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Leandro Demori

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Todos viveremos a batalha de Milão

Bolsonaro jogou suas cartas na mesa. Agora todos sofreremos por suas decisões.

Firefighters wearing protection suites participate in an instruction as a form of contingency and security against the spread of the new coronavirus COVID-19, in Belo Horizonte, state of Minas Gerais, Brazil, on March 20, 2020. (Photo by Douglas MAGNO / AFP) (Photo by DOUGLAS MAGNO/AFP via Getty Images)

A crise do coronavírus

Parte 47


Todos viveremos a batalha de Milão

Bombeiros utilizam roupas protetoras durante instrução em Minas Gerais no dia 20 de março de 2020.

Foto: Douglas Magno/AFP via Getty Images

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No dia 27 de fevereiro (que parece século passado), quando a Itália ainda tinha poucos casos confirmados de coronavírus, o prefeito de Milão divulgou em suas redes um vídeo da campanha Milano non si ferma (Milão não para). Em inglês, para atingir sobretudo os turistas que àquela altura já estavam cancelando suas férias na península por causa da epidemia.

Dois dias antes, o prefeito gravara um vídeo garantindo a data de estreia de uma das maiores feiras de móveis do mundo, um evento tradicional na cidade: 16 de junho.

O Twitter de Giuseppe “Beppe” Sala – um empresário filiado ao Partido Democrático e conhecido como Mr. Expo por ter sido presidente da bem sucedida Exposição Universal de 2015 – é uma espécie de diário de crise direto de um bunker.

No dia 4 de março (quando a Lombardia, região da qual Milão é a capital, já tinha 1.820 casos e quase 73 mortes), ele tuitou:

É claro que o #Covid_19 transformará alguns comportamentos na nossa sociedade, mas viver trancado não é a solução. Vamos encontrar uma via intermediária pra conter a difusão do vírus e andar pra frente.

No mesmo dia, postou ainda uma pergunta retórica:

Sou muito otimista? Não, é fundamental.

No dia 5 de março, (2,2 mil casos, 98 mortos), ele gravou um vídeo culpando a imprensa por reportar a situação de modo exagerado, e chamou os turistas para voltarem à região.

Todos viveremos a batalha de Milão

Beppe Sala, um moderado de centro-esquerda, estava muito mal acompanhado. Como lembraram alguns eleitores em respostas a seus tuítes, Giorgia Meloni, ex-ministra de Silvio Berlusconi, gravara um vídeo também em inglês em frente ao Coliseu culpando, claro, a imprensa, e “mostrando” que o local estava cheio de turistas. Segundo ela, o que estava na boca dos jornalistas não refletia a realidade.

Em outra resposta enviada por um eleitor, Matteo Salvini – o político de extrema-direita mais popular do país e que Bolsonaro segue no Twitter – conclamava em vídeo para “reabrir tudo aquilo que se pode: fábricas, comércio, museus, bares, discotecas…”.

Demorou, mas a ficha caiu. Beppe Sala pediu desculpas ao vivo no sábado passado, 22 de março, em um dos programas mais assistidos do país. Disse, sobre suas declarações equivocadas: “naquele momento ninguém havia entendido a agressividade do vírus”.

Vendo em perspectiva, hoje, Sala parece um político prudente diante de Jair Bolsonaro. Apesar de seus erros, o prefeito de Milão não negou jamais o perigo da doença, em momento algum endossou aventuras homicidas, não desdenhou do poder do contágio, da letalidade e do caos social que fatalmente virá quando todos voltarem às ruas mais cedo do que recomenda quem entende do assunto – os médicos, e não os políticos populistas e suas claques.

Sala olhou para a China, viu o futuro da Itália e não acreditou. Ontem, um mês depois dos tuítes desastrosos e das decisões que serão julgadas pela história, o país tinha 9 mil mortos, a imensa maioria na Lombardia, onde fica Milão. O crematório da cidade anunciou nesta semana que não aceita mais corpos que não sejam de cidadãos residentes. Uma das principais capitais da Europa não sabe mais o que fazer com os mortos. Em Bréscia, distante pouco mais de uma hora de carro, os coveiros não conseguem mais cavar tantas covas.

Até a semana passada, o Brasil tinha feito apenas 46 mil testes. Essa estatística sumiu, está sendo escondida pelo governo federal. Eu perguntei pra muita gente, ninguém sabe de nada. Ando recebendo relatos de pessoas que chegam aos hospitais com sintomas de covid-19 e simplesmente são mandadas embora sem nenhum exame. Na Itália, só ontem, foram feitos 36 mil testes (de um total de 394 mil até agora). Na média, a cada cinco testes feitos por lá, um é positivo.

No Brasil, em meio a uma explosão de internações por problemas respiratórios graves; sob a suspeita de que nove em cada dez casos não são detectados; e diante de uma estimativa do presidente do hospital Albert Einstein (onde Bolsonaro fez seu exame de covid-19, nunca divulgado) de que existem 15 casos não rastreados para cada paciente notificado, uma coisa é certa: não temos a menor ideia do tamanho da nossa epidemia.

A repórter Ana Clara Costa noticiou: “No dia em que 19 pessoas foram enterradas em apenas um cemitério de SP com diagnóstico suspeito ou confirmado de coronavírus, o Ministério da Saúde anunciava doze novas mortes no país inteiro. Essa discrepância nos dados vem da subnotificação.”

Entenderam?

Foram 19 corpos suspeitos ou confirmados em apenas um cemitério em SP, em apenas um dia. A estatística oficial de mortes por covid EM TODO O BRASIL, naquele mesmo dia, divulgada pelo governo: 12 mortes. É a construção mais clara de uma farsa mortal na cara de todo mundo.

Esse apagão de dados é incompetência, falta de kits de testes, fraude histórica para acusar cientistas de disseminação de pânico ou tudo isso junto? Nós ainda não sabemos. Mas vamos descobrir.

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