Os pescadores estão com as pernas até a altura das coxas imersas na água barrenta quando nosso barco se aproxima da costa, a grama roçando o casco. É uma manhã quieta e fresca, e a névoa esconde o rio quando o sol começa a subir acima das árvores. Na praia, uma garça branca se ergue no raso e alça voo em uma explosão de som quando os pescadores levantam a rede para revelar sua captura brilhante. Ao lado deles, semissubmersa, uma garrafa de refrigerante de plástico aponta na direção do mar.
Quando piso na praia, noto mais pedaços de plástico entre os juncos, meio enterrados na lama, além de retalhos de tecido manchados, pedaços de espuma de embalagem, uma única sandália de plástico rachada. Logo depois, o rio Motagua, na Guatemala, desagua no Caribe, levando consigo um carregamento diário de detritos lavado de lixões superlotados e aterros clandestinos a centenas de quilômetros rio acima.
Em todo o mundo, estima-se que 80% do plástico oceânico provenha da terra como “lixo mal administrado”. De fato, na Guatemala, quase não existem aterros sanitários gerenciados adequadamente e praticamente não há estações públicas de tratamento de água. O resultado é um ensopado nocivo de esgoto, escoamento industrial e agrícola e uma flotilha sempre cheia de lixo plástico, saindo da foz do rio em direção ao imenso recife mesoamericano, que há muito sustentava comunidades ricas em biodiversidade e pesca de Cancún à Nicarágua. Agora, as praias daqui e da vizinha Honduras são regularmente soterradas por pilhas artificiais de escovas de dentes, recipientes de maquiagem, seringas velhas e frascos de líquido intravenoso, bonecos de ação, serpentinas de filme plástico e sacos de papel alumínio.
Hendrik, um jovem funcionário do departamento de áreas protegidas do país, fez uma excursão comigo e alguns colegas no final de 2018. No último ano, trabalhadores empregados pelo ministério do meio ambiente estavam limpando esse trecho de praia, carregando carrinhos de mão com muito lixo, mas mesmo assim a areia está coberta por um mosaico de pedaços coloridos de plástico. “É um esforço constante”, diz Hendrik. Por mais lixo que tirem, o rio sempre traz mais para substituí-lo.
1El Quetzalito
A cidade fica no final de uma estrada de terra que passa por intermináveis fileiras de bananeiras e palmeiras, a poucos quilômetros da fronteira da Guatemala com Honduras. Um pouco além das casas situadas na margem do Motagua, o rio vira à direita para um beco que vai até o Caribe em uma nuvem lamacenta de sedimentos e detritos.
Embora a pequena comunidade, habitada por apenas cerca de 305 pessoas, esteja a quase 300 quilômetros da movimentada capital, cheia de gases, o lixo da cidade passa flutuando e chega às praias todos os dias. Em 2016, imagens de um grande deslizamento de lixo no lixão da Cidade da Guatemala que teria provocado a morte de três catadores e brevemente chamado a atenção internacional para as condições insustentáveis no local. Mas com infraestrutura sobrecarregada ou inexistente em toda a Guatemala, a estação das chuvas leva regularmente grandes quantidades de materiais descartados de muitos lixões para os rios todos os anos.
Com poucos aterros adequadamente contidos na Guatemala, a estação das chuvas leva grandes quantidades de materiais dos lixões para os rios.
“É algo que vem acontecendo há um tempo”, diz Marco Dubón, conhecido como Marquito. Durante a infância e adolescência, ele não se lembra de uma época em que o rio não estivesse cheio de lixo. Nos últimos anos, no entanto, ficou muito pior.
Em 2017, ameaçado por um processo de Honduras pelas praias poluídas, o ministro do Meio Ambiente da Guatemala apresentou um dispositivo que ele chamou de “biocerca”. Feito de garrafas plásticas vazias amarradas com uma rede de plástico, a barragem flutuante projeta-se da costa para a corrente principal do rio em ângulo, canalizando o lixo para o lado antes que ele chegue ao mar.
A cerca biológica foi instalada perto de El Quetzalito, e um pequeno grupo de moradores, supervisionado por Marquito, foi contratado para remover o lixo capturado pela barreira. Eles também trabalhariam para limpar a praia pouco depois da cidade e, com sorte, causar algum impacto na poluição geral.
Numa segunda-feira de setembro de 2018, quando a visitamos, havia uma série de garrafas de plástico e paus flutuantes presos na curva da biocerca. A superfície parece sólida, mas ondula-se contra o casco do barco amarrado ao lado da margem. No momento, não há muita coisa descendo o rio, explicou Marquito, mas o lixo voltará com as chuvas. “Quando está cheio, praticamente dá para caminhar sobre ele”, diz.
No momento, os trabalhadores se concentram na praia, um rápido passeio de barco rio abaixo. É cedo, mas o sol já está forte. Uma fogueira de madeira encharcada e detritos não identificáveis envia ondas de vapor e fumaça pela praia, mas a maior parte do que os trabalhadores juntam vai para sacos grandes para serem transportados de volta à cidade, ao centro de reciclagem. Lá, vidro e plástico limpos serão separados, e todo o resto, compactado em combustível para os fornos de incineração de uma empresa de cimento.
Os trabalhadores recebem cerca de 2,8 mil quetzales por mês, um pouco menos de US$ 400. O trabalho não é agradável, mas é mais estável do que a pesca. Carlos René Ortega diz que prefere trabalhar na praia a limpar a biocerca ou separar o lixo no calor do abafado centro de reciclagem com telhado de zinco. Na praia, há uma brisa perto do meio-dia. E, quando trabalham na biocerca, os trabalhadores precisam entrar na água para remover o lixo. “Nós nos revezamos”, explicou ele, “mas depois de três ou quatro horas, saímos com coceira”.
“Dez anos atrás, era incrível pescar aqui”, diz Izak Dubón, fazendo uma pausa para plantar sua pá na areia. “Dava para pegar peixes grandes e realmente ganhar dinheiro.” Izak, 20 anos, é alto e magro, com uma voz surpreendentemente profunda por trás do lenço azul que amarrou sobre a boca e o nariz. Ele costumava pescar com o pai, mas agora sente que não tem outra escolha senão trabalhar para ministério do meio ambiente. “Este é um ótimo país”, diz. “Se não tivéssemos toda essa contaminação, teríamos turismo.”
À tarde, pegamos o barco pela foz do rio até a praia em frente. Ali, ninguém removeu nada do lixo que agora está empilhado em dunas tão grandes que impossibilitam que se veja a areia. Há uma TV está meio enterrada no lixo. No outro extremo da praia, a carcaça de uma vaca com as patas esticadas rola na borda da superfície, inchada e brilhante, com um abutre curvado sobre ela.
Marquito, parado entre as pilhas de plástico e madeira, tem uma expressão indecifrável. Baixinho, como que falando sozinho, diz: “Tem trabalho aqui para anos”.
2Rio acima
Desde que o primeiro plástico sintético apareceu em 1907, produzimos 8,3 bilhões de toneladas, 5 bilhões das quais ainda estão espalhadas pelo mundo, não mais em uso, mas sem perspectiva de desaparecerem tão cedo. Em todo o mundo, países com economias em desenvolvimento, como a Guatemala, são a principal fonte de plástico oceânico. Embora países de alta renda, como os EUA, consumam a uma taxa mais alta – e, portanto, joguem fora muito mais plástico per capita –, os países menos desenvolvidos geralmente não têm infraestrutura para reciclagem ou eliminação adequada de resíduos, o que significa que muito mais do seu lixo acaba no oceano.
Em 2017, os pesquisadores descobriram que 90% do plástico marinho foi levado aos oceanos por apenas 10 rios, incluindo o Yangtze, o Nilo e o Ganges. Eles são as vias navegáveis de algumas das áreas mais populosas do mundo e, como resultado, carregam enormes quantidades de lixo plástico. Como o Motagua, podem ter infraestrutura mínima para tratamento de água ou disposição de resíduos. No total, entre 5 e 12 milhões de toneladas de plástico fluem da terra para o mar todos os anos.
Com o rio contaminado demais para ser usado para fornecimento de água potável ou irrigação, as comunidades ao longo do rio ficam presas a um cenário cada vez mais fechado de escassez e poluição.
O custo desses rios altamente poluídos também é alto em terra.
“Olhando para o mapa, a Guatemala deveria ter água em abundância”, explicou Gerardo Paiz em seu escritório na organização sem fins lucrativos Madre Selva – ou Mãe Floresta –, onde trabalha como ativista e porta-voz. Ele aponta para um mapa topográfico de aparência exuberante do país enquanto explica o que toda aquela paisagem de selva e montanha esconde. O Motagua percorre cerca de 480 quilômetros, cruzando a maior parte do istmo da América Central, mas, segundo Paiz, quase toda a contaminação ocorre em cerca de um terço de seu comprimento, onde ele se junta a afluentes que transportam esgoto, escoamento industrial e lixo da cidade da Guatemala.
Paiz diz que não há estações de tratamento de água públicas no país. As poucas estações de tratamento de águas residuais existentes são caras e difíceis de manter, e muitas não estão mais funcionando. Nos últimos anos, vários projetos financiados internacionalmente para construir novas infraestruturas de águas residuais foram suspensos, possivelmente como resultado do governo da Guatemala, atingido por escândalos. Enquanto isso, esgoto e detritos não tratados fluem desimpedidos para o rio.
Para os estados de El Progreso e Zacapa, situados rio abaixo, a água está se tornando um problema maior. Esses estados ficam ao longo do “corredor seco” da Guatemala, uma região agrícola que foi duramente atingida pelas mudanças climáticas e pela seca na última década. Com o rio contaminado demais para ser usado para fornecimento de água potável ou irrigação, as comunidades ao longo do rio ficam presas a um cenário cada vez mais fechado de escassez e poluição. Esses problemas ambientais, agravados pela violência, a corrupção e a pobreza, estão entre os fatores que motivaram mais de 116.808 guatemaltecos a tentarem atravessar a fronteira dos EUA em 2018.
Quanto ao plástico, não é difícil acompanhar o problema de volta à sua origem.
“A indústria do plástico está se movendo agressivamente para aumentar a produção”, explica Judith Enck, ex-administradora regional da Agência de Proteção Ambiental dos EUA e professora de políticas públicas no Bennington College. Um relatório de 2016 previu que a produção de plástico dobraria nos próximos 20 anos. Enck aponta que, apesar da má repercussão recente em relação a plásticos nos EUA, as empresas petroquímicas ainda estão planejando novas fábricas para transformar subprodutos da fraturamento em plástico. “Eles estão apenas avançando com literalmente dezenas de novas fábricas nos Estados Unidos.”
“Grandes empresas estão lançando muitos produtos que sabem que não têm chance de serem reciclados. E eles estão sendo vendidos em locais com pouco acesso a aterros sanitários.”
Isso dá às empresas um forte incentivo para vender mais plástico nos países em desenvolvimento, onde as economias em crescimento proporcionaram novos mercados para produtos plásticos baratos e descartáveis. Em um mercado em Puerto Barrios, pequena cidade a cerca de 40 minutos de El Quetzalito, bancas exibem camisas de futebol e camisetas baratas embrulhadas em plástico, bonés de beisebol de malha de espuma e plástico, brinquedos em cores neon, sandálias e calçados baratos e muito mais.
Uma fonte grande e crescente de resíduos de plástico é a embalagem, especialmente os pacotes de folhas laminadas frequentemente usados para alimentos e outros produtos de uso único, como sabonete ou xampu. Eles são populares em economias emergentes como a América Central e a Ásia, observa Enck, porque pode ser acessível às pessoas comprar pequenas quantidades de um produto em vez de uma garrafa inteira. Mas esses materiais, feitos de plásticos especializados e folhas laminadas juntas, raramente são recicláveis.
“Grandes empresas estão lançando muitos produtos que sabem que não têm chance de serem reciclados”, diz Enck. “E eles estão sendo vendidos em locais com pouco acesso a aterros sanitários.”
Em outras palavras, com as atividades normais atuais, empresas projetam e produzem materiais não biodegradáveis e não recicláveis que serão usados uma vez e depois descartados para fluir diretamente para o oceano.
3Barrando o fluxo
“Como resolver a poluição plástica na sala de reuniões em vez das praias?”, foi a pergunta feita por Luisa Santiago, líder da América Latina para a iniciativa New Plastics Economy, nova economia de plásticos, da Ellen MacArthur Foundation. Reciclar não é a resposta, diz ela. Apenas 9% dos plásticos produzidos atualmente são reciclados, e a maior parte desse material só pode ser reciclada uma vez antes de também ser enviada para a aterro ou lixão.
“Entendemos que lidar com o lixo é parte do problema, mas a poluição do plástico realmente precisa ser resolvida rio acima”, afirma Santiago. Isso significa trabalhar com governos e a indústria para encontrar melhores soluções para os problemas que os plásticos de uso único devem solucionar. A organização de Santiago publicou uma análise em 2016 que constatou que de US$ 80 bilhões a US$ 120 bilhões desaparecem da economia todos os anos na forma de embalagens plásticas de uso único que nunca são recicladas.
Ao fazer um argumento econômico contra o plástico e em direção a uma economia mais circular, a organização de Santiago espera obrigar a indústria a mudar de maneira sistemática, em vez de confiar nos consumidores para tentar fazer escolhas individuais dentro de um sistema defeituoso. “Precisamos redesenhar o sistema, e o consumidor será automaticamente transferido para esse sistema – assim como o consumidor foi transferido para um sistema de uso único algumas décadas atrás”, observa ela.
A pedra angular do plano da New Plastics Economy é uma promessa de eliminar “plásticos desnecessários” até 2025. Para isso, Santiago acredita que é necessário trabalhar com empresas como Coca-Cola e Nestlé, mesmo que essa abordagem dificulte uma postura contra os motivos de puro lucro do setor. “Nós não acreditamos na proibição do plástico”, Santiago me disse.
Judith Enck discorda. “A proibição de sacolas reduz a poluição do plástico”, afirma. Desde que a Enck deixou a EPA em 2017, iniciou um projeto chamado Beyond Plastics, com o objetivo de levar as comunidades a eliminar a poluição de plásticos na base. Segundo ela, onde as proibições de sacos são implementadas, além de restringir o isopor e disponibilizar canudos de plástico apenas mediante solicitação, elas podem ser bastante eficazes –uma abordagem que ela chama de “trifecta dos plásticos”. “São frutas baixas”, observa Enck. “E existem alternativas fáceis.”
O problema é que esses tipos de políticas ainda não são comuns. Segundo ela, menos de 10% dos municípios dos EUA aprovaram qualquer tipo de legislação antiplástico. No mundo em desenvolvimento, no entanto, as políticas sem-plástico estão se espalhando. Em 2002, Bangladesh se tornou um dos primeiros países a proibir completamente as sacolas descartáveis e, até este ano, de acordo com a National Geographic, 34 países africanos tinham proibições em suas leis.
O governo guatemalteco anunciou a proibição do plástico descartável e do isopor a partir de 2021.
Também na Guatemala, o plástico é cada vez mais visto como um problema. No final de 2016, a cidade de San Pedro La Laguna ganhou as manchetes ao proibir sacolas e embalagens de plástico. Os moradores as estão substituindo por alternativas reutilizáveis. Em setembro deste ano, o governo guatemalteco anunciou uma proibição de plástico descartável e isopor a partir de 2021. Os dois anos seguintes devem dar aos fornecedores tempo para encontrar alternativas compostáveis ou reutilizáveis.
E se a política demorou a acompanhar o problema, a conversa sobre o plástico está mudando rapidamente. As pessoas em El Quetzalito nos disseram que estavam mais conscientes da poluição do que costumavam ser. Muitos deles disseram que tentaram reduzir o próprio desperdício. Miguel López, um homem de meia idade com rosto bronzeado e sombrio sob um boné de beisebol azul-petróleo, nos disse que se sentia parte de algo bom.
“É importante fazer isso”, disse, endireitando-se do ancinho para empurrar o chapéu de volta à cabeça. O trabalho, embora difícil e às vezes desagradável, tem um propósito. Apertando os olhos na direção da água, ele nos disse, simplesmente: “Para amanhã, precisamos de praias limpas”.
Esta reportagem recebeu o apoio da International Women’s Media Foundation, como parte da Adelante Latin America Reporting Initiative.
Tradução: Cássia Zanon
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