, na sua casa no Jardim Ângela, zona sul de São Paulo, onde me concedeu a entrevista. Antes da pandemia, sua rotina era 12 horas diárias de trabalho.
Mesmo com a rotina intensa como doméstica, Dalva se formou em Pedagogia e, logo depois, cursou uma pós-graduação em Formação Docente. Mas, há cerca de três anos, porém, desistiu de entregar seu currículo nas escolas em São Paulo por nunca ter tido retorno. “Eu não posso parar minhas faxinas para tentar só trabalhar nas escolas. Quem vai bancar minhas contas, meu aluguel, minha vida em si?”, questiona.
O relato foi editado para fins de clareza.
Foi na década de 80 que minha comadre, Dona Josefina Costa Silva, que era professora e não gostava de fazer o trajeto até a escola sozinha, decidiu que eu, minha irmã Gerusa e meu irmão Givaldo, íamos acompanhá-la no caminho do trabalho. Foi assim que ela formou cada um de nós na escola em que trabalhava, a E. M. José Alexandre da Silva, que fica em Aruá, cidade do povoado Bandoleira, próximo ao meu povoado chamado João Pinto, em Sergipe. O nome João Pinto é em homenagem a um professor que dava aulas em uma cabana. Ele morreu há algum tempo.
Aguelda Rocha, professora de português que tive no ensino fundamental, incentivava muito a leitura para os alunos. Ela me ensinou a ter gosto de ler. Me tornei uma pessoa apaixonada pela língua portuguesa. Tanto é que a primeira peça de teatro que eu assisti, aos 34 anos, era sobre a Clarice Lispector: “Simplesmente eu, Clarice Lispector” era o nome. Quando terminei o ensino médio, dei aulas à noite no meu povoado para adultos no projeto da Ruth Cardoso, que usava o método Paulo Freire de alfabetização.
O meu povoado era só de brancos. Minha família era a única família negra de lá. Minha irmã, que estudou boa parte em salas que só tinham alunos brancos, sempre teve muita dificuldade com estudos no geral. Mais tarde, quando estudei sobre a afetividade no método de ensino, compreendi como o racismo afetou sua aprendizagem. Ela me contava que a professora atendia as perguntas das alunas brancas e a ignorava quando era ela que perguntava.
Na década de 1990, parte da família se mudou para São Paulo. Minhas quatro irmãs que moram aqui também são domésticas. Vim para cá com 24 anos e comecei trabalhando de doméstica na casa de libaneses, onde morei por oito anos. Para minhas irmãs, o negócio era ser doméstica – foram elas que me arranjaram emprego nesta casa.
Depois fui para casa de descendentes de suíços. Sentia como se fosse minha. Mas quando eu fui fazer faculdade, eles mudaram. Falavam que empregada não precisava estudar e ficavam zombando que eu não levava jeito como advogada. Com a minha pontuação no ProUni, eu tinha cinco opções de bolsa: Direito, Pedagogia, Letras, Serviço Social e História. Decidi pela Pedagogia.
Tive de trabalhar muito para conseguir me formar. Levantava às 5 da manhã e trabalhava até as 17h. Deixava a mesa de jantar montada, ia para a faculdade e, quando voltava às 23h, ainda lavava a louça. Faltando três meses para acabar o ano, me demiti e virei diarista para terminar a faculdade de Pedagogia com mais tempo para estudar.
Terminei a graduação em 2013, aos 36 anos. Aí quis a fazer pós, e fiz. Cursei a pós em Formação Docente em Ensino Superior na PUC-SP. Minha monografia foi sobre o Henri Wallon e a visão integral do desenvolvimento humano. Wallon dizia que, às vezes, são problemas emocionais que afetam o aprendizado das crianças.
Mas não consigo emprego na área. Já perdi a conta de quantos currículos enviei para diferentes escolas em São Paulo. Entreguei pessoalmente, sabe? Logo depois de formada, fui chamada para cinco entrevistas e foi só. Não tive mais retorno nenhum. Quando terminei a pós, eu trabalhava todos os dias como doméstica, semana cheia. Como que uma pessoa vai ter experiências no currículo se não tem tempo? Oportunidade? Eu não posso parar minhas faxinas para tentar só trabalhar nas escolas. Quem vai bancar minhas contas, meu aluguel, minha vida em si?
Só consegui um estágio numa creche pública durante a faculdade. E continuei diarista para terminar o curso porque não se contrata uma professora negra em São Paulo. É a cor e o endereço. São Paulo é um dos estados mais racistas do Brasil. Se eu tivesse na minha terra, acho que estaria melhor. Depois da pós, que terminei em 2018, parei de procurar. Não cheguei enviar mais currículo nenhum.
‘Involuntariamente, uma doméstica é uma pedagoga. E ela nem sabe disso’.
Me vejo hoje mais como doméstica e, às vezes, quando estou estudando, como pedagoga. Na verdade, me vejo entre a pedagoga e a doméstica. Estou no meio, entre as duas. Involuntariamente, uma doméstica é uma pedagoga. E ela nem sabe disso. Ela cuida e ajuda no desenvolvimento dos espaços e das pessoas.
Para o doutor, o médico e o advogado estarem engomadinhos, tem uma doméstica lá atrás que cozinhou para ele, que cuidou da casa e da roupa. Enquanto o moço está lá em cima, a doméstica está lá atrás, ralando e se agachando para deixá-lo bem. E enquanto eu faço o almoço, minha colega de trabalho branca se senta à mesa para almoçar.
Em 2016, teve um fato que marcou minha vida. Prestei um concurso de cadastro reserva para professores no Serviço Social da Indústria, o Sesi. Na prova, continham textos da escritora Carolina Maria de Jesus. Lembro de ser um dia muito chuvoso quando conheci a Carolina naquele concurso. Olha, se eu já era revoltada, fiquei mais ainda.
“Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada” é um grito de justiça, de luta de classes e sua fala reverbera em mim até hoje. Ela narrou e descreveu o sofrimento, fazendo analogias, que eu tinha vivido, mas não me dava conta. Para mim, Carolina é uma bússola. Ela morreu no ano que eu nasci, em 1977.
Muito do que Carolina escreveu, naquela época, nós estamos vivendo hoje. O governo Bolsonaro é o próprio retrocesso. A luta das domésticas e as dificuldades só pioraram. Nós continuamos sem acesso a nada, inclusive à cultura. E depois da pandemia, piorou. A doméstica já é vista como um ser que não existe. Ainda tem alguns patrões que pensam agora que são elas que vão levar a covid-19. Mas a doença está aí para todo mundo, sabe? Eu mesma perdi vários dias de trabalho. Me mandaram embora e pronto, sem pagar nada, sem nenhum direito.
Tem também o silêncio da doméstica. Uma doméstica não pode ter problema. O patrão tem para falar para ela ouvir. Já ela, não. Se ela falar alguma coisa, ela é silenciada. Filho de patrão já me mandou calar a boca e me chamou de louca. Em um trecho do meu livro, escrevi: “Quem nunca teve uma doméstica na sua vida? O que ela não deve saber? O que ela é obrigada a saber e por que ela está ali?”
Já percebeu como as pessoas chamam a doméstica de “empregada”, e não de doméstica, que é o verdadeiro ofício? Todos os trabalhadores são empregados, mas só a doméstica é chamada assim. No meu livro, eu trago essas reflexões, como o fato de eu ser contra o uniforme da doméstica. No Nordeste não se fala em uniforme, é farda.
Hoje, trabalho só em duas casas. Em cada casa, eu começo e termino o trabalho de jeitos diferentes. Tem casa que eu começo pela sala, tem casa que começo pelo quarto. Tem casas com regras de limpezas quase militares. E quando falo isso, lembro da personagem Rainha de Copas do livro “Alice no País das Maravilhas”, em que ela vai para um julgamento sem saber do que se trata. No meu livro, relaciono o mundo da Alice com o que acontece no meu trabalho. O chapeleiro maluco, por exemplo, eu conheci numa casa aqui em São Paulo, e ele me impediu de sentar à mesa para tomar um café.
O Brasil tem uma população negra muito grande, e a maioria das domésticas são negras e analfabetas. Na PUC, um colega bateu na minha mão para eu não falar que eu fazia faxina. Naquele momento eu aceitei, achando que ele estava certo. Mas não! Não tem que agradar o outro, ninguém pode levar desaforo para casa, como disse a filósofa Djamila Ribeiro. Depois que eu li essa mulher, eu não deixo ninguém fazer o que querem comigo mais, não. As domésticas têm que mostrar sua cara, pois o Brasil já mostrou quem ele é.
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