O então vice-presidente Joe Biden, à direita, e seu filho Hunter Biden em uma cerimônia de dedicação de rua no vilarejo de Sojevo, no Kosovo, em 17 de agosto de 2016.

Escrevi sobre os Bidens e a Ucrânia anos atrás. Agora a roda girou, e a direita virou a história de cabeça para baixo.

Muitos parecem pensar que essa controversa história sobre os Biden e a Ucrânia surgiu repentinamente este ano, mas isso não é verdade.

O então vice-presidente Joe Biden, à direita, e seu filho Hunter Biden em uma cerimônia de dedicação de rua no vilarejo de Sojevo, no Kosovo, em 17 de agosto de 2016.

É estranho ver meu jornalismo distorcido, pervertido e transformado em mentiras e propaganda venenosa por Donald Trump, Rudy Giuliani e seus facilitadores. Mas foi isso que aconteceu com uma matéria que escrevi há quatro anos.

Em 2015, escrevi uma reportagem para o New York Times sobre Joe Biden, Hunter Biden e a Ucrânia. Diversos observadores agora parecem pensar que essa controversa história repentinamente surgiu do nada este ano, mas isso não é verdade.

A verdade por trás da matéria foi perdida em um mar de pesquisas da direita sobre a oposição, mentiras da Casa Branca e histórias bizarras que se seguiram. Agora parece que a história de Biden-Ucrânia desempenhará um papel importante em uma nova investigação de impeachment contra Trump, em meio a evidências de que ele tentou pressionar o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky ao reter a ajuda dos EUA a menos que Zelensky concordasse em investigar os Bidens.

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Na quarta-feira, a Casa Branca divulgou um resumo da conversa de julho entre Trump e Zelensky, na qual Trump disse ao líder ucraniano que trabalhasse com o procurador-geral William Barr e Giuliani para descobrir o que aconteceu entre os Bidens e um promotor ucraniano. “Há muitos rumores sobre o filho de Biden, que Biden parou a promotoria e muitas pessoas querem descobrir algo sobre isso, então o que você puder fazer com o procurador-geral seria ótimo”, disse Trump a Zelensky, segundo o resumo. “Biden se gabou de ter parado a promotoria, então se você puder investigar … Parece horrível para mim.”

A presidente da Câmara dos Deputados, Nancy Pelosi, anunciou na terça-feira, dia 24 de setembro, que a Câmara iniciaria uma investigação de impeachment, e o denunciante que reclamou da chamada de Trump-Zelensky ao inspetor geral da comunidade de inteligência queria testemunhar perante o Congresso. Assim, apenas alguns meses após a conclusão da investigação do advogado especial Robert Mueller sobre se Trump e sua campanha entraram em conluio com a Rússia para vencer as eleições de 2016, o Congresso investigará se Trump tentou pressionar outro líder estrangeiro para ajudá-lo a vencer a corrida presidencial de 2020.

Agora, com tanto em jogo, pensei que seria útil revisitar minha história original e, no processo, separar a verdade das mentiras reunidas.

Em dezembro de 2015, eu era repórter investigativo no escritório do New York Times em Washington. Naquele mês, publiquei uma reportagem informando que o vice-presidente Joe Biden havia acabado de viajar para a Ucrânia, em parte para enviar uma mensagem ao governo ucraniano de que o país precisava reprimir a corrupção. Mas também escrevi que sua mensagem anticorrupção poderia ser prejudicada pela associação de seu filho Hunter a uma das maiores empresas de gás natural da Ucrânia, a Burisma Holdings, e a seu proprietário, Mykola Zlochevsky. Zlochevsky fora ministro da ecologia da Ucrânia sob o ex-presidente ucraniano Viktor Yanukovych, um líder pró-russo que fora forçado ao exílio na Rússia.

Hunter Biden ingressou no conselho da Burisma em abril de 2014, no mesmo mês em que as autoridades britânicas congelaram as contas bancárias de Zlochevsky em Londres contendo 23 milhões de dólares. O Serious Fraud Office da Grã-Bretanha, uma agência governamental independente, estava conduzindo uma investigação de lavagem de dinheiro e se recusou a permitir que Zlochevsky ou a Burisma Holdings, o diretor jurídico da empresa, e qualquer outra empresa pertencente a Zlochevsky tivessem acesso às contas.

Mas a investigação britânica sobre lavagem de dinheiro foi frustrada pela recusa dos promotores ucranianos em cooperar. Os promotores ucranianos não entregaram os documentos necessários para investigação e, sem essa evidência documental, um tribunal britânico ordenou que o Serious Fraud Office da Inglaterra descongelasse os bens.

Em setembro de 2015, o então embaixador dos EUA na Ucrânia, Geoffrey Pyatt, fez um discurso no qual atacou a promotoria ucraniana por não cooperar com a investigação britânica. Em seu discurso – que citei em meu texto – Pyatt mencionou o dono da Burisma pelo nome.

“No caso do ex-ministro da Ecologia Mykola Zlochevsky, as autoridades britânicas apreenderam 23 milhões de dólares em bens ilícitos que pertenciam ao povo ucraniano”, disse Pyatt. Funcionários da promotoria geral, acrescentou, foram solicitados pelo Reino Unido “a enviar documentos que comprovem a apreensão. Em vez disso, enviaram cartas aos advogados de Zlochevsky atestando que não havia nenhum caso contra ele. Como resultado, o dinheiro foi liberado pelo tribunal do Reino Unido e logo depois o dinheiro foi transferido para o Chipre.”

Quando Joe Biden chegou à Ucrânia, em dezembro de 2015, para pressionar por esforços mais agressivos do governo contra a corrupção, o papel de Hunter Biden com a Burisma fez com que as demandas de seu pai, por mais bem-intencionadas, parecessem politicamente desajeitadas e hipócritas. Esse era objetivo da minha matéria. Eu citei Edward C. Chow, que segue a política ucraniana no Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, que disse que o envolvimento do filho do vice-presidente na empresa de Zlochevsky minou a mensagem anticorrupção do governo Obama na Ucrânia.

“Agora você olha para a situação de Hunter Biden e, por um lado, pode creditá-la a seu pai por enviar a mensagem anticorrupção”, disse Chow. “Mas acho que, infelizmente, ele envia a mensagem de que muitos países estrangeiros querem acreditar a respeito da América, de que somos hipócritas em relação a essas questões”.

De fato, Hunter Biden é a ovelha negra da família Biden há anos. Ele era o filho mais novo que nunca poderia seguir o exemplo de seu irmão mais velho, Beau, um veterano da guerra no Iraque e o procurador-geral de Delaware que morreu de câncer no cérebro em 2015, interrompendo uma carreira política promissora.

Em 2014, Hunter Biden recebeu alta da Reserva da Marinha após testar positivo para o uso de cocaína. Ele também havia se envolvido em um fundo de investimentos com seu tio, James Biden, irmão de Joe Biden, que se deteriorou diante de processos envolvendo os Bidens e um parceiro de negócios.

Hunter Biden era o fardo familiar que Joe Biden precisava carregar, o tipo de problema crônico que atormenta muitas famílias políticas. George H. W. Bush teve seu filho Neil; Jimmy Carter teve seu irmão Billy.

Ainda assim, quando Joe Biden foi para a Ucrânia, ele não estava tentando proteger seu filho – muito pelo contrário.

O então vice-presidente emitiu suas demandas por maiores medidas anticorrupção do governo ucraniano, apesar da possibilidade de que essas demandas realmente aumentassem – e não diminuíssem – as chances de Hunter Biden e Burisma enfrentarem problemas legais na Ucrânia.

Quando foi publicada em 2015, minha reportagem parecia ter pouco impacto, além de irritar Joe Biden e sua equipe. Ela foi publicada no interior da edição impressa do Times, não na primeira página.

Mas alguém obviamente leu meu texto, assim como outros, porque perguntas sobre os Bidens na Ucrânia subitamente voltaram este ano. Giuliani, Trump e seus lacaios começaram a espalhar a falsa acusação de que Biden havia viajado para a Ucrânia para chantagear o governo e forçar funcionários a demitir o promotor principal do país, Viktor Shokin, para inviabilizar uma investigação sobre a Burisma.

Em maio, quando essa edição começou a surgir, Robert Mackey, do Intercept, escreveu um excelente texto desmentindo as mentiras da nova versão pró-Trump da história de Biden. No processo, ele forneceu mais detalhes do que eu havia incluído na minha matéria de 2015. Ele escreveu que Shokin havia sido forçado a deixar o cargo por insistência de Biden, porque falhou em investigar minuciosamente a corrupção e sufocou os esforços para expor peculato e má conduta por funcionários públicos. Biden ameaçou reter 1 bilhão de dólares em garantias de empréstimos dos EUA a menos que Shokin fosse deposto. Mas isso foi porque Shokin havia bloqueado sérias investigações anticorrupção, não porque ele estava investigando a Burisma.

Tradução: Maíra Santos.

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