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Democratas precisam acordar: movimento pró-Trump está repleto de fascismo

Quanto mais cedo entenderem que os partidários de Trump não se importam com a tirania, maiores as chances de ganhar esta eleição.

Democratas precisam acordar: movimento pró-Trump está repleto de fascismo

Democratas precisam acordar: movimento pró-Trump está repleto de fascismo

O presidente Donald Trump fala aos apoiadores em um comício de campanha no Aeroporto Regional Arnold Palmer em Latrobe, Pensilvânia, em 3 de setembro de 2020.

Foto: Jeff Swensen / Getty Images

Alegações de histerectomias involuntárias conduzidas em pessoas em um centro de detenção de migrantes? Número recorde de crianças que vão para a cama com fome? É inútil tentar identificar quando exatamente os Estados Unidos de Trump abandonaram a comunidade dos povos civilizados. É mais importante e útil explicar como nos enganamos quanto aos impulsos fascistas de seus apoiadores “comuns”, que se escondem à vista de todos.

Muitos democratas e liberais se iludiram, esperando que cada novo relato de informantes, ou cada livro de memórias de alguém das internas, pudesse expor a corrupção de Trump de forma tão chocante, tão inequívoca, a ponto de fazer seus apoiadores verem a luz. Mas quanto mais cedo essas pessoas entenderem que os apoiadores de Trump não se importam com sua autocracia, melhor para os liberais se ocuparem de tentar ganhar esta eleição.

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Basta prestar atenção às denúncias urgentes da MSNBC, da NPR e do New York Times sobre cada revelação que incrimina e mostra a má conduta de Trump, ou ler o arsenal de relatórios de vigilância produzido pelo complexo industrial sem fins lucrativos dos liberais, e veremos estes agindo como se a falta de informação estivesse condenando nossa democracia, como se mais provas incontestáveis pudessem salvá-la. “Ah, se eles soubessem”, diz aquela velha frase. Não, nem livros como “Fire and Fury” de Michael Wolff, “The Room Where It Happened” de John Bolton, ou “Too Much and Never Enough” de Mary Trump, serviram para revelar o caráter de Trump para os seus seguidores ou aos eleitores indecisos. Um importante comentarista previu recentemente: o livro de Bob Woodward é o que vai cair “como uma bomba de hidrogênio.”

Para vencer essa disputa presidencial, os democratas precisam aceitar que os partidários de Trump não se importam se ele vai descartar milhões de votos por correspondência, ou se vai aceitar, e até mesmo solicitar, a interferência russa a seu favor. Alguns apoiadores de Trump não apenas entendem que ele é um autocrata que burla as regras para permanecer no poder, como apreciam exatamente isso nele. A esquerda deve entender que muitos partidários de Trump partem da crença que se sairiam melhor sob um sistema autocrático supremacista branco do que sob uma democracia multirracial.

Para vencer essa disputa presidencial, os democratas precisam aceitar que os partidários de Trump não se importam se ele vai descartar milhões de votos por correspondência, ou se vai aceitar, e até mesmo solicitar, a interferência russa a seu favor.

Muitos brancos liberais e moderados estão investidos na ideia de que o autoritarismo não pode acontecer nos Estados Unidos, porque questionar a existência do autoritarismo no país é questionar o que eles alcançaram. Essas pessoas brancas, figurativa e literalmente, têm seu dinheiro, propriedade, status social e autoimagem investidos na miragem de que este país é baseado no mérito e no jogo limpo. Eles investiram muito na ilusão de que suas instituições políticas e colegas brancos são personagens do bem, que manterão tudo em ordem.

Questionar todo o apoio fervoroso e generalizado a Trump os forçaria a questionar como seu vizinho, seu primo, seu tio, seu colega de trabalho, seu vendedor favorito, são cúmplices de um regime que prioriza seu bem-estar e privilégio social como pessoas brancas, abaixo apenas da ganância de Trump. Reconhecer a cumplicidade de sua tia ou a sua própria cumplicidade na autocracia nacionalista de Trump pode fazer você se sentir responsável pelo que este país é. E essa responsabilidade pelo problema o torna responsável pela solução.

Expor a abrangência dos movimentos protofascistas de Trump se torna cada dia mais necessário conforme a eleição se aproxima.

Antes da votação de novembro, o chefe da Segurança Interna nomeado por Trump ordenou que oficiais de inteligência apartidários parassem de conduzir avaliações de risco sobre ameaças representadas pela Rússia, porque isso poderia prejudicar a campanha de Trump. O chefe de segurança também tentou suprimir as palavras “nacionalistas brancos” das análises de ameaças feitas por especialistas, a fim de minimizar o quanto este governo inflamou e fez crescer o nacionalismo branco como uma ameaça à segurança. Da mesma forma, as nomeações não qualificadas para a alta hierarquia feitas por Trump estão tentando politizar, manipular e censurar a inteligência da comunidade de segurança – especialmente em relação à Rússia e aos violentos nacionalistas brancos domésticos – a fim de permanecer no poder. Republicanos poderosos no Congresso e nos governos estaduais deram pouca atenção a isso.

O monstro de diversas cabeças da intervenção russa, o uso de gás lacrimogêneo para poder posar para fotos, e as mentiras deliberadas de Trump sobre a letalidade de um vírus que levou diretamente a 200 mil mortes não são suficientes para mostrar a indignidade do presidente aos seus apoiadores. Nada será suficiente.

Traduzindo para os democratas, isso quer dizer que no caminho do combate contra o fascismo, existem milhões de apoiadores que o abraçam.
A história, nesse caso, é importante. As comparações históricas não devem ser feitas aleatoriamente ou de forma promíscua, mas essa comparação cuidadosa entre o passado e o presente precisa ser feita. Uma das tarefas mais confusas dos historiadores foi explicar o que fez com que alemães civilizados e supostamente honrados participassem ativamente da matança de milhões de pessoas. Em seu livro seminal, embora alvo de muitos debates, “Os carrascos voluntários de Hitler”, Daniel Jonah Goldhagen contesta todos os mitos que os historiadores ofereceram anteriormente para explicar a participação voluntária dos alemães em tal atrocidade.

Goldhagen desmascara a explicação da pressão situacional, de que os tempos difíceis tornaram os alemães incapazes de dizer não. Ele refuta o mito do puro interesse próprio, de que os alemães comuns estavam apenas tentando sobreviver. Ele rejeita a teoria da miopia burocrática, de que os alemães trabalhadores estavam muito ocupados se concentrando nas minúcias da sobrevivência para estarem cientes da matança sistêmica de maior escala pelos nazistas. Ele refuta a caricatura da predisposição cultural, de que os alemães eram autômatos, inclinados a obedecer à autoridade sem pensar. E ele descarta os impulsos predominantes de exagerar o domínio da desinformação, de que os alemães foram seduzidos à submissão pela mágica da cineasta Leni Riefenstahl, ou pelo carisma de seu führer.

Como Goldhagen faz com os nazistas, devemos evitar respostas prontas.

Poderiam os americanos de hoje em dia tomar parte no massacre de milhões, como os alemães fizeram? Dificilmente. E não há comparações úteis a serem feitas entre os métodos políticos de Hitler e os de Trump. Diferenças significativas distinguem os impactos políticos do Terceiro Reich em relação à administração Trump. Este país não é uma Alemanha nazista. Mas os Estados Unidos sob o comando de Trump claramente entram em território fascista.

Os Estados Unidos sob o comando de Trump claramente entram em território fascista.

Em nosso país, o presidente pode assistir mais de 2 milhões de hectares queimando, milhões de moradores fugindo de suas casas, quilômetros de manchas aéreas tóxicas no céu, apagões, ondas de calor acima de 40 graus e literalmente não se importar. Temos um líder que conhecia a letalidade de um vírus, mentiu sobre o que sabia e ainda presidiu com indiferença as 200 mil mortes subsequentes, número que segue crescendo. Mesmo durante o sombrio período de angústia do país, os apoiadores de Trump – do seu gabinete aos eleitores comuns e obstinados – colocam seu dinheiro e seu poder político coletivo à frente da vida humana, sem dúvida uma característica fundamental da autocracia.

Portanto, não posso deixar de apontar como as desculpas apresentadas em nome dos alemães da era nazista se assemelham à ingenuidade coletiva – a autorização para se enganar – concedida a cerca de 40% de nosso povo. A queda livre da democracia dos Estados Unidos não se limita a Trump. A nossa nação é cheia de mini-fascistas: os “carrascos voluntários” de Trump.

Os relatórios de análise e os estereótipos mais comuns dos apoiadores de Trump em conversas na mesa de jantar negam ou minimizam radicalmente a ideologia dos perpetradores, os valores comprometidos e a cumplicidade com a autocracia de Trump. A Fox News é a emissora a cabo mais assistida neste país, em uma proporção de cinco contra um. Embora a Fox News estimule seus telespectadores com sua visão absolutista, os eleitores de Trump são agentes ativos neste drama.

Não podemos tratar os carrascos voluntários de Trump como vítimas estúpidas do carisma do presidente e da desinformação da Fox, ou como pagadores de impostos pragmáticos que estão apenas votando em seu interesse econômico. Temos que levar a sério sua cognição e valores. Temos que chamar o seu alinhamento político pelo que ele é: uma escolha muito consciente. Eles não são autômatos sonâmbulos pela história, indefesos perante a propaganda dominante: eles entendem as enormes estruturas de incentivos que os atraem a apoiar voluntária e ativamente este regime autocrático.
Redistribuição da riqueza para o topo, privatização, extrema desigualdade de receita e o domínio da cleptocracia: essas são as marcas do capitalismo totalitário deste regime, que explora a catástrofe para minar ainda mais uma economia justa, uma classe média robusta e uma democracia verdadeiramente representativa.

A maioria dos autoritarismos que explora a corrupção é baseada no favorecimento étnico – e especialmente neste caso. A branquitude motiva essa autocracia, ao mesmo tempo que cega os americanos para seu comportamento. A democracia tem sido um princípio tão incontestável deste país, uma norma inquestionável, que ingenuamente assumimos que todos os americanos ainda a amam. Na verdade, seus traços favoráveis – “boa”, “justa”, “ordeira” e “estável” – estão implicitamente associados à branquitude em si.

Os americanos brancos gostam de pensar no fascismo como uma calamidade que acontece apenas nos países do terceiro mundo, ou de tratar seus exemplos ocidentais como exceções históricas. Uma das razões pelas quais os americanos minimizam a profunda maldade dos apoiadores de Trump é que somos convencidos a acreditar que homens e mulheres ocidentalizados e modernos são incapazes de ter preconceitos que desvalorizam a vida humana. Somos doutrinados com a ideia de que as pessoas que são modernas, brancas e cristãs certamente não têm as mesmas tendências bárbaras dos cambojanos que enviaram milhões para os campos de extermínio ou dos chilenos que delataram seus vizinhos à polícia de Pinochet. Nossas fantasias sobre o excepcionalismo cristão branco nos dizem que os americanos são limitados pelo “estado de direito”, pela decência, que todos os americanos “normais” operam com “bom senso”. Uma nação de “pessoas civilizadas” é incapaz de se apaixonar por um autocrata ou aniquilar seus concidadãos.

Autocracia não é apenas uma questão de censura e violência; ela depende de uma definição excludente de pátria que suprime a dissidência étnica.

No entanto, o modus operandi dos “carrascos voluntários” de Trump é codificar os Estados Unidos da América, esta terra, seu coração, seu patriotismo, como sendo branco e cristão, e como portador de “bom senso”. Esses códigos escondem todos os veteranos de guerra negros do Meio Oeste que morreram em combate; eles encobrem o experimento de Tuskegee – que usou afro-americanos como cobaias na pesquisa da sífilis; eles encobrem as descobertas estatísticas do Departamento de Justiça sobre a brutalidade policial generalizada com base na raça. Esses códigos desumanizam.

Josh Hawley, senador republicano de Missouri, como muitos apologistas de Trump, certa vez afirmou que os jogadores de futebol americano unindo os braços pela igualdade racial estavam intimidando o interior dos Estados Unidos. Na realidade, o protesto é o “interior dos Estados Unidos”. Autocracia não é apenas uma questão de censura e violência; depende de uma definição excludente de pátria que suprime a dissidência étnica. Deus nos livre que os negros protestem pelos direitos humanos no interior dos Estados Unidos. Se estivéssemos em Hong Kong, o Partido Republicano estaria nos elogiando.

Uma nova pesquisa revela até que ponto os impulsos autoritários encontraram apoio significativo na base republicana. De acordo com novos dados da pesquisa de Larry Bartels, da Vanderbilt University, pouco mais da metade dos eleitores republicanos – tanto os que se identificam como republicanos quanto os independentes que tendem a votar no partido – concordam fortemente ou de alguma forma com a afirmação de que “o modo de vida tradicional americano está desaparecendo tão rápido que é possível ter que usar a força para salvá-lo.” E cerca de 2 em cada 5 eleitores republicanos ou independentes concordam que “chegará um tempo em que os americanos patriotas terão que fazer justiça com as próprias mãos”. E impressionantes três quartos deles concordam que “é difícil confiar nos resultados das eleições quando tantas pessoas votam em qualquer um que oferece alguma esmola”.

Quais republicanos estão mais dispostos a destruir as normas democráticas? A hostilidade em relação ao crescimento da diversidade racial e étnica do país foi o melhor indicador da prontidão dos entrevistados para abandonar os princípios democráticos. Idade, nível de educação, localização geográfica: nenhum desses marcadores foi um fator-chave para os impulsos autoritários em comparação à hostilidade contra o crescimento da diversidade.

Negar a ligação entre o fascismo e os carrascos voluntários de Trump é tentar se livrar da obrigação de enfrentar a contagem do censo que foi sabotada; a corrupção financeira sem precedentes e o agravamento das dificuldades econômicas; a segmentação das populações negras para manipulação de mídia social pelos russos; e os 17 milhões de americanos, principalmente negros, excluídos das listas de eleitores dos Estados Unidos entre 2016 e 2018, com expurgos de eleitores alarmantes em antigos estados confederados, agora governados por republicanos.

Como muitos brancos se alternam entre as ameaças existenciais a suas contas bancárias e à saúde de suas famílias, enquanto se distraem com detalhes banais da vida doméstica – tanto Netflix, tantos memes – eles não querem se sentir responsáveis por consertar um estado fascista apoiado pelos carrascos voluntários de um presidente.

Este artigo foi apoiado pelo Economic Hardship Reporting Project.

Tradução: Antenor Savoldi Jr.

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