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‘Pringles é a batata do diabo: como fui criado num lar evangélico fundamentalista de fake news’

O crente vive numa realidade na qual jornalistas, cientistas e acadêmicos mentem e conspiram contra Cristo. Teriam os evangélicos radicais criado as fake news?

'Pringles é a batata do diabo: como fui criado num lar evangélico fundamentalista de fake news’

‘Pringles é a batata do diabo: como fui criado num lar evangélico fundamentalista de fake news’

Foi mais de um quilômetro cambaleando pela calçada disparando jatos de cores incomuns pela boca. Não muito diferente de Regan, a possuída do filme “O Exorcista”. No posto de saúde, fina-flor dos meus 18 anos, parecia tomado por algo tão sério que me passaram na frente. Enquanto pingava o soro na veia, a infernal mistura de batata e o que devia ser a terceira cerveja da minha vida ainda cozinhando no estômago como o caldeirão do próprio inferno, parei para pensar se, neste ponto, talvez minha família tivesse razão. Eu parecia ter tomado Satã por via oral.

A “batata do diabo” foi uma das dezenas de teorias da conspiração que ouvi tendo sido criado como crente. Dizia assim: um dia, um executivo da Procter & Gamble, megacorporação de cosméticos que então era dona da batata Pringles, foi entrevistado num talk show. Falou que o logo da P&G era um símbolo satânico e que ele e outros executivos eram, vejam só, satanistas. Portanto, a batata e todos os produtos da empresa eram “consagrados” ao diabo – o mascote bigodudo sendo o próprio diabo. Comer a batata do mal faria você se transformar no capeta.

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Para tristeza dos metaleiros, que talvez quisessem pegar a bênção de Satã no supermercado, era tudo mentira. Só uma das dezenas que cresci ouvindo. Trazendo sem muito esforço algumas coisas que aprendi como a verdade quando criancinha, todas familiares ao público em geral:

Ser esse tipo de crente é, do berço à tumba, viver num mundo de fake news como consumidor e como produtor. No Brasil, grupos evangélicos fundamentalistas colaboraram com a campanha de acusar a esquerda de tentar legalizar a pedofilia. As fake news são, portanto, mais um elo na aliança de fundamentalistas evangélicos com o bolsonarismo.

Um estudo por psicólogos das universidades de Yale, Harvard e o MIT, publicado em março de 2019, testou 948 participantes em escalas de “fundamentalismo religioso”, “delusão” e “dogmatismo”. Todas as três variáveis revelaram correlação positiva com acreditar em fake news. E entre si. “Percebemos que pessoas que apresentam mais fundamentalismo religioso tendem a ser mais dogmáticas e com tendência à delusão”, me disse o líder do estudo Michael Bronstein, professor do Departamento de Psicologia da Universidade de Yale, em uma entrevista. “A correlação entre fundamentalismo religioso e essas outras variáveis é moderadamente forte.”

“Uma consequência infeliz das notícias falsas”, continua Bronstein, “é que (elas) podem levar pessoas a tomar decisões importantes (como em quem votar numa eleição) em desinformação. A mera exposição das pessoas a fake news muda sua percepção de veracidade [ou seja, do que é real e o que é falso] e isso é um dos efeitos mais robustos da psicologia: o efeito da verdade ilusória”.

Efeito bem notado em quem vive em círculos de realidade paralela, como veremos adiante. Mas é preciso registar que Bronstein pede cautela com interpretações. “Nosso artigo não diz que ser um fundamentalista religioso faz alguém acreditar em fake news. O mais correto dizer que alguém que é um fundamentalista religioso tenderá a acreditar em notícias falsas mais firmemente que indivíduos menos fundamentalistas”.

Do púlpito para o Whatsapp

Uma perspectiva diferente é a do especialista em língua inglesa e história da religião da Universidade de Victoria (Canadá), Christopher Douglas. Ele é autor do ensaio “Religion and Fake News: Faith-based Alternative Information Ecosystems in the U.S. and Europe” (“Religião e Fake News: Ecossistemas Alternativos de Informação Baseados em Fé nos EUA e Europa”). Em seu trabalho, Douglas busca entender o fenômeno da extrema direita atual pelo viés do fundamentalismo religioso evangélico. Em uma conversa por e-mail, Douglas escreveu: “Eu digo que, por mais de um século, o evangelicalismo americano nutriu uma hostilidade à expertise científica e jornalística, e essa hostilidade se traduziu numa maior receptividade para desinformação, teorias da conspiração e notícias falsas”.

“A tradição teológica do evangelicalismo americano branco, com sua rejeição de coisas como evolução e entendimento acadêmico da Bíblia e seu cultivo de instituições ‘anti-expert’, pode ser uma explicação do maior grau de receptividade e circulação entre conservadores de desinformação e notícias falsas. Eles não apenas questionaram as ideias e conclusões do mundo secular e suas instituições de conhecimento especializado, mas, numa forma de resistência, eles adaptaram as instituições e tecnologias modernas para criar instituições de anti-conhecimento especializado”, escreveu Douglas. Isto é, os meios evangélicos de comunicação – programas de TV, filmes, livros, sites, canais do YouTube – constituem um ecossistema de notícias, verdades e fatos paralelos. São a única mídia onde a Arca de Noé é um fato histórico.

Tendo mais a concordar com Douglas do que Bronstein nessa questão de modelo para fake news. Comprovei na prática o que ele descreve. Não é possível ser evangélico fundamentalista acreditando no conhecimento que vem das universidades, do ensino público, da imprensa.

A começar pelo básico: o criacionismo, crença que para mim é o principal marcador de “ser evangélico de um ramo radical”. Ninguém que acredite que o mundo tenha 7 mil anos, com a humanidade criada do literal barro e uma costela, pode abrir o noticiário e entender tudo como verdade. Uma hora ou outra, vai topar com gente dizendo que um novo dinossauro viveu há 70 milhões de anos, que um ancestral humano foi encontrado, que a seleção natural faz com que bactérias criem resistência. Uma hora vai ter que concluir que os jornalistas que levam a sério os cientistas são mentirosos.

Quando eu tinha nove anos, a revista Superinteressante foi lançada no Brasil. Eu já tinha um microscópio em casa e gabaritaria biologia até o vestibular – menino pastor ou não, eu amava ciência. Meu pai achava que educação era importante – para ganhar dinheiro, claro, mas importante. Dava notas amassadas de cruzados do Sarney para eu ir até à banca. Isso durou três edições. Uma capa com um trem maglev, outra com Einstein, outra com um dinossauro. Foi quando ele me pegou folheando uma página interna mostrando a fila entre nossos ancestrais simiescos e a gente. “Ah, mas isso aí não pode!” Só fui comprar revista mostrando evolução de novo com o suor da minha testa.

‘Eles adaptaram as instituições e tecnologias modernas para criar instituições de anti-conhecimento especializado’.

“O evangelicalismo treinou cognitivamente seus membros para serem hostis à ciência e ao jornalismo profissional, e a procurar melhores respostas em seu próprio sistema alternativo de religião”, diz Douglas. “Acho que essa é a tradição – e você [como ex-crente] deve saber melhor que eu – que se tornou altamente influente no Brasil”.

Ô, se se tornou, professor Douglas! Crer numa Bíblia literal é também estar em conflito com cristãos de denominações tradicionais. Já no século 3, o teólogo Orígenes de Alexandria dizia que o Gênesis é uma alegoria e só um tolo acreditaria que Deus era um jardineiro e havia uma literal árvore da vida. Mesmo quando Jesus andava pelo mundo, seu contemporâneo Fílon de Alexandria (15 a.C.-45 d.C.), um filósofo platonista judeu, dizia que a Bíblia não era literal. Ainda que Orígenes não tenha dado a última palavra no assunto – há muitas críticas a uma interpretação totalmente alegórica da Bíblia inteira –, a maioria dos cristãos não fundamentalistas não acredita que tudo que a Bíblia disse sobre geologia, biologia, história, costumes, astrofísica deva ser entendido como verdade acima dos avanços do conhecimento.

A Bíblia é a “palavra de Deus infalível” para a imensa maioria dos cristãos, mas o que entendem por isso é diferente de afirmar que tudo o que está ali são fatos físicos e tudo que descobrirmos que parece contradizê-los só pode ser armação de Satã.

O fundamentalista precisa crer que a ciência evolutiva é uma enorme conspiração diabólica da qual fazem parte os cientistas, os católicos (ao menos os que levam a sério o que prega sua Igreja), os outros protestantes, a academia, toda a imprensa e os 59% dos brasileiros que acreditam em evolução, segundo dados do Censo de 2010.

Não acreditar em notícias reais e ter um ecossistema paralelo de notícias, que reflete uma realidade paralela, fazem parte de como o crente fundamentalista vive, do nascimento até a morte. Antigamente, havia somente os comentários do pastor no púlpito e até o banimento puro e simples da televisão. Hoje eles têm seus próprios meios.

“Acreditar em notícias falsas e acreditar que notícias reais são falsas são duas coisas que andam juntas”, afirma Douglas. “Os sistemas de propaganda conservadora nos Estados Unidos – Fox, [Rush] Limbaugh, Breitbart e agora OANN [One America News Network] – têm desprezado a ‘mídia esquerdista’ por anos. Há um senso de que a ‘mídia esquerdista’ se juntou com as ‘elites’ para derrubar a América cristã.” Ano passado, um estudo da Pew Research indicou que, nos EUA, os evangélicos brancos são os que mais acusam os jornalistas de criarem fake news.

A Satanás, as batatas

Como já fiz antes, peguei exemplos dos EUA para falar de fundamentalistas evangélicos do Brasil. Isso tem a ver com a batata satanista, mas é mais. Mas as bandeirinhas azul e vermelho nas manifestações bolsonaristas não são por nada.

O fundamentalismo praticado no Brasil, na forma pentecostal e outras, veio dos Estados Unidos, e seus membros mantêm uma profunda conexão com o país de origem. Até Destino Manifesto, a ideia de que os americanos são o segundo povo escolhido depois dos judeus, me foi ensinado quando criança.

‘Acreditar em notícias falsas e acreditar que notícias reais são falsas são duas coisas que andam juntas’.

A gente cresce ouvindo falar em reverendos Grahams e Swaggarts, em vídeos, livros, filmes importados. É uma religião enlatada – até a ideia de “neopentecostal” não é nossa, é outra importação. O Movimento Carismático, que veio com o televangelismo e a teologia da prosperidade, contaminou muitas denominações, pentecostais ou não. A parte diferente aqui no Brasil é que o alvo número 1 das acusações de satanismo eram e continuam a ser as religiões afro-brasileiras e o espiritismo, enquanto lá fora estavam mais preocupados com heavy metal e política progressista.

A batata do capeta é mais um exemplo de enlatado gospel. O executivo da Procter & Gamble não só teria admitido alegremente seu satanismo como não achava que isso faria a empresa perder dinheiro. Ele teria respondido ao apresentador: “Ninguém liga mais hoje em dia”. Isso teria sido dito nos EUA, um país onde os evangélicos somam 30%. Foi demais ouvir isso até para o ainda crente relutante que eu era. Nunca acreditei na batata de Satã.

Diferentemente de outras fake news evangélicas, essa teve sua origem identificada e rendeu um processo de US$ 19 milhões, pagos em 2007 pela Amway, empresa de produtos de limpeza e cosméticos, concorrente da P&G. Mas a Amway não é uma megacorporação como a P&G. É uma empresa de marketing multinível ao estilo Avon e Tuppeware. Seus vendedores indicam outros para ascender de nível na hierarquia e, com isso, ganharem comissões maiores, eventualmente chegando à riqueza. O boato, conforme o processo revelou, começou entre representantes da Amway.

A empresa é propriedade de evangélicos ultraconservadores, colabora com causas ultraconservadoras e direciona seu recrutamento entre evangélicos ultraconservadores. É acusada de misturar religião e negócios, conduzindo as coisas num esquema que lembra um culto evangélico-capitalista.

Bom, a notícia da batata chegou por uma tia minha, uma crente da Assembleia de Deus – Ministério Belém, a mesma de meu avô. Era uma assembleiana de classe média, que não se vestia de crente à moda de Marina Silva. Ela se importava com dinheiro, aparências, status. E era representante da Amway.

JÁ ESTÁ ACONTECENDO

Quando o assunto é a ascensão da extrema direita no Brasil, muitos acham que essa é uma preocupação só para anos eleitorais. Mas o projeto de poder bolsonarista nunca dorme.

A grande mídia, o agro, as forças armadas, as megaigrejas e as big techs bilionárias ganharam força nas eleições municipais — e têm uma vantagem enorme para 2026.

Não podemos ficar alheios enquanto somos arrastados para o retrocesso, afogados em fumaça tóxica e privados de direitos básicos. Já passou da hora de agir. Juntos.

A meta ousada do Intercept para 2025 é nada menos que derrotar o golpe em andamento antes que ele conclua sua missão. Para isso, precisamos arrecadar R$ 500 mil até a véspera do Ano Novo.

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