Rosana Pinheiro-Machado

Rosana Pinheiro-Machado

O fogo amigo contra Tabata Amaral revela que a esquerda está perdida

Articular forças deveria ser o foco do campo progressista para barrar retrocessos. Mas estamos perdendo a disputa narrativa com as bases populares.

A deputada Tabata Amaral (PDT) fala em evento sobre combate às drogas em comunidade da zona sul de São Paulo.

A deputada Tabata Amaral (PDT) fala em evento sobre combate às drogas em comunidade da zona sul de São Paulo.

A deputada Tabata Amaral (PDT) fala em evento sobre combate às drogas em comunidade da zona sul de São Paulo.

Foto: Bruno Rocha /Fotoarena/Folhapress

A rotina de incompetências do presidente Bolsonaro e sua trupe de ministros tem gerado polêmicas em série nas redes sociais, que revelam a idiotização da base governista, mas também a incapacidade de coordenação estratégica da oposição.

Na quarta-feira passada, aconteceu um episódio emblemático dessa dinâmica. Circulou um vídeo da deputada pedetista Tabata Amaral, de São Paulo, desvelando a incapacidade do ministro da Educação Ricardo Vélez durante uma audiência na Câmara dos Deputados. Em meio a outros discursos contundentes de parlamentares da oposição, Tabata se destacou ao apontar a incompetência absoluta de gestão e planejamento do ministério.

A jovem deputada refutou a “lista de desejos” amadora colocada para debate e pediu a cabeça do ministro. Com a voz embargada, Vélez mal conseguia responder. Foi sua morte política, ainda que ele permaneça no cargo.

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Assistindo à participação de Tabata, pensamos: “Ponto para a oposição!” Tínhamos ali uma pequena vitória narrativa contra um ministro de uma pasta-chave do mais trágico governo desde a redemocratização do país. Como intelectuais e ativistas, temos inserções e atuações políticas distintas no campo progressista, não somos eleitoras de Tabata e não estamos alinhadas com seu partido. Nossa impressão foi simplesmente a de que a deputada fez um bom trabalho naquela audiência.

Resta-nos a pergunta: o que ganhamos com isso?

Mas a repercussão do caso seguiu um caminho curioso. À medida que o vídeo viralizava, como um respiro estético no deserto de boas notícias no qual estamos, o escrutínio e a reação contrária à figura política de Tabata cresciam quase na mesma velocidade. Não houve sossego até que sua “verdadeira identidade” fosse exposta e sua carteirinha de esquerda, cassada. Com ares de uma grande descoberta, postagens faziam revelações de que ela seria liberal e apoiaria a reforma da previdência. Outros internautas – estimulando inconsciente e indiretamente mais uma competição entre mulheres – questionaram por que outras deputadas federais de partidos de oposição, que fizeram intervenções igualmente boas, não conseguiram a mesma repercussão.

É importante frisar que essas críticas são pertinentes ao debate político. Mas o que queremos discutir aqui é tática e estratégia em tempos de avanço da extrema direita.

Fica parecendo que Bolsonaro não é o único a desconhecer o sentido da palavra “articulação”.

No fim das contas, o trabalho parlamentar dessa mulher de 25 anos que saiu da periferia e se elegeu deputada federal virou um fato menor nos meios de esquerda. Grande mesmo foi a nossa demonstração de inabilidade em negociar democraticamente em um campo progressista diverso e fragmentado. Reclamamos da direita tacanha, mas os debates das redes sociais esvaziaram o eficiente desempenho de uma parlamentar de oposição. Resta-nos a pergunta: o que ganhamos com isso?

Ao ocupar um cargo público, Tabata deve ser monitorada e criticada por suas posições sempre que necessário. Mas a repercussão desproporcional é sintomática de um desejo da esquerda em permanecer isolada. A atividade política inclui a construção de uma relação de confiança entre forças distintas, como também a disputa de quadros e posicionamentos que variam de acordo com a conjuntura.

O reconhecimento do bom trabalho feito pela deputada naquela audiência pode ser um passo na construção de potenciais alianças, essenciais no contexto extremo em que vivemos. Buscar um meio para articular forças deveria ser nosso foco estratégico para recompor um campo progressista que possa barrar retrocessos, ao mesmo tempo em que constrói bases para uma renovação política já nas próximas eleições municipais. Fica parecendo que Bolsonaro não é o único a desconhecer o sentido da palavra “articulação”.

Todo mundo parece concordar que, diante dos ataques violentos à democracia, o mais importante é a criação de uma ampla frente democrática. Até agora, porém, essa palavra de ordem não se traduziu em um esforço real de negociação e articulação. O maior obstáculo tem sido, justamente, a incapacidade de lideranças de oposição em incorporar a pluralidade de ideias e a transversalidade das pautas de direitos como princípios.

Nada disso equivale a transformar Tabata em heroína ou imunizá-la de críticas pertinentes.

A esquerda tem criticado frequentemente as ditas “causas identitárias” defendidas por feministas e pelo movimento negro, por exemplo. Percebemos certa hipocrisia nessa crítica já que a própria esquerda se comporta de forma bastante identitária quando avalia possíveis alianças apenas pelo viés de quem se enquadra em uma identidade “pura” de esquerda. Enquanto isso, estamos perdendo a disputa narrativa com as bases populares.

Compor o campo progressista é se revoltar contra as injustiças, não aceitar um mundo com tantas desigualdades, lutar pela transformação radical da distribuição de riquezas – tudo isso com recorte de raça, gênero e respeito aos direitos humanos. A partir daí, existem diversas possibilidades, inclusive perguntas que não sabemos responder. Qual a melhor estratégia para avançar? Quais táticas podem ser mais efetivas a cada momento? Quem são aliados potenciais nesse contexto? Quais países no mundo nos servem de exemplo?

Precisamos resgatar nossa capacidade de articular um novo pacto social.

Ao invés de debater isso a fundo entre pessoas que pensam diferente, estamos disputando o ranking de esquerda para exibir nas redes sociais. Parece suficiente se demarcar e ter a última palavra, aquela que encerra o debate. Mesmo lideranças dos partidos de esquerda têm usado essa tática, no momento em que precisamos de argumentos embasados e projetos de governo, evitando enfatizar apenas o lado defensivo de nossas propostas — como disse Tatiana Roque em entrevista recente ao jornal El País. O principal, no cenário em que vivemos, é conseguir dialogar para fora da bolha.

Tabata conseguiu desvelar ponto a ponto a incompetência do ministro com um discurso útil para compartilhar com os amigos reaças no WhatsApp da escola, da família ou com o seu ‘tio do pavê’ de estimação. Essas pessoas talvez estejam vacinadas contra discursos contendo apenas marcação de posição. Com esse público, a ‘tabatada’ no ministro tem impacto e pode ser um gancho para abrir uma conversa construtiva sobre os rumos do país. Nada disso equivale transformar Tabata em heroína ou imunizá-la de críticas pertinentes. Costurar diferentes táticas e abordagens faz parte de uma boa estratégia de oposição, perspectiva que está fazendo enorme falta à esquerda brasileira.

Após uma semana em que o governo incentivou as Forças Armadas a celebrar a ditadura militar, vale lembrar que a Constituição cidadã de 1988 foi aprovada a partir de um amplo pacto social e político. Naquele tempo, a redemocratização do Brasil foi uma tarefa assumida por alianças improváveis que mudaram o rumo da história. O momento atual é grave. Precisamos resgatar nossa capacidade de articular um novo pacto social, plural, que respeite a Constituição e dê conta de questões estruturantes da sociedade brasileira. Não sairemos do bolsonarismo sozinhos.

Atualização, 3 de abril, 13h21:
A versão inicial deste texto continha dois tuítes críticos à Tabata Amaral. Os tuítes foram retirados porque não refletiam o conteúdo exato das críticas que as autoras se referiam neste artigo em particular.

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