“Aguardem os acontecimentos da próxima semana. Especialmente os do dia 11 de setembro. Storm!”, postou no Twitter o candidato a vereador no Rio de Janeiro pelo PSD Alan Lopes Santana em 6 de setembro. Nos dias seguintes, ele tuitou sobre operações da Polícia Federal relacionadas a crimes sexuais contra crianças e tráfico de drogas – sempre invocando uma tal Operação Storm. Seus seguidores foram ao delírio. “A Operação Storm está agindo faz tempo e ninguém percebe! Tentem pesquisar mundo a fora. vocês vão ver que não tem nada parado. luta é grande FÉ!”, disse uma delas.
Storm, tempestade em inglês, é o termo que os seguidores da teoria da conspiração QAnon usam para definir uma fictícia operação militar transnacional. Oculta e não-oficial, ela lutaria contra supostas redes internacionais de pedofilia que seriam coordenadas pelo que podemos resumir como um misterioso grupo secreto de canibais pedófilos satanistas.
Parece mentira – e é. Mas o movimento, que vem sendo usado por partidários de Donald Trump para inflamar as eleições dos EUA, realmente propaga que o mundo é dominado por canibais pedófilos, usando o pânico moral para vencer nas urnas. Provável arma eleitoral do bolsonarismo em 2022, a teoria da conspiração já é ensaiada no Brasil na disputa pelas câmaras municipais este ano.
Alan Lopes é um dos candidatos que já está usando a retórica mentirosa. O político se apresenta como correspondente do site bolsonarista Terça Livre, notório propagador de notícias falsas capitaneado por Allan dos Santos. Ele ainda lidera o Movimento Direita Inteligente, apadrinhado pelo senador Arolde de Oliveira, também do PSD e dono de um império de comunicação evangélico considerado por pesquisadores um dos que mais espalharam desinformação.
O aspirante a vereador segue os passos dos tutores, mas se especializou na linguagem QAnon para mobilizar seus mais de 50 mil seguidores no Twitter. Tentei falar com ele por telefone, Whatsapp e pelo Facebook para entender sua relação com o movimento QAnon. Ele não respondeu aos pedidos de comentário e usou seu Twitter para expor meu telefone, pedindo que seus seguidores “brincassem” comigo. O post foi apagado, mas circulou entre influenciadores da cena QAnon.
Apenas no dia 28 de setembro, Lopes respondeu aos meus contatos para dar sua visão. Por telefone, o candidato corroborou sua crença na Operação Storm, explicando que seria uma operação transnacional que combate, segundo ele, tráfico de órgãos, crianças, pedras e drogas. O candidato, porém, não vê relação com a teoria conspiratória americana. “Isso não é uma defesa de QAnon nem nada do tipo. O que eu falo é apenas um raciocínio sobre tudo o que está acontecendo”.
Também procurei o PSD do município do Rio de Janeiro diversas vezes nas últimas semanas para questioná-los sobre a disseminação de teorias conspiratórias. Embora eu tenha mandado quatro e-mails para o secretário-geral do partido no Rio, Carlos Portinho, até o momento não houve resposta.
‘Não é uma defesa de QAnon. O que eu falo é apenas um raciocínio sobre tudo o que está acontecendo’.
Outro candidato a vereador que já publicou conteúdo similar é Diego Henrique de Sousa Guedes, mais conhecido como Dom Lancellotti, do Republicanos de Fortaleza. Uma das lideranças do grupo Gays com Bolsonaro, o jovem já vem falando sobre o movimento QAnon desde 2018.
“Minha galera do QAnon tá toda no Gab, Reddit, 4chan, 8chan… Não arrisco falar tanto disso por aqui porque a gente, mais do que nunca, precisa ter o Twitter ativo no Brasil”, escreveu em julho de 2019, se referindo a fóruns online com menos moderação e, portanto, mais usados para conteúdos controversos.
Mais recentemente, ele considerou que a notícia de que a cantora Anitta teria se inspirado no trabalho da artista performática sérvia Marina Abramovic seria indício de um pacto feito pela brasileira. Guedes não explicita em seu tweet que pacto seria esse, mas as hashtags #pedogate #qanon e #pizzagate indicam que seria algo relacionado à satanismo e pedofilia. Marina Abramovic é há anos vista por movimentos conservadores – o que inclui QAnon – como uma satanista devido ao teor provocativo e às vezes chocantes de suas obras.
A reportagem entrou em contato com Guedes por meio de seu WhatsApp, Twitter e Instagram, mas ele não respondeu aos pedidos de comentário. Em vez disso, expôs a solicitação de entrevista em suas redes sociais. O diretório do Republicanos no Ceará, por sua vez, não respondeu até o momento os pedidos de comentários solicitados por e-mail.
Em todos os lugares
Nos EUA, Brasil, Itália, Alemanha e diversos outros países já há protestos organizados pelo movimento QAnon para chamar a atenção do público. As manifestações geralmente giram em torno de pautas morais de difícil contestação e cooptam os slogans e hashtags de organizações reais destinadas ao combate ao tráfico infantil, como a Salvem as Crianças, em atividade desde 1919. Estive presente em uma delas, ocorrida na praia de Copacabana em 23 de agosto, e presenciei ao vivo como eles instrumentalizam a luta contra o tráfico humano e o abuso sexual de crianças para disseminar o movimento para o público geral de forma mais amena.
Em outro protesto, no dia 22 de junho em Brasília, o motorista de aplicativos Daniel Augusto Rocha Carneiro, hoje candidato a vereador em Belo Horizonte, apareceu ao lado de uma conhecida influencer da cena QAnon, que ostentava um cartaz com os dizeres Obamagate e uma letra Q, símbolo do movimento.
Nas duas postagens que fez no local, Rocha usou várias hashtags conhecidas entre os apoiadores do movimento, como #qstorm, #qanons, #qanonstorm e outras variações.
Em uma das fotos, o candidato inclusive usa a frase “estamos em todos os lugares”, outro lema dos seguidores da teoria. Entrei em contato com ele em seu Instagram, WhatsApp e por telefone uma vez para perguntar sobre sua relação com o QAnon. Ele não respondeu por nenhum meio, mas apagou os dois posts. Já o Podemos disse apenas que o posicionamento do candidato não é o do partido.
No dia 2 de junho, o candidato a vereador Luis Alexandre Mandú, do Solidariedade em Pindamonhangaba, São Paulo, tentou surfar a mesma onda. No Twitter, ele postou a sigla WWG1WGA, que significa where we go one we go all, onde vai um, vamos todos, em tradução livre – e a frase Trust the plan – em português, “confie no plano”, dois bordões QAnon.
Perguntei a ele sobre sua relação com o movimento conspiratório. Por telefone, ele me disse que ficou assustado quando soube da natureza do movimento e tratou de apagar a postagem. “Não sou adepto, não sou favorável, não concordo, não apoio, não tenho nada a ver com isso”.
Em nota, o diretório estadual do Solidariedade disse que “não tinha até agora nenhum conhecimento acerca de candidatos que manifestem apoio a teorias de conspiração”. Disse ainda que “tais práticas não se coadunam com as diretrizes da agremiação e serão apuradas”, além de manifestar repúdio a ataques à democracia.
A nova cartilha da extrema direita
O QAnon surgiu em 2017 no fórum online de discussões anônimas 4chan. Em uma postagem de outubro daquele ano, um usuário que se intitulou Q disse ter acesso a dados sigilosos do governo americano que expunham uma “guerra secreta” que estaria acontecendo entre o presidente Donald Trump e o grupo imaginário de satanistas pedófilos.
Com o passar do tempo, novas postagens deste usuário foram inserindo novas mensagens crípticas e desnecessariamente confusas para serem “desvendadas” pelos seus seguidores. Desde então, quase 5 mil posts, chamados de Q-Drops, foram publicados em diversos fóruns online.
Para Alexander Reid Ross, professor da Universidade de Portland, nos Esados Unidos, e pesquisador do Centro para Análise da Direita Radical, o QAnon é um movimento de direita político e religioso que tem aspectos ocultistas e sincréticos. “Isso é, que contém uma leitura que tenta decifrar o desconhecido e o místico por meio de uma estrutura de crenças que integra e incuba outras teorias conspiratórias, sejam antigas ou novas”, explicou ao Intercept.
De crianças resgatadas em túneis até a mentirosa correlação entre o 5g e a epidemia de coronavírus, de alienígenas até a volta de John F. Kennedy Jr., herdeiro político do clã Kennedy que morreu em um acidente de avião em 1999, o QAnon virou o grande guarda-chuva de teorias da conspiração.
Essa versatilidade acaba permitindo que o movimento seja instrumentalizado ou disseminado tanto por políticos de direita, personalidades públicas como o ex-apresentador Gilberto Barros, extremistas religiosos ou até mesmo comunidades da Nova Era.
Os bolsonaristas, que não têm o menor pudor em comprar a cartilha da extrema direita americana, logo abraçaram os termos, a linguagem e os métodos dos conspiradores dos EUA. Allan dos Santos, por exemplo, já fez postagens com tópicos específicos da teoria conspiratória, como Pizzagate – uma tese que envolveria o Partido Democrata dos EUA, redes de pedofilia e simbologia oculta. Por causa dessa teoria, um homem foi a um restaurante que faria parte do esquema e atacou a tiros o local em busca de supostas crianças perdidas.
Outro influenciador conservador de extrema direita que publica conteúdos sobre QAnon em suas redes é o médico e youtuber Alessandro Loiola. Ele chegou a ser coordenador-geral de Empreendedorismo e Inovação da Secretaria Especial de Cultura de Roberto Alvim, mas foi exonerado pouco tempo depois do chefe, demitido em janeiro após postar um vídeo com referências nazistas. Atualmente, ele é colunista de um site de notícias pró-Bolsonaro, que lançou uma revista dedicada exclusivamente ao movimento QAnon.
Bernardo Küster, palestrante e youtuber católico, por sua vez, repostou uma publicação de autoria de um conhecido perfil da comunidade QAnon. Nela, defende que o ex-ministro da Justiça Sergio Moro seria uma “marionete” do bilionário George Soros, tradicional alvo da direita mundial. Atualmente, a publicação está ocultada devido ao bloqueio do perfil de Küster por decisão judicial.
Já o deputado federal Eduardo Bolsonaro, do PSL, é mais sutil. Ele não fala de forma explícita da “operação”, mas se utiliza da simbologia da palavra tempestade, ou storm, em inglês, para atiçar a base bolsonarista que acredita na teoria. Em postagem recente no Parler, uma rede social usada majoritariamente pela direita, ele passa a mensagem de que há “uma tempestade (STORM) chegando”.
Uma consultoria que analisa redes sociais também detectou uma mudança de foco em 200 grupos bolsonaristas nas redes sociais: entre julho e agosto, a pedofilia se tornou o assunto principal nas redes de extrema direita.
“Já há alguns dias o tema ‘combate à pedofilia’ aparece com mais intensidade no universo bolsonarista. Vem criando-se um espantalho de que a esquerda e a mídia liberal progressista teriam a intenção de descriminalizar a pedofilia”, diz o relatório, revelado no blog do jornalista Rubens Valente. “Nessa toada, acusam e difamam personalidades por supostamente serem favoráveis ao projeto, como o Felipe Neto, Xuxa e o deputado Marcelo Freixo [PSOL-RJ]”.
Ainda segundo o relatório, a figura mais associada ao tema, além de Jair Bolsonaro, é a ministra Damares Alves, vista como saída para o problema. No final de jullho e início de agosto, revelou Valente, Damares surfou a onda: em nove dias, postou 18 vezes sobre pedofilia em suas redes sociais, tema ecoado pela Secom, a Secretaria de Comunicação do governo. Segundo os que defendem a teoria conspiratória, a ministra seria uma das responsáveis por trazer a “operação” para o Brasil.
Um levantamento da agência de checagem Aos Fatos mostrou que, no Twitter, há cerca de 212 autoridades brasileiras seguindo 1.400 contas que ajudam a propagar os delírios do QAnon. Desse total, 34 seguem ao menos 10 desses perfis conspiratórios. O PSL é a sigla de 16 (47%) dessas autoridades. Podemos e Democratas, com três autoridades listadas cada, aparecem em seguida.
Para Odilon Caldeira Neto, professor de história contemporânea da Universidade Federal de Juiz de Fora, essa adaptação do QAnon no país segue passos semelhantes à gênese nos EUA, com uma relação mais voltada à denúncias de tráfico humano e pedofilia.
“Há, sim, sub-teorias no QAnon mais limítrofes e fora da realidade, mas aqui no país parece existir um núcleo forte que promove interação com setores mais amplos do bolsonarismo, como o conservadorismo evangélico”, diz ele. A escolha das pautas não é por acaso: elas têm alta visibilidade por serem essencialmente morais e de apelo para além do conservadorismo.
Para Yasodara Córdova, especialista em internet e sociedade e mestranda em políticas públicas da Harvard Kennedy School, é importante não legitimar tais movimentos. Para ela, o QAnon tem as mesmas características de “hoaxes”, ou mentiras baseadas em pseudociência, que não podem ser provadas falsas.
“Se esse mito se perpetuar, sempre vai ter um grupo de pessoas fiéis, assim como outras seitas limítrofes”, afirma Córdova, alertando que o perigo à democracia é o crescimento de tais movimentos para além dessa bolha, podendo causar danos financeiros ou até mesmo à outras pessoas.
Não à toa, o movimento QAnon é considerado pelo FBI, a Polícia Federal Americana, como um risco à segurança nacional. Além disso, pessoas que acreditam na teoria já se envolveram em ao menos seis incidentes violentos nos EUA.
Por isso, grandes empresas de redes sociais como o Facebook, Twitter e Instagram começaram a banir grupos e hashtags específicas do movimento. Ontem, o Facebook anunciou que banirá conteúdos relacionados ao grupo conspiratório de todas as suas plataformas.
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