Quando conversei com a deputada Alexandria Ocasio-Cortez por telefone na tarde da última quinta-feira (7), as notícias dos Estados Unidos eram ainda mais sombrias do que o habitual. O número de mortos por coronavírus no país havia ultrapassado os 76 mil e um novo relatório de empregos havia sido divulgado, aumentando o número de pedidos recentes de seguro-desemprego para 33,5 milhões.
A legisladora de Nova York, em seu primeiro mandato, estava frustrada porque, em vez de aprovar uma lei que trouxesse o alívio econômico que os americanos mais vulneráveis precisam, os líderes do Partido Democrata concederam um socorro de vários bilhões de dólares às grandes empresas, quase sem oposição da ala progressista. Ela falou abertamente sobre a necessidade dos progressistas agirem como outras bancadas do Congresso e condicionar seus votos a demandas específicas — e a “triste situação” na qual os congressistas são pressionados a votar em projetos de lei medíocres.
Ocasio-Cortez foi a única democrata do Congresso a se opor aos pacotes de ajuda econômica do coronavírus; ela disse que “não aguentou” votar no projeto anterior, sabendo que ela teria que voltar para sua comunidade “tendo que arrecadar dinheiro para fraldas e comida por conta própria, porque o governo federal decidiu não fazê-lo”.
Enquanto outros deputados estavam focados em despejar dinheiro na economia, seu gabinete parecia mais um grupo de paramédicos, ela disse. O distrito de Ocasio-Cortez inclui Corona e North Corona, os dois bairros de Nova York com mais casos de coronavírus do que qualquer outro endereço do país. Seus eleitores, a maioria imigrantes e não brancos, muitos dos quais são trabalhadores essenciais, também foram impactados de forma desproporcional.
Nas últimas semanas, a congressista tem redirecionado o dinheiro de sua campanha de reeleição para coleta de alimentos e outros grupos de ajuda na cidade de Nova York, e entregou pessoalmente comida e mantimentos para os moradores de seu distrito. Enquanto as negociações para o próximo pacote de ajuda federal, o CARES 2, continuam, Ocasio-Cortez diz que foi “reduzida a” tentar “obter financiamento para que nossas famílias possam fazer enterros, porque as pessoas estão perdendo seus esposos e filhos” devido à pandemia. Não é o Medicare para Todos, ela observou, mas o financiamento para enterros é “desesperadamente necessário em nossa comunidade”.
A transcrição abaixo foi editada para maior clareza.
É um momento bastante estressante. Como está sua família? Vocês estão todos seguros?
Felizmente, até agora minha família está OK. Eu tenho uma família muito vulnerável em Porto Rico. Minha avó, especialmente, tem muitos problemas respiratórios agudos, mas graças a Deus ninguém da minha família foi impactado. Temos muitas pessoas na comunidade que, infelizmente, faleceram, mas minha família mais imediata está segura até agora, e agradecemos por isso.
Isso é bom de ouvir. Então … só para entrar no tema. Eu quero começar com a falta de audiências no Congresso por conta da pandemia. Sei que alguns comitês e a bancada progressista estão realizando suas próprias audiências via Zoom. Mas, em última análise, a Câmara não tem regras para votação remota ou planos para audiências oficiais. Você se sente contida ou alienada de seus deveres no Congresso? Como isso afeta a capacidade de legislar e obter alguma prestação de contas do governo Trump?
É realmente difícil subestimar o quão devastadora a pandemia tem sido, em termos da capacidade de legislar e supervisionar, para um membro comum do Congresso fazer seu trabalho. Mesmo nossa capacidade de simplesmente redigir e enviar um projeto foi completamente dizimada porque muitas de nossas instituições … seja o Gabinete do Conselho Legislativo, que está encarregado de formalizar o texto de nossos projetos, seja a possibilidade de ter audiências pessoalmente … Não somos capazes de fazer nosso trabalho legislativo. Em absoluto.
“Em termos da nossa capacidade de levar adiante uma legislação [remotamente] … estamos totalmente perdidos.”
Agora, somos capazes de fazer muito trabalho em termos dos nossos distritos. Isso é algo que essa situação me permitiu fazer — sou capaz de fazer muito mais na comunidade e muito mais trabalho social. Mas, em termos da nossa capacidade de levar adiante uma legislação, fazer parte da escrita de leis e supervisionar a corrupção muito flagrante do governo Trump — estamos totalmente perdidos. E acho que a abdicação da nossa capacidade — acho que não é apenas abdicação, mas esse tipo de desafio e essas limitações muito duras em nossas responsabilidades legislativas em Washington — tiveram um enorme impacto na resposta [à pandemia].
De várias maneiras, você agiu quase como uma socorrista, entrando na comunidade e distribuindo pessoalmente mantimentos e suprimentos. Você tem visto o sofrimento com os seus próprios olhos. É desorientador sair e dar comida às pessoas de sua comunidade, e depois ir ao trabalho e ver o Congresso resgatar grandes empresas? Apenas a diferença entre você, que representa um distrito que está sofrendo especialmente com isso e, honestamente, a maioria dos membros do Congresso?
É devastador. Eu meio que desabafei em um story do Instagram na semana passada porque sinto que sou a equipe de limpeza que corre atrás para arrumar a bagunça e a negligência do Congresso. Quando vamos a Washington, estamos com todos esses membros de comunidades muito distantes; eles estão a um, dois graus de distância dessa crise. E quase todo mundo é impactado de uma forma ou de outra pelo fechamento de nossa economia. Mas isso é muito diferente de ter corpos empilhados em nosso quintal. E eu ter que sair toda sexta-feira e alimentar pessoas que estão famintas e tentar conseguir ajuda e assistência médica para os que estão morrendo — isso é consequência direta do fracasso e da incapacidade do Congresso e do governo federal em realmente reconhecer esta crise, não apenas em sua escala, mas no tempo. Então, em termos de desorientação, para mim, por um lado é algo que dá um choque forte, mas por outro também oferece uma imensa clareza.
Eu não aguentei votar no último projeto de assistência, sabendo que eu teria que voltar direto para a minha comunidade tendo que arrecadar dinheiro para fraldas e comida por conta própria, porque o governo federal decidiu não fazê-lo.
“Sinto que sou a equipe de limpeza que corre atrás para arrumar a bagunça e a negligência do Congresso.”
Temos trilhões de dólares em resposta federal sendo elaborados às pressas por três a cinco pessoas em uma salinha. E então eles trazem a proposta de volta para mais de 500 membros do Congresso e a única opção que você recebe é sim ou não. E, pessoalmente, estou confusa sobre o motivo pelo qual esses projetos são aprovados quase por unanimidade, quase sem dissidência. Isso é praticamente sem precedentes na história do Congresso. E muitas vezes a dissidência e a construção de coalizões são saudáveis; mostra diversidade de pensamento. E quero deixar bem claro que, na maioria das vezes, as pressões para apoiar esses projetos de lei não se referem a uma discussão sobre os méritos de adotar uma abordagem ou outra. É simplesmente esses projetos aparecendo e alguém diz algo como “você vai votar ou não em dar US$ 2 para um hospital?”, e fazer isso significa que você vai ter que permitir uma expansão do poder corporativo sem precedentes nos EUA, e a ideia de que é quase inaceitável rejeitar essa escolha é… é uma triste situação em que estamos agora, francamente.
Você foi o único voto contra nesses últimos pacotes de auxílio. Mesmo muitos de seus colegas progressistas, que se opõem a isso, mas acabam sendo colocados em uma posição em que sentem que não podem “usar o sofrimento para negociar” — ao menos é o que algumas pessoas acreditam. Com o CARES 2, uma vez que será o único grande pacote de ajuda por um tempo, você acredita que a ala progressista conseguiria reunir votos contra, se ele não incluir tudo o que vocês querem?
“A questão é o que estamos dispostos a negociar e pelo que não estamos dispostos a aceitar um ‘não’ como resposta.”
Quando falamos de tudo, o que isso significa? Eu não vou dizer que, se não tivermos tudo o que queremos nos mínimos detalhes, devemos rejeitá-lo. Mas acredito que devemos definir padrões muito claros sobre o que permitiremos que esteja no pacote e ter padrões muito claros sobre o que não vamos aceitar. Penso que até a bancada hispânica teve conversas sobre isso em termos de proporcionar auxílio a imigrantes e famílias de status misto. Há bancadas — sejam os Blue Dogs ou os New Dems — que dizem o tempo todo, “se isso tributar o setor de seguros de saúde, estamos fora”. Eles fazem barganhas todo o tempo e ameaçam matar projetos o tempo inteiro e certamente não acham que é controverso ou errado fazer isso, em geral.
A questão é o que estamos dispostos a negociar e pelo que não estamos dispostos a aceitar um ‘não’ como resposta. E acho que você provavelmente terá muitas respostas diferentes e diferentes progressistas. Mas acho que ter esses padrões antes de entrar na discussão e comunicá-los é sempre muito importante para garantir que tenhamos algumas vitórias reais nesse projeto.
Você acha que os congressistas começarão a agir como um bloco na próxima fase dos auxílios do coronavírus? Parece, pelo menos de fora, que a dinâmica do CARES 2 até aqui tem sido que os membros do Congresso tentam conversar individualmente com Nancy Pelosi [presidente da Câmara] e a liderança sobre o que gostariam de ver nele. Realmente não parece haver muita organização coletiva por dentro.
Eu diria que provavelmente é uma avaliação precisa. Eu acho que muitos parlamentares estão tentando entrar em conversas individuais aqui ou tendo sua prioridade conhecida acolá. Quando penso em quem está operando como um bloco, acho que a bancada hispânica do Congresso tem o potencial de operar como um bloco forte, porque acredito que eles se uniram em torno de proteções para famílias de imigrantes e de status misto, então estou vendo algum movimento de organização, um bloco nesse sentido.
Portanto, existe um potencial, mas também não sabemos que tipo de projeto vai ser, certo? É um projeto que busca mandar uma mensagem e que apenas pretende colocar um monte de coisas antes de deixá-lo na mesa de Mitch McConnell [líder da maioria republicana no Senado] e fazer com que ele diga não? Ou é um projeto de lei sério em que vamos nos comprometer a garantir algumas prioridades importantes? É difícil dizer e difícil prever, porque já temos um molde e já temos um padrão de como essas negociações avançaram nos últimas dois, três, quatro diferentes pacotes de ajuda. O padrão foi: bom, o Senado não aceita, então não há nada que possamos fazer, então pelo menos aceitem isso. E parece, pelo menos, que vem de um lugar muito impotente. E talvez seja assim que as pessoas se sintam mesmo, eu não sei.
Mas se é assim que negociamos todas as leis — o que nos impede de estar exatamente no mesmo local da CARES 2? Por mais que desejemos falar sobre essas prioridades progressistas, o que impede que aconteça a mesma coisa, as promessas constantes de que as prioridades da bancada vão ser incluídas no próximo projeto de lei? E se não estiver nesse, estará no seguinte, e o seguinte vem e não pode estar nele, estará no próximo.
A certa altura, sinto-me mais confortável com a honestidade e com muita clareza sobre nossos limites e o campo em que estamos operando. Mas não acho que seja saudável que nos digam, e basicamente digam a todo mundo que nos disseram que todas essas coisas vão estar no projeto de lei e não sabemos quais delas vão estar mesmo e quais não vão estar. E, se eles não estão falando sério, prefiro que nos digam isso. Isso torna tudo muito nebuloso e os eleitores de meu distrito — que estão à beira de ser despejados, que estão escolhendo entre se expor aos riscos do coronavírus para ir trabalhar ou aos riscos de inanição por ficarem em casa — estão me pedindo clareza sobre o que esperar, e é muito difícil, enquanto membra do Congresso, não ser capaz de dar uma resposta direta, porque eu não … nós não recebemos uma resposta direta até que o texto da lei seja finalizado.
Eu entendo que vocês ainda não saibam como o projeto de lei será, mas há relatos de que a liderança está bastante inclinada a mudar a elegibilidade de parcerias público-privadas para incluir lobistas, basicamente representando um resgate de grandes empresas pelo contribuinte. Então, o que você acha disso? Já ouviu falar de outras ideias com as quais está preocupada em fazer entrar na lei?
Essa, eu acho, é uma das versões mais perigosas que já ouvi. Essa provavelmente é a pior. O fato de que vamos resgatar lobistas antes de resgatar empresas de famílias negras, pequenos negócios, em alguns dos locais mais impactados do país, é assustador. E eu não entendo por que nós apoiaríamos isso. Verdadeiramente não entendo. E eu sei que as pessoas podem dizer “ah, há uma boa firma de lobistas aqui ou ali” [risos], mas vamos olhar para o setor em geral, isso não é possível. Os lobistas já têm poder que chega nesse processo todo, muito obrigado.
Em termos de outros sinais de alerta, ouvi coisas sobre um resgate financeiro a empresas de seguro de saúde sem realmente expandir de forma significativa a cobertura de assistência médica, ou equipará-la com uma expansão do Medicare ou Medicaid, e para mim isso é extremamente preocupante. É extremamente preocupante que pensemos em uma coisa dessas, e não sei quão seriamente esse tema está sendo considerado, mas é certamente uma das propostas que vimos, observamos e ouvimos nesse processo. E a ideia de que resgataríamos as mesmas indústrias e a mesma estrutura, a mesma estrutura falida que levou a essa crise, sem fazer qualquer coisa para corrigi-las, é muito errada. E acho que está no mesmo espírito da expansão esmagadora do poder corporativo que estamos vendo em muitos outros aspectos desse resgate e desses pacotes de ajuda.
Uma última pergunta. Você mencionou que aqui e ali houve congressistas encaixando discussões individuais com a liderança do partido. Você conseguiu ter uma dessas conversas e, em caso afirmativo, quais foram seus pedidos sobre o que você gostaria de ver no CARES 2?
“Se você chega a uma pessoa que precisa de RCP com dois minutos de atraso, é tarde demais. Essa é a situação em que estamos neste momento.”
Há muitas coisas que precisam ser defendidas. O que eu meio que expressei tem muito a ver, francamente, com as necessidades de primeiros socorros de nossa comunidade. E alguns deles, penso eu, não são controversos — acho que o que estamos tentando fazer não é uma declaração progressista ousada, estou tentando conseguir fundos para que nossas famílias realizem funerais, porque as pessoas estão perdendo seus esposos e filhos devido ao coronavírus no meu distrito. Agora, de repente, você tem uma família que ganha US$ 40 mil por ano e tem US$ 35 mil em despesas de funeral. E quando isso está concentrado nas comunidades mais negras e pardas do país, estamos falando de uma exacerbação do abismo de riqueza racial. Os fundos funerários podem não parecer muito, não é um Medicare para Todos propriamente dito, mas é algo que é desesperadamente necessário em nossa comunidade. E é basicamente a isso que estamos reduzidos, certo? Acho que uma grande parte do custo emocional para as pessoas que representam as comunidades mais afetadas é que estamos reduzidos a implorar ao governo federal para que permita que as famílias enterrem seus entes queridos.
Mas, além disso, também estamos implorando pelo financiamento de cidades e estados, financiamento direto, local, porque também estamos falando de demissões em massa pelos governos municipais. OK, o estado de Nova York, de certa forma, tem sido mais progressista que o governo Trump. Eles farão, no estado da Califórnia e em outros estados, o que Trump não fará. E agora estamos no ponto em que estamos falando de cidades e municípios que podem estar à beira de despedir grandes porções de seus funcionários municipais e seus trabalhadores que estão na linha de frente e socorristas. E acho que as pessoas não entendem o quão terrível é essa situação. Ouvi da cidade que temos só temos certeza da situação até o fim deste mês. E, se chegarmos a junho e não houver financiamento real para a cidade de Nova York, e não é apenas Nova York, mas poderia ser todo o país, então teremos que começar a tomar decisões materiais muito reais sobre quais tipos de sistemas de suporte a vida nós vamos cortar. Estaremos em um lugar perigoso social e economicamente e em termos de saúde pública, e não podemos permitir que isso aconteça.
E é por isso que uma das minhas maiores preocupações tem sido essa forma de encarar as coisas com “vamos falar disso na próxima vez” — não é apenas uma questão de quando você faz algo, também é se você consegue chegar a tempo. Se você chega a uma pessoa que precisa de RCP com dois minutos de atraso, é tarde demais. Essa é a situação em que estamos neste momento. Então estamos lutando para ver se vamos conseguir fazer o suficiente, e se vamos conseguir fazer o suficiente a tempo.
Certo. Ok. Isso é deprimente. Bem, muito obrigado pelo seu tempo. Eu realmente agradeço. Mas espere, minto. Eu tenho mais uma pergunta, só para encerrar de maneira mais leve. Você já jogou Animal Crossing?
Ah! Eu acabei de comprar um [Nintendo] Switch.
Sério?!
Sim, e eu montei minha ilha dois dias atrás. Estou muito empolgada com isso, mas também me sinto mais preguiçosa porque tenho uns 10 sinos em dois dias e acabei de aumentar minha barraca. Mas tudo bem. Na verdade, tem sido muito bom para a minha saúde mental.
É literalmente a única razão pela qual tenho estado sã, porque realmente não consigo prestar atenção a livros ou filmes, mas me fixo completamente em minha ilha.
Sim sim, eu me sinto da mesma maneira. Acho que é porque é um pouco mais interativo do que apenas assistir passivamente a um filme.
E acho que há algo de gratificante, você trabalha e realmente ganha dinheiro e pode pagar suas dívidas instantaneamente.
[Risos] Animal Crossing é a única realidade em que os millennials vão ter uma casa.
Tradução: Maurício Brum
🚨ESTAMOS FICANDO PARA TRÁS!🚨
Nossa campanha termina no domingo e estamos preocupados! Estamos ficando para trás em nossa meta de arrecadar R$ 200 mil em doações. Precisamos muito da sua ajuda!
O Intercept publica investigações essenciais, que as grandes redações não querem ou não podem publicar. Ao contrário do que eles fazem, aqui não medimos nosso sucesso em lucro (ainda bem, pois não há!), mas em impacto. Isso significa mudar a sociedade para melhor e, às vezes, até salvar vidas.
Significa também confrontar as pessoas mais ricas e poderosas do país tendo nosso jornalismo como espada e nossos doadores como escudo. E só disso que precisamos.
Com a extrema direita determinada a retornar ao Planalto em 2026, mais do que nunca, o Brasil precisa de jornalistas de verdade lutando para expor suas tramas e esquemas.
Podemos contar com você para doar R$ 20 hoje e nos ajudar a atingir nossa meta?