Em reunião com pastores na última quinta-feira, Edir Macedo, líder máximo da Igreja Universal do Reino de Deus, defendeu que o diabo “tem o direito de tirar a vida” de “quem vive no adultério e no pecado”. Macedo não citou nomes. Mas tudo indica que ele se referia a uma tragédia familiar envolvendo um antigo aliado, o ex-bispo da Universal Alfredo Paulo, hoje um de seus maiores inimigos. A mulher do ex-bispo, Teresa Paulo, de 53 anos, havia sido assassinada pelo próprio filho três dias antes, em Portugal.
“Hoje, ele está colhendo frutos. Eu não estou condenando ninguém. Ele está se condenando. O que você planta hoje, vai colher amanhã”, afirmou Macedo na reunião. Ex-responsável pela Universal em Portugal entre 2002 e 2009, o brasileiro Alfredo estava na igreja havia 31 anos e foi afastado em 2013 por ter traído a mulher – desde então, é um dos maiores críticos do império de Macedo nas redes sociais. Foi processado por calúnia e difamação e condenado a pagar uma indenização de mais de R$ 1,8 milhão à Universal, que o chama de “mentiroso”. Ele não fala sobre o processo e está recorrendo.
A reunião de Edir Macedo com pastores no último dia 5 foi colocada na plataforma de vídeos sob demanda Univer Vídeo – que oferece filmes, desenhos e documentários aos fiéis, além de cultos e eventos ao vivo –, mas sem vários dos trechos do discurso de Macedo. As falas suprimidas foram obtidas pelo Intercept em uma gravação da reunião. Ouça dois trechos (você pode ouvir a gravação completa de 29 minutos aqui).
“Quando um pastor, ou a esposa do pastor, vive em adultério, ou vive uma vida errada, que não condiz com a sua fé, está demonstrando claramente, está dizendo, assim, que carrega na testa o pecado abominável ao Senhor”, disse o bispo. Para Macedo, quem “está vivendo no pecado da imoralidade, da corrupção, da mentira, do roubo, do adultério carrega na testa abominável ao Senhor”. O diabo, então, “por conta disso, tem o direito de tomar a vida dessa pessoa de maneira estúpida e grosseira, como vimos”, afirmou o bispo na reunião.
Ex-pastores ligados à Universal ouvidos pelo Intercept afirmam “não ter dúvida” de que ele está se referindo a Alfredo Paulo. A fala também repercutiu em círculos de fieis, que a associaram ao caso. Perguntamos à Universal sobre a fala de Macedo na manhã de terça-feira, por e-mail. A igreja até agora não respondeu. Outros trechos da gravação – que tem, no total, mais de uma hora de duração – foram comparados com o vídeo no canal da Universal, comprovando de que se trata, de fato, da mesma reunião, com textos suprimidos na divulgação da própria igreja.
Ao pregar para uma pequena plateia, Macedo disse ter sentido “uma coceirinha na língua” para falar o nome “da pessoa”, mas preferiu chamá-la de “Zé Mané”. Falou “do desastre, da tragédia que aconteceu na família daquele que um dia esteve no nosso meio”. Para ele, Deus permitiu essa tragédia e continuará a permitir “para que todos os demais venham a temer e tremer diante do temível Deus”. E concluiu: “ai daqueles que caírem (em desgraça). Se é horrível cair no inferno, imagine quanto é horrível cair na misericórdia de Nosso Senhor Jesus Cristo”.
“Ele falou coisas terríveis contra a Igreja Universal. Esse Zé Mané levou pessoas até a se matar. Pessoas se mataram por causa do Zé Mané”, criticou. Outros ainda serão vítimas de castigo, garantiu. “Vai acontecer mais, muito mais. Cada vez vai ficar pior. À medida que o senhor Jesus está vivo e se aproxima, mais coisas atrozes nós vamos ver”. Macedo disse estar profetizando. “Não é apenas contra esse elemento, mas com todos os demais que se voltam contra a obra de Deus”.
Filho da igreja
Desde que foi expulso da Universal, Alfredo Paulo se tornou um ferrenho adversário de Edir Macedo. Seu canal no YouTube se tornou um veículo de denúncias contra a igreja, muitas repassadas de forma anônima por pastores e obreiros em atividade na instituição. Foi Alfredo que falou publicamente, pela primeira vez, sobre o suspeita de desvio de dinheiro de Angola para outros países, confirmado depois por outros religiosos. A Universal nega tudo e diz confiar que a justiça brasileira irá punir “exemplarmente o mentiroso”.
A tragédia familiar do ex-bispo começou na noite de 2 de novembro, ao chegar em sua casa, por volta de 20h15, na pacata aldeia de Paio Pires, no Seixal, arredores de Lisboa. Alfredo estava no trabalho e havia telefonado para a sua mulher Teresa. Ninguém atendeu. Ligou novamente, dezenas de vezes. Enviou mensagens, sem sucesso. Decidiu então retornar.
Alfredo teria encontrado a porta de casa escorada com móveis e outros objetos para impedir a passagem. Ao entrar, deparou-se com a cena trágica: Teresa estava morta, atingida por mais de 20 facadas, nas costas, pescoço, tórax e braços. Havia uma poça de sangue no chão e uma faca de cozinha ao lado, usada no crime. Sentada no sofá, Teresa teria sido atingida de surpresa, pelas costas, segundo Alfredo contou a um amigo da família, cuja identidade será preservada. O assassino teria fugido pela janela. Lavou-se antes de sair da casa.
O ex-bispo morava com a mulher e o filho, Lucas Paulo, 23 anos. O jovem não estava em casa naquele momento. A polícia foi chamada e, imediatamente, passou a considerar o filho suspeito. Uma vizinha afirmou ter ouvido uma forte discussão entre ele e Teresa naquela tarde. O amigo da família, porém, me garantiu que a relação deles era “harmoniosa” e Alfredo nunca teria presenciado atritos entre a mãe e o filho.
A polícia concluiu que o crime havia ocorrido à tarde. Lucas foi encontrado na mesma noite, às 23h30, andando sem rumo, em uma rua pouco movimentada da aldeia de Paio Pires. Não resistiu à prisão e confessou o assassinato. Devido à quarentena do coronavírus, ele ficará detido por 14 dias no Estabelecimento Prisional de Lisboa. Depois será levado para a cadeia de Montijo, na área metropolitana de Lisboa, onde aguardará o julgamento.
Lucas foi adotado por Alfredo e Teresa aos seis meses, ainda no Brasil. Ele apareceu ao lado da mãe em um vídeo no YouTube, em 2016. Os dois, naquele momento, defenderam o pai de ataques de fiéis da Igreja Universal devido às revelações na imprensa de que ele cometera adultério. Lucas e Teresa disseram ter sido informados do fato pelo próprio Alfredo e garantiram que o deslize não teria abalado a união da família, pois haviam perdoado o pai.
Filho deixou a igreja por descontentamento por seu trabalho ser resumido a ‘recolher dinheiro’.
“É o único argumento que eles têm. Porque tudo que meu pai vem falando aqui nos vídeos, vocês sabem que é verdade. Você pastor, você esposa. O que é dito sobre a Fogueira Santa, o que acontece no meio dos pastores, o que acontece na cúpula, para onde vai o dinheiro do povo. Você sabe, assim como eu também sei. Eu cresci e eu vi o que acontece lá dentro. Considere isso. Pense bem no que você está fazendo. Pense bem qual o objetivo das pregações que você faz. Se são em favor da salvação do povo, ou dos interesses da cúpula, para que eles recebam mais dinheiro, mais poder”, disse Lucas no vídeo.
O jovem possui nacionalidades brasileira e portuguesa. Segundo jornais portugueses, era introvertido e sem vida social, não trabalhava nem estudava. Antes do rompimento do pai com a Universal vinha sendo preparado – como filho de bispo – para também se tornar um líder religioso. Desde muito jovem, atuou como auxiliar de pastor em Londres e nas Filipinas, trabalho comum entre jovens da Universal. Segundo Lucas contou, em uma entrevista ao lado do pai para a TVI de Portugal, em dezembro de 2017, uma das razões pelas quais deixou a igreja seria um descontentamento por seu trabalho ter se resumido “a recolher dinheiro” para o bispo e o pastor responsável pela igreja nas Filipinas, onde passou dois anos. “Eu fazia a mesma coisa todos os dias. Era simplesmente acordar, fazer uma reunião, pedir o dinheiro das pessoas, dar do dinheiro para o pastor, dar o dinheiro para o bispo e fazer a mesma coisa no próximo dia. Era essa minha vida. Aí pensei: para onde minha vida está indo? E decidi sair”, afirmou o rapaz.
Quando o pai deixou a Universal, Lucas seguiu como pastor por mais três anos. Somente em 2016, depois do afastamento do jovem, Alfredo passou a fazer suas denúncias contra a igreja na internet. Ainda na instituição, Lucas teria ouvido certa vez de um líder da Universal, segundo esse amigo da família, que ele “não tinha mais pai”, e seu pai, a partir daquele momento, “seria a igreja”. Essa afirmação o teria deixado confuso. Nos últimos meses, ainda segundo o mesmo amigo da família, Lucas passara a fazer discursos sem sentido e a citar frases desconexas. Chegou a dizer, por exemplo, que alguns colegas da igreja seriam seus “filhos”.
Em uma live, no sábado 7, o ex-bispo Alfredo, abalado e chorando muito, contou que, num primeiro momento, não queria mais saber de Lucas nem receber mais qualquer informação sobre o filho. Depois, sentiu compaixão e quis ajudá-lo. Foi visitá-lo na cadeia e levou roupas. Mas não conseguiu vê-lo. Segundo Alfredo, a mulher Teresa o ensinou a perdoar e “faria o mesmo” pelo rapaz.
‘Estou recebendo todo o tipo de mensagem de ódio e maldição espalhada nos grupos dos obreiros e voluntários, como forma de castigo divino ao Alfredo’.
Sem dinheiro para fazer o sepultamento, o ex-bispo – que vive de bicos e trabalhos autônomos em Portugal –, contou com a ajuda de amigos, que pediram doações nas redes sociais. “Gostaria de agradecer a todos que estão me ajudando neste momento tão difícil”, afirmou.
A fala de Edir Macedo sobre o ocorrido gerou reações de dissidentes da Universal. Um acalorado debate disseminou-se nas redes sociais. O ex-pastor da igreja Davi Vieira criticou Macedo “por não respeitar o luto” e “atacar de forma covarde Alfredo Paulo”. A Igreja Universal noticiou o assassinato de Teresa Paulo em seu site oficial e lamentou o ocorrido. Expressou o seu pesar e pediu orações à família.
Mas, para seguidores da igreja, em comentários em grupos de WhatsApp e no Facebook, Deus teria aplicado o merecido castigo ao bispo dissidente, ecoando a mensagem de Macedo. “Sei de toda a falta de respeito, disfarçada de caridade e solidariedade pelo falecimento de dona Teresa Paulo, que a liderança da Universal está divulgando em todo o mundo”, disse Vieira, hoje também um youtuber. Para ele, a igreja está trabalhando para “expor e fazer de exemplo negativo a imagem do nosso irmão”. “Estou recebendo todo o tipo de mensagem de ódio e maldição espalhada nos grupos dos obreiros e voluntários, como forma de castigo divino ao Alfredo pelas denúncias contra a cúpula da IURD”.
Vieira divulgou um pedido de ajuda para Alfredo e forneceu os dados de sua conta pessoal para doações. Os dois foram criticados duramente por fiéis da Universal. “Chegaram a dizer que a gente estava se aproveitando da situação para ganhar dinheiro”, disse ex-pastor, que atuou na Universal por mais de 30 anos.
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