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Uma reportagem do Intercept foi censurada e nós descobrimos o motivo

Fomos obrigados a tirar uma reportagem do ar pela primeira vez em nossa história – graças às relações entre política e Judiciário no Amazonas.


Se você tentou acessar a reportagem Candidato de Manaus conta com o hospital da família, a covid e o Judiciário para subir nas pesquisas” e não conseguiu, o motivo é simples: nós fomos censurados. O texto, publicado em 13 de novembro e retirado do ar pela Justiça Eleitoral amazonense dois dias depois, contava como o candidato agora derrotado à prefeitura da capital Ricardo Nicolau, do PSD, aproveitou o acesso privilegiado que tinha ao interior do hospital municipal de campanha de Manaus para gravar imagens vestido de branco e visitando leitos de pacientes como se fosse um médico – ele não é.

O material foi usado em sua campanha eleitoral para colar a imagem de Nicolau a do hospital, construído em quatro dias. A propaganda também tentava criar a narrativa de que o candidato (que ficou em 4º lugar, com 12% dos votos) foi responsável pelo tratamento de centenas de pacientes com covid-19. Para isso, Nicolau usava o livre acesso que tinha ao hospital de campanha da capital, já que ele era parte do grupo Samel, rede de hospitais privados da sua família. A Samel administrou a unidade por uma parceria público-privada com a prefeitura de Manaus.

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A reportagem também mostrava que parte das ações judiciais movidas pelos adversários de Nicolau caíram no gabinete da juíza eleitoral Margareth Rose Cruz Hoaegen. Ela decidiu em favor do candidato em dois processos que questionavam o uso do nome do grupo Samel e das imagens filmadas dentro do hospital municipal de campanha. Para os adversários, aquilo se tratava de abuso do poder econômico ou propaganda ilegal, mas a magistrada discordou. A juiza Hoaegen, que julgou em seu favor nas decisões, como mostramos na reportagem censurada, é grande amiga de Jeanne Nicolau, cunhada do candidato. A juíza também esteve no aniversário de Jean Cleuter, advogado de Ricardo Nicolau.

Nossa reportagem incomodou o candidato Nicolau. Ele não queria apenas a exclusão da matéria, mas que a Justiça Eleitoral retirasse todo o Intercept do ar. Nicolau entrou com quatro representações praticamente iguais contra a publicação no Tribunal Regional Eleitoral no sábado, 14. Nicolau é um homem de sorte: uma delas caiu nas mãos do juiz Alexandre Henrique Novaes de Araújo, que, assim como a juíza Hoaegen, também tem relações próximas com o grupo Samel e com a família Nicolau.

Araújo manteve o site no ar, mas determinou a censura do texto alegando que “a publicação imputa fatos sabidamente inverídicos” sem discriminar que fatos são esses. Até agora, não sabemos o que, na reportagem, era “sabidamente inverídico”.

Ação entre amigos

O juiz Araújo, que determinou a censura à reportagem, foi um dos ilustres convidados de uma festa que celebrava o aniversário de Alberto Nicolau, irmão do candidato derrotado Ricardo Nicolau. Além de principal doador da campanha do irmão (R$ 1 milhão), Alberto é também diretor-presidente do grupo Samel. O evento aconteceu no dia 21 de agosto, no último andar do prédio da Samel, o “rooftop mais disputado da cidade”.

Legenda: O Juiz Araújo (primeiro, à esquerda) e a juíza Mendonça no aniversário do “Seu Samel” com outros dois magistrados.

Legenda: O Juiz Araújo (primeiro, à esquerda) e a juíza Mendonça no aniversário do “Seu Samel” com outros dois magistrados.

Foto: Reprodução/Instagram

O evento tinha uma peculiaridade: Ricardo Nicolau já era pré-candidato à prefeitura de Manaus e o juiz Araújo já atuava na fiscalização da propaganda eleitoral na capital. Uma foto postada pela juíza Rebeca Mendonça em seu Instagram mostra ela e outros três magistrados, entre eles Araújo, “celebrando a vida desse querido, seu Samel”.

Ricardo Nicolau está no quinto mandato como deputado estadual e já foi presidente da Assembleia Legislativa do Amazonas. Antes da pandemia, o candidato derrotado não era diretor da Samel, mas passou a ostentar o título desde que se licenciou do cargo de parlamentar em abril para, nas suas palavras, se “dedicar integralmente ao combate ao coronavírus“.

Não há nenhum fundamento na decisão de Araújo que justifique a censura de uma reportagem calcada em apuração jornalística. Como nós, aqui no Intercept, não gostamos de dormir com dúvidas, fomos atrás de fontes para tentar entender melhor o que poderia estar acontecendo. E descobrimos que a esposa do magistrado Araújo, Monike Antony, por exemplo, não escondeu suas preferências políticas nessas eleições. Ela postou um vídeo de campanha de Ricardo Nicolau em suas redes pessoais.

Vídeo compartilhado pela esposa do juiz Araújo, Monike Antony, em suas redes sociais.

Isso mesmo: a esposa do juiz que ordenou, a pedido de Nicolau, que escondêssemos informação do público (apagando nossa reportagem) compartilhou propaganda política de… Ricardo Nicolau. Não surpreende, pois em 2018 Antony já havia apoiado explicitamente o candidato, quando ele concorreu a deputado estadual.

Na sua foto de perfil no Facebook, Monike Antony também deixou clara sua preferência para a prefeitura de Manaus.

Tem mais: nessas fotos aqui, por exemplo, Monike Antony aparece ao lado de Márcia Nicolau e de Jeanne Nicolau, respectivamente esposa e cunhada do candidato, em algumas festas. Eu sei que é muito Nicolau misturado, mas vocês entenderam.

Do início da campanha, em setembro, até o final de outubro, os adversários de Nicolau na disputa pela prefeitura de Manaus entraram com ao menos dez ações na Justiça Eleitoral contra ele. As principais denúncias questionavam o possível abuso de poder econômico e a propaganda irregular devido ao uso que o candidato fazia da marca da Samel nos seus programas no horário eleitoral gratuito, e também das imagens gravadas no interior do hospital de campanha municipal. Era essa, justamente, a denúncia do Intercept. Fatos, nada além de fatos. Seis desses processos caíram nas mãos do juiz Araújo ou da juíza Hoaegen. Em nenhum deles, os juízes proibiram Nicolau de usar a marca da família para se promover.

Os demais processos foram analisados pela juíza Sanã Nogueira Almendros de Oliveira. Ela foi a única que proibiu a veiculação da marca da Samel nas propagandas eleitorais do candidato. Descontente, Nicolau pediu a suspeição da magistrada, alegando que ela estava sendo parcial e que ela era “a única que rema contra a maré, sendo que esta maré trata-se da legislação eleitoral”. A maré, como se vê, tinha que necessariamente favorecer Nicolau.

Por decisão do desembargador do TRE do Amazonas Jorge Manoel Lopes Lins, a juíza Oliveira foi proibida de julgar qualquer ação contra o candidato Nicolau devido à possibilidade de “parcialidade da douta magistrada”. Nós não achamos fotos da juíza Oliveira em festas com a família Nicolau.

Na decisão que determinou a retirada da reportagem do Intercept do ar, o juiz Araújo afirma ainda que o texto fez uma “propaganda negativa e depreciativa da imagem de Nicolau”, como se o objetivo do jornalismo fosse o de fazer algum tipo de propaganda elogiosa.

O candidato reclamou que promovemos “racismo intelectual” (sério) ao informar que ele não tem ensino superior completo. Mas o que mostramos foram informações oficiais do site do TSE, advertindo que ele não tem formação em medicina, o contrário do que dava a entender em sua campanha eleitoral. Ele nem mesmo concluiu o ensino médio.

Nicolau disse em campanha que tem mais de 30 anos de trabalho dentro do hospital e exibiu depoimentos de pacientes agradecendo ao “doutor Nicolau” pela cura da covid-19. Algum desavisado poderia pensar que o “doutor” é médico. Mas, ao deixar claro para o público que isso não é verdade, fomos obrigados a deletar uma reportagem porque ela era intelectualmente “racista”, colocação constrangedora frente ao racismo real que milhões de brasileiros sofrem diariamente.

E o plano de saúde do TRE tem a Samel no meio

A influência do grupo Samel no estado é outro fator que explica a celeridade em censurar uma reportagem com fins explicitamente jornalísticos. No site do Grupo Samel, que também atua na área de planos de saúde, é possível ver a logomarca do Tribunal Regional Eleitoral do Amazonas ao lado de outras marcas de planos de saúde, indicando que o convênio oferecido aos servidores do TRE é aceito nos hospitais do grupo. Nós perguntamos ao Tribunal sobre o contrato para entender melhor que tipo de serviço a Samel presta e quanto fatura, mas eles não responderam.

Uma reportagem do Intercept foi censurada e nós descobrimos o motivo

A Samel aparece entre os convênios aceitos pelo TRE do Amazonas.

O que surpreende, também, é que a própria Samel tenha se prontificado a administrar o hospital municipal de campanha, doando medicamentos e funcionários, sem ganhar nada em troca. Como mostramos em maio, o hospital particular da rede que atendia pacientes com a covid-19 cobrava até R$ 100 mil adiantado para fazer uma internação na UTI.

A Samel tentou, inclusive, pegar de volta os equipamentos que havia doado ao hospital de campanha. Segundo a empresa, o objetivo era levar o material ao estado de Roraima, onde instalou outra unidade de saúde para tratar pacientes com a covid-19 gratuitamente. A prefeitura de Manaus se recusou a entregá-los. O diretor-presidente do grupo e irmão de Ricardo Nicolau, Alberto Nicolau, disse que era “absurdo” o bloqueio dos aparelhos cedidos pela Samel. Mas vocês podem imaginar, a justiça mais uma vez acatou um pedido da família Samel e determinou que materiais e equipamentos doados pelas empresas fossem devolvidos.

Não foi a primeira vez que Ricardo Nicolau recorreu aos tribunais para silenciar uma reportagem que lhe desagradou. Em outubro, o deputado entrou com uma ação contra o jornalista Dante Graça, a Rede Calderaro de Comunicação, o Facebook e o Twitter para que fosse excluída uma matéria jornalística publicada no site e no jornal A Crítica e compartilhada nas duas redes sociais. O texto dizia que Nicolau havia chegado a um debate promovido pela afiliada da Band do estado no dia 1º de outubro “a bordo de um Jeep Compass, SUV de luxo que tem preço inicial de R$ 128 mil”, um valor bem maior do que os veículos que declarou como bens.

O candidato alegou que era evidente o “intuito de prejudicar sua imagem”, e a juíza Mônica Cristina Raposo lhe deu razão. Na censura à reportagem de Dante Graça, ela determinou “a imediata remoção do artigo” e a publicação do direito de resposta do candidato não apenas no site e nas redes sociais do grupo de comunicação, mas também no perfil pessoal do jornalista Graça.

Entramos em contato com o juiz Araújo, o TRE, a Samel e Ricardo Nicolau. Frente a censura que nos impuseram e as ligações entre o candidato derrotado, o judiciário e a empresa, se calaram.

Nem mesmo a mega empresa da família, ou sua pose de “doutor” covid, ou as festas com membros do Judiciário e as decisões para censurar a imprensa foram suficientes para levar Nicolau ao segundo turno. Sua derrota eleitoral derrubou também a censura à reportagem, que conseguimos recolocar no ar nesta terça, 17. Durante as horas quentes da votação do primeiro turno, Ricardo Nicolau conseguiu o que desejava, impedir que nossos leitores conhecessem seus métodos. No fim, ele chegou na campanha de SUV de luxo e saiu pela porta dos fundos, com honrosos 12,08% dos votos. O eleitor, às vezes, é o melhor remédio.

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