Amazon declara ‘solidariedade’ a protestos contra racismo policial enquanto vende tecnologia racista à polícia

Amazon declara ‘solidariedade’ a protestos contra racismo policial enquanto vende tecnologia racista à polícia

A demonstração de apoio da empresa às manifestações é contraditória em relação à venda de produtos como Ring e Rekognition.

Amazon declara ‘solidariedade’ a protestos contra racismo policial enquanto vende tecnologia racista à polícia

Após mais uma semana de crise social nos Estados Unidos, empresas americanas alinham-se à retórica dos protestos. Assim como as gigantes Facebook, Apple e Google, a Amazon tuitou de forma vaga em prol de justiça social e policial. Uma demonstração tímida e previsível de solidariedade corporativa na “luta contra a injustiça e o racismo sistêmicos”. Mas a Amazon se diferencia da concorrência por sua determinação em municiar as polícias com ferramentas que, segundo estudos, contribuem para uma atuação racista.

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No afã de demonstrar simpatia por noções difusas de justiça social, de forma coordenada com os departamentos jurídico, de relações públicas e de redes sociais, algumas empresas parecem esquecer o que de fato fazem. Quando a Nextdoor – uma rede social que alimenta os piores tipos de pânico racial – tuíta “VIDAS NEGRAS IMPORTAM”, é difícil levá-la a sério. Mas enquanto a Nextdoor se contenta em racionalizar e otimizar a paranoia dos moradores urbanos em uma linha do tempo gerada por algoritmos, uma grande parcela dos negócios da Amazon – como apontou Sidney Fussell, da Wired – expande sua cruzada “anticrime” de vigilância pública e privada.

“A vigilância é uma questão de justiça racial. Elas não estão separadas.”

Em 2018, a União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU) divulgou um relatório mostrando que o software de reconhecimento facial Rekognition, da Amazon, apresentava resultados de viés racista. Segundo o estudo, o programa identificava congressistas negros, de forma equivocada e desproporcional, como pessoas que tinham sido presas e fichadas pela polícia. “As correspondências falsas eram desproporcionais entre as pessoas não brancas, incluindo seis membros da bancada negra do Congresso – entre os quais o deputado democrata John Lewis, uma lenda dos direitos civis.” Outra pesquisa do mesmo ano, publicada pelo MIT, demonstrou que o Rekognition classificava mulheres de pele mais escura como homens em 31% dos casos.

O estudo da ACLU afirmava ainda que “pessoas não brancas já são desproporcionalmente agredidas pela polícia, e é fácil ver como o Rekognition poderia exacerbar essas práticas”. Pesquisas como essas evidenciaram que as falhas da identificação computadorizada não são apenas um equívoco acadêmico, e sim erros de potencial devastador, que poderiam influenciar a atuação da polícia – ou a demanda por mandados de busca, por exemplo – a partir de históricos criminais falsos.

É difícil reconciliar essa realidade com um tuíte recente de Andy Jassy, executivo da Amazon que atua na empresa como chefe de Serviços Web – departamento que opera o Rekognition:

*O que* será necessário para não aceitarmos mais esses assassinatos injustos de pessoas negras? Quantas pessoas precisam morrer, quantas gerações precisam sofrer, quantos vídeos de testemunhas oculares são necessários? O que mais precisamos? Precisamos de algo melhor do que aquilo que recebemos dos tribunais e das lideranças políticas.

Como apontou Fussell, da Wired, Jassy já defendeu o uso do Rekognition pela polícia com base nos “termos de serviço” da empresa, que teriam resguardo constitucional para evitar qualquer abuso.

A declaração da Amazon foi igualmente tímida:

“A desigualdade e o tratamento brutal de pessoas negras em nosso país deve acabar.

Estamos unidos em solidariedade à comunidade negra – nossos empregados, clientes e parceiros – na luta contra a injustiça e o racismo sistêmicos.”

O que exatamente quer dizer uma empresa se opor à discriminação policial de afro-americanos ao mesmo tempo em que vende ferramentas discriminatórias à polícia – ou enquanto opera a Ring, uma rede de vigilância baseada na detecção e eliminação de “atividades suspeitas”, racialmente codificadas, que envia vídeos diretamente à polícia local? A Ring já distribuiu a seus empregados um adesivo com a imagem de um distintivo policial azul e preto, patrocinado pela empresa, onde se lia a frase “FODA-SE O CRIME”.

Em nota enviada ao Intercept, o advogado Jacob Snow, responsável pela área de tecnologia da ACLU, disse que “se a Amazon e Andy Jassy são mesmo solidários em relação à comunidade negra, deveriam parar de vender tecnologia de reconhecimento facial que estimula abusos policiais contra a comunidade negra. Também deveriam parar de despedir trabalhadores que se mobilizam em defesa de melhores condições nos centros de distribuição da Amazon. A solidariedade real vai além de posts vazios em redes sociais, os quais não protegem de forma alguma as pessoas negras”.

A advogada e pesquisadora de privacidade Liz O’Sullivan, que no ano passado, por questões éticas, se demitiu da Clarifai – empresa que desenvolve tecnologias de vigilância que utilizam inteligência artificial –, disse ao Intercept que os serviços oferecidos pela Amazon às polícias dos Estados Unidos “permitem que os policiais monitorem e reprimam quem protesta e se manifesta contra a injustiça racial” com o uso de tecnologias de reconhecimento facial. “A vigilância é uma questão de justiça racial”, acrescentou O’Sullivan. “Elas não estão separadas.”

Perguntei mais de uma vez à Amazon e a Jassy se eles permitiriam o uso do Rekognition na identificação de indivíduos que protestam contra a violência policial e se a empresa reavaliaria ou modificaria as formas como a polícia usa o programa, mas não obtive resposta. Tendo em vista que a Amazon não revela nem quais órgãos policiais usam o software, não surpreende que a empresa não esclareça como o Rekognition é ou não empregado. Uma coisa é aproveitar um sistema injusto para lucrar de forma silenciosa, outra bem diferente é denunciá-lo e vender um software que o opera.

Tradução: Ricardo Romanoff

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