O principal financiador de investimentos na América Latina e no Caribe colocou secretamente em circulação documentos nos quais prevê a injeção de até 48 bilhões de dólares na economia da Venezuela caso o presidente Nicolás Maduro seja derrubado do poder.
O Intercept obteve os documentos, confidenciais e confeccionados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, o BID, que tem como principal acionista o governo dos Estados Unidos.
Intitulados “Venezuela: desafios e oportunidades” e em formato de apresentações de slides, são assinados pelo secretariado do banco – responsável por assessorar o conselho de representantes dos países sócios do banco e a diretoria-executiva – e circulam em duas versões, uma de 11 e outra de 27 páginas.
Ambos detalham um plano de quatro anos para reconstruir a economia do país e abri-la a corporações estrangeiras, via privatizações e parcerias público-privadas, inclusive no setor de petróleo.
Duas fontes, no Brasil e nos Estados Unidos, confirmaram a autenticidade deles – uma terceira disse estar a par do plano relatado nos papéis. O Intercept não irá publicar os documentos para preservar a segurança das fontes.
As ações prioritárias do plano detalhado nos documentos do BID incluem fortalecer o sistema bancário, eliminar obstáculos para empresas privadas, financiar investidores internacionais e estabelecer uma nova legislação para reprivatizar empresas estatizadas pelo governo venezuelano.
Datado de 15 de março, o plano é dirigido a diretores-executivos do BID e também do BID Invest, o braço de investimentos no setor privado do banco. A oferta de financiamento bilionário serviria como isca para governos e corporações internacionais apoiarem a tentativa liderada por Washington de derrubar Maduro. Internamente, a promessa de dinheiro injetaria confiança na comunidade empresarial venezuelana, apoiadora de políticos de oposição como Leopoldo López, Henrique Capriles e, mais recentemente, Juan Guaidó, o líder da oposição e autoproclamado presidente interino.
BID: US$ 48 bilhões à Venezuela devem vir de várias instituições de financiamento.
Maduro tem repetido que o colapso econômico do país é resultado de sanções e ataques financeiros coordenados conduzidos pelos Estados Unidos. A descoberta do plano liderado pelo BID dará força ao discurso do chavista.
A injeção de dinheiro e as medidas descritas nos documentos têm potencial para favorecer a troca de poder na Venezuela. Se tudo sair conforme planejado, as melhorias no cotidiano dos venezuelanos permitiriam a Guaidó – ou a quem vier a suceder Maduro – reivindicar a paternidade da assistência internacional que é negada ao chavista. Em troca, o país veria seu patrimônio público minguar.
Os documentos não mencionam o valor total de 48 bilhões de dólares. O Intercept chegou a ele somando os investimentos necessários nas três “áreas chave para recuperação” listados nos documentos pelo BID. Para cada uma delas, há três fases – a primeira, de até um ano de duração, e as duas seguintes, que somam três anos. Adicionamos os investimentos estimados na primeira fase aos totais anuais das fases dois e três para chegar aos US$ 48 bilhões.
A soma é enorme para os padrões do BID. Em 2018, o organismo desembolsou US$ 11,3 bilhões em empréstimos, ou seja, quase o que Venezuela demandaria sozinha apenas nos 12 meses seguintes à derrubada de Maduro: US$ 10,8 bilhões, na avaliação do banco, segundo os documentos.
Em resposta a perguntas do Intercept sobre os documentos e os valores mencionados neles, um porta-voz do BID disse o seguinte: “Embora eu não tenha visto os documentos, o valor provavelmente se refere a um pacote de empréstimos ou assistência muito maior, envolvendo muitas instituições, e não apenas as operações financiadas pelo BID. [Os US$ 48 bilhões] São quase três vezes o que o BID aprova em um único ano”.
China tenta botar areia no negócio
O plano deveria ter sido apresentado e discutido na reunião anual do BID, marcada para os dias 26 a 31 de março, em Chengdu, na China. Ela hospedaria um evento paralelo chamado Business Forum, coordenado pelo BID Invest. Os convidados confirmados eram altos executivos de companhias como as gigantes de eletricidade AES, dos EUA, e Terna, da Itália; a empreiteira DOHWA Engineering, da Coreia do Sul; a ICA, do México; a petrolífera colombiana Terpel; e a Canadian Solar, especializada em energia solar.
Mas o encontro foi cancelado às pressas, quatro dias antes, porque o governo de Pequim, sócio minoritário do banco (com 0,004% das ações) e aliado de Maduro, não aceitou conversar com o enviado venezuelano para a reunião, indicado por Juan Guaidó, autoproclamado presidente do país com apoio de mais de 50 países, entre eles Estados Unidos e Brasil.
A assessoria do BID nos informou que ainda não há data definida para o reagendamento da reunião anual de 2019, mas que o Business Forum não irá mais ocorrer, no que aparentemente é uma vitória – embora não necessariamente duradoura – chinesa em apoio à permanência de Maduro no poder.
O BID foi o primeiro organismo multilateral a reconhecer, em 16 de março passado, a legitimidade de Guaidó como presidente-interino. Ele, por sua vez, nomeou como representante no BID do seu autoproclamado governo o economista nascido no México e naturalizado venezuelano Ricardo Hausmann – que já disse não excluir uma intervenção militar para derrubar Maduro e considerar a Venezuela um país invadido. A China barrou a entrada de Hausmann no país.
É justamente Hausmann, que foi o primeiro economista-chefe do BID, entre 1994 e 2000, e nos últimos anos atuou como consultor do banco, quem está à frente do plano, segundo ouvimos de uma fonte. Ao longo dos últimos meses, ele tem falado abertamente sobre a reconstrução da Venezuela após a derrubada de Maduro.
Hausmann disse ver ‘várias razões’ para que o chavismo esteja ‘perto do fim’.
À revista britânica The Economist, em janeiro passado, Hausmann previu a necessidade de empréstimos superiores a US$ 60 bilhões em três anos. Noutra entrevista, concedida dias depois ao Harvard Gazette, site oficial da universidade em que é professor e dirige o Centro para Desenvolvimento Internacional, ele projetou que a reconstrução do país “envolverá assistência financeira internacional, provavelmente um programa significativo liderado pelo Fundo Monetário Internacional”. À Época, Hausmann disse ver “várias razões” para que o chavismo esteja “perto do fim”.
Poucos dias atrás, Hausmann falou a um grupo de ministros da economia – inclusive o brasileiro Paulo Guedes – reunido pelo secretário do Tesouro dos EUA, Steve Mnuchin. “Os ministros discutiram planos para o futuro apoio econômico à Venezuela”, disse Mnuchin em um comunicado. É praxe que ministros da área representem os países-sócios no BID. Após a reunião, Mnuchin falou em US$ 10 bilhões em financiamento internacional para estimular o comércio venezuelano assim que Maduro for derrubado.
O Intercept enviou na terça-feira (16) um e-mail a Ricardo Hausmann com perguntas sobre a participação dele no plano elaborado pelo BID. Ele não respondeu até a publicação deste texto.
Fundado em 1959, o BID oferece financiamento e assistência técnica em projetos de infraestrutura, saúde e educação na América Latina e Caribe. Seus sócios são 48 países – os 26 da região, também tomadores de empréstimos, e 22 nações que apenas oferecem capital. Atualmente, os principais sócios são os governos dos EUA (30% das ações com direito a voto), Argentina e Brasil (11,2% cada), México (7,2%) e Japão (5%).
A posição dominante dos EUA levantou questões sobre a independência do BID. Uma das fontes nos disse que a preparação de um plano para a Venezuela pós-Maduro foi estimulada pela postura agressiva do presidente dos EUA, Donald Trump, em relação ao atual regime venezuelano.
Se decidir irrigar a Venezuela com dinheiro, o BID vai incentivar uma onda de otimismo no futuro do país, num contraste gritante com a análise que faz a respeito da atual administração. Segundo o demonstrativo financeiro de 2018, o governo venezuelano é considerado inadimplente desde maio passado. Atualmente, os empréstimos com pagamentos atrasados somavam US$ 233 milhões. Novos negócios com Caracas estão suspensos desde 2012, e os repasses previstos em acordos já existentes cessaram em 2017.
Petróleo, petróleo, petróleo…
A análise do BID é um retrato do desastre da Venezuela sob Maduro: produto interno bruto inferior à metade do que era em 2013, hiperinflação, estimativa de 94% da população abaixo da linha da pobreza e mortalidade materna em alta.
O petróleo é fator crucial para a crise. A Venezuela abriga as maiores reservas comprovadas de petróleo bruto do mundo, responsáveis por 92% da receita do governo. Em 2011, o petróleo era negociado a mais de US$ 100 por barril, mas o preço caiu 60% entre 2014 e 17. “Diante do declínio da liquidez externa, o governo aplicou medidas para racionar a moeda forte e cortar as importações desde 2013”, diz o BID, observando que a Venezuela produz apenas 25% dos alimentos de que necessita.
Num cenário de “intervenção [estatal] distorcida do setor privado” e “falta de capital de giro” (os investimentos privados foram míseros 0,7% do produto interno bruto em 2017), o BID observa que a produção de petróleo caiu 60% em 12 anos, atingindo os níveis mais baixos desde 1949.
A tragédia traz a perspectiva de bons negócios: “recursos naturais abundantes (minerais e petróleo)” e o “compromisso de apoio da comunidade internacional” são exemplos de um “ambiente com oportunidades”, segundo o BID. O banco avalia que, com um investimento anual de US$ 14 bilhões, a produção de petróleo pode chegar a 3,03 milhões de barris diários em 2029. Em dezembro passado, o país extraiu 1,1 milhão de barris por dia, segundo a Organização dos Países Exportadores de Petróleo.
No BID, a pergunta sobre a mudança de regime em Caracas não é ‘se’ ela irá ocorrer, mas ‘quando’.
A aposta no aumento da produção de petróleo vai contra advertências feitas por diversas instituições internacionais que monitoram as mudanças climáticas. O Painel Intergovernamental das Nações Unidas sobre o tema disse que a economia mundial tem 12 anos para se mover na direção oposta – ou seja, reduzir sua dependência de combustíveis fósseis.
Hoje, a estatal petrolífera PDVSA precisa participar de toda a exploração no país como acionista majoritária. Os Estados Unidos sempre cobiçaram o petróleo venezuelano. “Esse é o país com o qual deveríamos entrar em guerra. Eles têm todo esse petróleo e estão bem no nosso quintal”, disse o presidente dos EUA Donald Trump numa conversa privada em 2017. A deposição de Maduro é a chance para que Trump reabra mercado para empresas americanas cujas operações locais foram expropriadas por Hugo Chávez.
Segundo uma fonte que circula pelos corredores do BID em Washington, a pergunta feita por ali sobre a mudança de regime em Caracas não é “se” ela irá ocorrer, mas “quando”. Apesar disso, a urgência do plano detalhado no documento aparentemente diminuiu após o notório fracasso do plano de Guaidó e de seus aliados de levar caminhões carregados de “ajuda humanitária” para a Venezuela a partir da fronteira com a Colômbia. Esperava-se que o comboio ajudasse a detonar o estopim da queda de Maduro.
Ajuda humanitária e ortodoxia neoliberal
É claro que todo esse dinheiro não sairia de graça. Os documentos do BID detalham, a partir de um diagnóstico da atual situação sócio-econômica venezuelana, as áreas-chave para investimentos de forma a atingir três condições básicas: “estabilidade” com a normalização dos estoques de comida e serviços de saúde e educação, “execução” de infraestrutura básica e “reversão da fuga de cérebros” com reformas institucionais.
Ainda que inclua bilhões de dólares para ações humanitárias, como a distribuição de alimentos a 25 milhões de venezuelanos e a transferência de dinheiro a fundo perdido a 17 milhões de pessoas, o cerne do plano se apoia no conhecido receituário neoliberal aplicado com resultados pouco animadores em quase todo o continente latino-americano durante os anos 1980 e 90.
Pouco mais de um terço de todo o dinheiro elencado pelo BID seria gasto com comida, saúde, educação e transferências de renda. Nos primeiros seis meses, o plano prevê apoio alimentar e kits médicos para a grande maioria da população e um esforço de vacinação. Em seguida, viria um programa de “transferências não-condicionadas de renda” para 17,6 milhões de pessoas, que seria reduzido em 45% até o fim do quarto ano com medidas para aprimorar a seleção do público-alvo.
Mas os subsídios e apoios diretos à população (inclusive em electricidade e saneamento básico), que ajudariam o novo governo a ganhar apoio popular durante a fase crucial de transição, seriam cortados dramaticamente ao longo dos quatro anos. A ação humanitária inclui ainda investimentos em hospitais públicos, merenda escolar, reforma e expansão da infraestrutura educacional e repatriação de profissionais.
BID fala em US$ 4,5 bilhões em 12 meses para recuperar infraestrutura.
Por outro lado, as mudanças mais profundas na economia viriam a médio e longo prazo. Num slide intitulado “O que pode ser feito no setor energético?”, o BID propõe reformas regulatórias que abram o mercado para o setor privado já nos primeiros 12 meses após a mudança de regime. Nos anos seguintes, viriam parcerias-público-privadas (“chave para financiamentos”, nas palavras do banco) e revisões tarifárias (congeladas desde 2002), com a manutenção de subsídios apenas pontuais.
Para a área de transporte, o BID sugere que a reabilitação e manutenção de corredores estratégicos seja seguida de uma “introdução gradual de tarifas para a recuperação dos custos”. No regime chavista, o transporte público é pesadamente subsidiado: uma passagem de metrô chegou a custar uma fração de um centavo de dólar – e, durante vários meses, o serviço foi gratuito.
O plano fala em US$ 4,5 bilhões – apenas nos primeiros 365 dias – para reabilitar a infraestrutura básica venezuelana: energia elétrica, abastecimento de água e transportes. A soma, ressalta o próprio banco, não inclui “investimentos privados nos setores de petróleo e energia”.
Entre as “prioridades urgentes para a administração pública”, o banco propõe medidas básicas como “uma lei orçamentária” e “retomar a capacidade de gerar estatísticas para formulação de políticas” a “mecanismos que gradualmente desmontem os subsídios públicos de eletricidade, água, gasolina e transporte público”.
Chavismo incomoda EUA desde a gestão de George W. Bush
O plano do BID não tem foco na indústria petrolífera da Venezuela, mas seus 302 bilhões de barris em reservas comprovadas de petróleo sempre foram determinantes na relação com Washington. Trump tem agressivamente trabalhado para derrubar Maduro do Palácio Miraflores desde janeiro, repetindo com insistência que “todas as opções estão sobre a mesa” – inclusive a militar.
O republicano endureceu dramaticamente as sanções econômicas sobre Caracas, exacerbando os problemas econômicos e sociais detonados pelos baixos preços do petróleo e pela caótica gestão de Maduro. A commodity representa quase toda a receita venezuelana com exportações, mas, após as medidas que Trump assinou em fins de janeiro, os EUA, outrora principais compradores do óleo do país, chegaram a suspender os negócios em março, a primeira vez que isso ocorre desde que Washington passou a registrar as importações do produto em 1973.
O incômodo dos EUA com o regime chavista é antigo. As sanções à Venezuela começaram – pontuais – sob Barack Obama, em 2015. Mas, antes disso, George W. Bush chegou a apoiar um golpe de estado – que fracassou – contra Hugo Chávez, antecessor de Maduro.
Apoio a Maduro está evaporando: só 16% de aprovação entre os mais pobres.
Nos últimos anos, a dificuldade para encontrar trabalho e mercadorias básicas para a vida cotidiana e a insegurança pública levaram mais de um em cada dez venezuelanos a deixarem o país. O produto interno bruto do país encolheu 18% em 2018 após cair 14% em 2017, de acordo com o Fundo Monetário Internacional. Fábricas fecharam as portas, agricultores deixaram de plantar por não ter a quem vender a produção. O FMI espera que o desemprego chegue a 44,3% em 2019.
Com isso, embora Guaidó tenha se mostrado mais frágil e menos popular do que esperavam seus aliados, o apoio a Maduro está evaporando: pesquisas mostraram que em fevereiro ele tem 16% de aprovação entre a população mais pobre, historicamente a principal aliada do chavismo. Em 2016, ela era de 40%.
Num cenário que já é agradável para quem sonha com a queda de Maduro, o plano do BID pode ser o empurrão que faltava para a oposição conseguir minar o que resta de apoio ao chavista.
Correção: 18 de abril de 2019, 19h30
Uma versão anterior desta reportagem referia-se incorretamente a Ricardo Hausmann como economista à moda da Escola de Chicago. Ele não é defensor da pauta liberal ortodoxa.
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