Eleito com a promessa de enxugar o estado, Jair Bolsonaro criou um estado seco, que só assiste e nada faz. O caso emblemático da alta dos preços do arroz mostra como o desmonte da política nacional de segurança alimentar tem um custo elevado para a população. E coloca o governo diante da própria armadilha: como reagir rapidamente quando as estruturas públicas estão destruídas?
Mais rápidas, as análises que surgiram na imprensa se concentraram em questões conjunturais, como o dólar alto, a formação de estoques pela população devido à pandemia e uma quebra de safra no Rio Grande do Sul. Tudo está certo, tudo faz sentido.
Contudo, coloca-se o governo federal como mero espectador da escalada de preços, tão voluntarioso quanto impotente. O presidente Jair Bolsonaro, que gosta desse papel, limitou-se a pedir patriotismo aos supermercadistas e a reiterar que não interferiria “ de jeito nenhum” no mercado. A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, afirmou que o governo iria apenas “monitorar” a situação.
Mas o governo é culpado pela crise, sim. Bolsonaro, que garantiu que não resolveria a celeuma do arroz “na base da canetada”, usou muita tinta da caneta presidencial para desmontar as estruturas de segurança alimentar. Uma das medidas inaugurais do seu governo, por exemplo, foi o fechamento de algumas das iniciativas que levaram o Brasil a deixar o Mapa da Fome das Nações Unidas, em 2014. Uma aposta na construção ideológica de que o estado não tem deveres na garantia da alimentação adequada à população – ainda que desde 2010 esse seja um direito constitucional dos brasileiros.
A história dos preços altos se repete. No final de 2019, foi a carne bovina . Há quatro anos, o feijão e o tomate . O arroz é só mais um exemplo do que acontece quando alimentos são vistos apenas como mercadorias.
Alimento sólido mais frequentemente consumido no Brasil, o arroz está diariamente no prato de 160 milhões de brasileiros, que comem 29,6 mil toneladas a cada dia. É evidente que a escalada de preços de um item tão importante geraria alvoroço. E a tragédia estava mais do que anunciada.
O estado só assiste
Em novembro do ano passado, O Joio e O Trigo publicou duas reportagens alertando para uma desidratação severa da Companhia Nacional de Abastecimento, a Conab. A estatal, vinculada ao Ministério da Agricultura, anunciava então a venda de 27 das suas 92 Unidades de Armazenamento. Com a medida, o ministério de Tereza Cristina pretendia economizar R$ 11,5 milhões anuais — referentes aos gastos de manutenção dos armazéns — e arrecadar R$ 44 milhões com a venda dos galpões e terrenos. Mas o barato saiu caro.
Os armazéns cumprem algumas funções essenciais para a garantia do abastecimento no país. Por meio do Programa de Aquisição de Alimentos, a Conab compra a produção de agricultores familiares do país todo a preço justo. Os alimentos têm dois fins principais: ou são doados para famílias atingidas pela fome, ou são destinados aos armazéns da Conab para formar os chamados estoques estratégicos. Esses estoques — de milho, arroz, soja, trigo, farinha de mandioca etc — são o lastro da Política de Garantia de Preços Mínimos pela qual o estado garante que os produtores não receberão valores abaixo do mercado.
A qualificação “estratégicos” no nome dos estoques não é à toa: o governo compra dos agricultores em dificuldades e espera para revender quando é a população em geral que está em apuros, em momentos como o atual, com aumento exagerado de preços ou desabastecimento no mercado. Os riscos inerentes à atividade agrícola (chuvas, geadas, secas) fazem com que historicamente o estado tenha de atuar como uma espécie de seguro. Fatores mercadológicos, como especulação, expectativa de safras futuras e variações em preços estrangeiros também influenciam a negociação nacional.
‘O governo tem que ser um interventor de última instância. Quando tudo estiver desabando, tem que entrar’.
Em maio de 2018, quando caminhoneiros cruzaram os braços em uma greve nacional, agricultores do Espírito Santo não conseguiam comprar grãos para alimentar seus animais. “Fortuitamente, tínhamos no estado 13 mil toneladas de milho armazenadas nos armazéns da Conab. E o Espírito Santo é o maior produtor de ovos e um dos maiores produtores de aves e suínos”, nos disse Francisco Olavo Batista de Sousa, técnico da Gerência de Levantamento e Atualização de Safras da Conab. “O milho da Conab foi a salvação da lavoura. Se não houvesse, teria sido uma coisa dramática. Nem consigo imaginar o que teria acontecido. O que quero dizer com isso? O governo tem que ser um interventor de última instância. Quando tudo estiver desabando, tem que entrar”.
Pior: de acordo com a assessoria de imprensa da Conab, as 27 unidades foram de fato desativadas e estão em fase de avaliação. Mas nenhuma delas foi de fato vendida até agora.
“Não faz sentido. O dever do estado é administrar esses armazéns, e isso é perfeitamente possível e viável”, nos disse Luis Carlos Guedes Pinto, ministro da Agricultura entre 2006 e 2007. “Além disso, o objetivo do poder público não é gerar lucro. Se não, tínhamos que fechar tudo quanto é hospital e escola. Essa é a lógica do atual governo, no qual o interesse público não é o principal. Parte-se do pressuposto equivocado de que a iniciativa privada resolve tudo. Se resolvesse mesmo, tudo já estaria resolvido, porque o que não falta no Brasil é controle do mercado”.
A própria armadilha
Por que, então, a Conab não usou seus estoques de arroz agora para controlar a escalada dos preços? A venda a preço moderado não só injetaria mais grãos no mercado como também faria os grandes fornecedores a baixar os valores. A resposta é tão simples quanto desanimadora: atualmente, a estatal mantém cerca de 21 mil toneladas de arroz em estoque, quantidade equivalente a 0,2% do consumo anual brasileiro e insuficiente para abastecer o país durante um único dia.
Mas nem sempre foi assim: em 1990, quando a Conab foi fundada, eram mais de 4 milhões de toneladas de arroz em estoque. Em 2012, 1,5 milhão.
“Sem dúvida a única saída no momento seria o governo ter estoques de cerca de um milhão de toneladas, para disponibilizar no mercado e com isso promover a sua regulação”, nos disse Silvio Porto, diretor que mais tempo ficou na Conab, entre 2003 e 2014. Para ele, ao subestimar os indícios de desabastecimento de arroz que surgiram no começo de 2020, o governo criou a própria armadilha. Agora é tarde. “A solução vai passar necessariamente pelos agentes privados, e o governo vai ficar como um mero espectador”.
Depois da desativação das 27 Unidades Armazenadoras no final de 2019, a capacidade total de estocagem da Conab caiu para 1,7 milhão de toneladas – cerca de 1% da capacidade privada brasileira. A redução brusca segue uma lógica de desmonte da Conab que vem se intensificando desde 2016. O Programa de Aquisição de Alimentos investiu R$ 586 milhões em 2012 na compra de alimentos de 128,8 mil agricultores familiares. Em 2018, apenas R$ 63 milhões.
Em seu primeiro ano de governo, Bolsonaro praticamente matou o programa. A equipe presidencial só aceitou uma ligeira mudança de rumos quando a tempestade já havia se formado, durante a pandemia. Diante de um pedido de agricultores familiares por R$ 1 bilhão, o governo liberou a metade disso, R$ 500 milhões. Mas só R$ 36,4 milhões foram executados até agora.
Para Silvio Porto, 2018 era o ano ideal para reabastecer os estoques estratégicos. “Os preços estavam abaixo do mínimo, era o momento da recomposição, mas o Blairo Maggi [então ministro da Agricultura] não acreditava na possibilidade e no papel do estado com os estoques públicos”, argumenta. “Da mesma forma, o atual governo tem dito que não fará nada, primeiro porque não tem mesmo capacidade de fazê-lo, mas também porque não aposta na possibilidade de recomposição dos estoques”.
A solução genial
Para não dizer que não fez nada, o governo federal, por meio da Câmara de Comércio Exterior, zerou temporariamente a taxa de importação do arroz de países de fora do Mercosul. A isenção está limitada a 400 mil toneladas, quantidade suficiente para abastecer o Brasil por 13 dias, e as primeiras sacas devem chegar aos portos brasileiros somente na metade de outubro. Pior: o arroz importado deve chegar com um valor muito próximo ou até superior ao brasileiro.
Silvio Porto considera a decisão “absolutamente inócua”. A isenção da taxa de importação, fixada em 10% ou 12%, a depender do tipo de arroz, deve gerar um rombo de arrecadação da ordem de R$ 96 milhões, no melhor dos casos, ou R$ 120 milhões, no pior. Esse valor seria suficiente para manter as 27 Unidades Armazenadoras da Conab abertas por pelo menos mais uma década. No fim das contas, zerar a taxa de importação foi uma medida cara com objetivo exclusivo de arrefecer o debate público.
Continuaremos exportando arroz para a China enquanto importamos da Índia e dos Estados Unidos? Qual o custo ambiental desse transporte?
Além de não ajudar com a regulação de preços e gerar uma relevante perda de arrecadação, a medida expõe o nonsense do nosso sistema alimentar. Continuaremos exportando arroz para a China enquanto importamos da Índia e dos Estados Unidos? Qual o custo ambiental desse transporte?
Os preços devem se manter no patamar atual até o início das colheitas em Santa Catarina e no Paraguai, entre janeiro e fevereiro de 2021. O retorno aos preços pré-pandêmicos só deve acontecer depois de fevereiro do ano que vem, com as colheitas no Rio Grande do Sul, o grande produtor nacional de arroz, que concentra cerca de 70% da produção. Um olhar mais cuidadoso para essa cultura mostra outro nonsense : menos de 10% dos produtores de arroz têm lucro sustentado. A grande maioria depende de pesados financiamentos da indústria para plantar.
O irônico da alta do arroz é que boa parte do problema se explica pela decisão da China de formar estoques estratégicos. Quando os chineses decidirem parar de comprar esse e outros alimentos, o Brasil pode dar com a cara no muro.
A alta dos preços de alimentos básicos não é de hoje. Desde o início da agenda de desmontes, nos governos José Sarney e Fernando Collor, e de maneira cada vez mais intensa, aprofunda-se um dilema: cada vez mais dependemos do agronegócio para sustentar a balança comercial e, portanto, cada vez mais temos dificuldades de romper com esse sistema para engendrar um modelo de país condizente com o século 21. Com o real desvalorizado, a soja está batendo recordes de preço, e os agricultores vivem a inédita situação de negociar, em 2020, a safra de 2022.
O grão, sozinho, responde por 20% do valor das exportações brasileiras, segundo dados da Secretaria de Comércio Exterior – quase tudo para a China. A área cultivada com soja triplicou desde o começo dos anos 1990, de acordo com a pesquisa Produção Agrícola Municipal , do IBGE, e hoje já corresponde a 12 safras de feijão. Soja e milho ocupam mais da metade do território cultivado com grãos no Brasil . Em parte, avançam sobre pastagens e áreas desmatadas. Em parte, sobre outros alimentos.
Já a área cultivada com arroz é, hoje, menos da metade do que costumava ser no início dos anos 1990, de acordo com o IBGE . Naquele momento, a produção era mais descentralizada – segundo nossos cálculos, a partir da Produção Agrícola Municipal, o sul respondia por 50% do total, e hoje já chega a 80%. A quantidade produzida é praticamente a mesma, já que a produtividade aumentou, mas temos quase 50 milhões de bocas a mais. O caso do feijão é semelhante. A área plantada caiu pela metade e a quantidade produzida se reduziu em torno de 10%.
O dólar alto pode explicar uma parte da história dos preços do arroz. Mas a verdadeira questão é o papel do Brasil no mundo. E, nisso, parece haver um slogan inabalável: “Soja acima de tudo, preços acima de todos”.
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