No dia 21 de agosto, a advogada Tabatah Alves Flores recebeu o mandado de prisão de seu cliente, o dramaturgo André Luiz Monteiro, mais conhecido como André Lemos. A sentença: um ano e 15 dias de prisão em regime semiaberto por uma história que começou ainda em dezembro de 2013, quando André foi carregado para fora da Aldeia Maracanã por seis policiais ao se recusar a deixar o local, alvo de uma reintegração de posse.
André ensinava teatro e musicalização em um projeto de universidade indígena na aldeia. A poucos passos do estádio do Maracanã, na zona norte do Rio, o prédio do antigo Museu do Índio, abandonado desde o fim dos anos 70, estava ocupado por indígenas e outros movimentos sociais desde 2006. Ao lado do Batalhão de Choque da Polícia Militar, representantes da construtora Odebrecht, que venceu a licitação para a reforma do Maracanã para a Copa do Mundo de 2014, acompanhavam a desocupação. Eles esperavam incluir o espaço do museu no complexo do estádio, além de usá-lo como estacionamento e centro de compras anexo ao estádio para a Copa do Mundo de 2014.
Aproximadamente 60 pessoas participavam da resistência. Enquanto outros manifestantes se concentravam em alimentar e entregar água ao indígena José Urutau Guajajara, que ficou 26 horas em cima de uma árvore ao lado do prédio em protesto, André indagava, sentado, sobre a presença da Polícia Militar no local. Logo ele teve braços e pernas agarrados pelo Choque e foi esmagado contra o chão por outros dois policiais enquanto tentava se desvencilhar e teve o braço esquerdo pisado, como mostram imagens do filme Urutau: Resistência Marakanã. Dali, Lemos foi carregado para o camburão e, apesar das outras dezenas de pessoas que também protestavam contra a desocupação do local, diz, foi o único levado à delegacia. E, hoje, sete anos após desintegração de posse, também foi o único condenado no processo que transcorreu após a desocupação do local – mesmo que cerca de 70 outras pessoas estivessem no mesmo protesto. “Fui agredido por entre oito e dez homens. O curioso é que, das pessoas que estavam nesse momento, nenhuma foi conduzida para delegacia, só eu. Eu era o único negro nesse momento. Fiquei bastante machucado, com lesões nas costas e rosto”, contou por telefone.
Na delegacia, foi aberto registro de ocorrência por resistência, desacato e desobediência. O PM Rodrigo Magalhães Luna da Costa foi elencado como uma das vítimas de Lemos, segundo o documento. Costa foi apelidado de “terrorista” por um de seus colegas, o major Elitusalem Gomes de Freitas, conforme publicado no Jornal Extra em março de 2015 ao incentivar o assassinato de “marginais”.
Em 31 de janeiro de 2014, André foi denunciado pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro por resistência, desobediência e desacato contra a PM. O artista conta que todo o julgamento foi permeado por situações de racismo e deboche por parte da acusação. Arão Guajajara, testemunha do caso com quem conversei, por exemplo, lembra que foi questionado se era “realmente indígena”, pois trajava um terno na ocasião. Imagens mostradas no filme Urutau: Resistência Marakanã, com registros de Migueis e outros cinegrafistas independentes, mostram cerca de oito policiais em cima de Lemos.
Na sentença, assinada pelo juiz Gustavo Gomes Kalil, André foi identificado como “líder de uma massa de pessoas”. O documento também afirmou que “não ficou comprovada nenhuma agressão por parte dos policiais” e que estes “nada falavam, aguentando passivamente a chuva de insultos” de Lemos, apesar das gravações captadas pelo documentário mostrarem o contrário. Inicialmente, ele foi condenado a seis meses e 21 dias de prisão, com o direito de recorrer em liberdade concedido.
A presença da Polícia Militar no local e a contradição entre o reportado pelos policiais militares e o Ministério Público também foi ignorada pela justiça. O espaço é ocupado por indígenas, mas a Fundação Nacional do Índio e a Polícia Federal, que deveriam estar presentes, confirmaram que não foram informadas sobre a desocupação. Enquanto o documento da Ordem de Policiamento da PM daquele dia informava a presença da Polícia Militar e do Batalhão da Polícia de Choque para desocupar o prédio, a denúncia dos promotores afirma que os policiais estavam no local apenas para fazer um perímetro de segurança em torno do prédio a fim de que os bombeiros pudessem resgatar o indígena Urutau Guajajara da árvore com segurança.
Na denúncia do Ministério Público, três policiais foram arrolados para testemunharem contra Lemos. A defesa do dramaturgo alega que eles não poderiam ser as únicas testemunhas já que eram também, em tese, vítimas do desacato.
O julgamento passou para a segunda instância na 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, onde as acusações foram revistas pela casa. O crime de injúria, determinado na sentença da 1ª instância, foi revisto e trocado para desacato, como consta no acórdão de apelação. Essa mudança elevou a pena de Lemos seis meses para 1 ano e 15 dias em regime semiaberto, quando o preso tem o direito de trabalhar e fazer cursos fora da prisão durante o dia, mas deve retornar à unidade penitenciária à noite.
No recurso apresentado por Flores ao Superior Tribunal de Justiça, a pena permaneceu.
Segundo o advogado criminalista e professor da Universidade Federal Fluminense, Taiguara Líbano Soares, as condições do caso indicariam normalmente uma sentença de pagamento de multa ou serviços comunitários. “Na pior hipótese, deveria ser fixado o regime inicial aberto. A fixação do regime inicial semi-aberto é uma aberração, tem um rigorismo exacerbado, com clara conotação política, de criminalização da legítima atuação de movimentos sociais. Há uma intenção deliberada de levar o condenado ao cárcere”, diz.
No dia 25 de outubro de 2019, o ministro do STJ Schietti Cruz negou o recurso de Lemos e manteve a pena.
Para o procurador da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ, Rodrigo Mondego, o Ministério Público já errou ao prosseguir com a denúncia adiante. “Teria que entender a motivação do MP de mover todo o sistema da justiça criminal para condenar uma pessoa usando meramente a versão e a palavra dos policiais, que tratam como extrema verdade”.
Procurado para esclarecimentos sobre a condenação, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro destacou trechos do acórdão da condenação e limitou-se a dizer que “o texto é muito claro quando aponta os motivos que levaram à condenação do réu”. Até o fechamento desta matéria, a assessoria do Superior Tribunal de Justiça não respondeu.
Hoje com 35 anos, André faz parte do coletivo Confraria do Impossível, que reúne teatro, audiovisual e uma editora literária virtual. Em 2019, foi o primeiro negro a vencer o Prêmio Shell de Teatro, na categoria direção, pelo espetáculo Esperança na Revolta. Por conta da pandemia, o dramaturgo adiou mais um projeto de sua carreira: a inauguração do Teatro Chica Xavier, primeiro teatro negro do Rio de Janeiro.
A sentença, diz o professor Soares, soa como um recado intimidatório aos ativistas. “É simbólico o fato de um negro ter sido o único condenado”, afirma.
Aldeia esquecida
Alvo da Operação Lava Jato, o consórcio formado pela Odebrecht e Eike Batista para reformar o Maracanã – e que estava de olho no Museu do Índio/Aldeia Maracanã – tomou outros rumos. Após a descoberta de desvios de milhões de reais, o então governador Sérgio Cabral e os empresários Marcelo Odebrecht e Eike foram presos.
Após a tentativa de remoção no dia 16 de dezembro de 2013, os moradores da Aldeia foram realocados pela Prefeitura do Rio em Jacarepaguá e outros bairros, até que em 2014 foram morar em casas do programa Minha Casa Minha Vida, na área central da cidade.
Procurada, a Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Rio informou que há um projeto para a construção de um Centro de Referência da Cultura dos Povos Indígenas no local e que a reforma depende da disponibilidade orçamentária do governo do estado dos próximos anos ou de possíveis parcerias – iniciativa que parece pouco provável, dado os anos em que o espaço permaneceu esquecido.
A defesa de André ainda aguarda julgamento do habeas corpus pelo STF, onde pede conversão da prisão em pena restritiva de direitos, como a prestação de serviço comunitários por exemplo.
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