Em dezembro de 2016, as autoridades parisienses tomaram uma medida extrema: limitaram a circulação de carros pela quarta vez em 20 anos na cidade por causa da poluição alarmante. No Brasil, se o estado de São Paulo usasse a mesma régua dos franceses, 480 alertas de emergência para poluição seriam disparados em um único ano.
Aqui, o aviso nunca dispara por um motivo simples: os limites da qualidade do ar são mais frouxos, muito maiores do que os de países desenvolvidos. A Organização Mundial de Saúde atualizou seus padrões de poluição em 2006, após vários estudos científicos. Mas o Brasil ainda se recusa a seguir o padrão internacional. É como se os pediatras passassem a considerar uma criança com febre quando o termômetro indicasse 39° C e não 37° C.
São Paulo tem a legislação ambiental mais avançada do país sobre poluição atmosférica – mas, ainda assim, o estado está longe dos padrões internacionais. Para calcular essa diferença, o Instituto Saúde e Sustentabilidade comparou as medições da qualidade do ar feitas pela Cetesb, a agência ambiental paulista ligada ao governo estadual, com a régua da OMS. No estado, o limite aceitável de ozônio, por exemplo, é de 140 microgramas por mililitro em um intervalo de oito horas. A organização recomenda no máximo 100 microgramas.
Seguindo os critérios da Cetesb, o alarme do poluente soou 36 vezes em 2015 na região metropolitana. Mas, se o estado adotasse o padrão da OMS, o número de dias com atmosfera tóxica seria 2700% maior – teriam sido mais de 1000 alertas.
17 mil mortos por ano
A situação é ainda pior para quem costuma correr nas alamedas arborizadas da Cidade Universitária ou gosta de passear com o cachorro pelo parque do Ibirapuera. Na USP, por exemplo, foram 55 dias no ano com um ar danoso à saúde, onde o nível de emergência para o poluente foi atingido.
Também estão na lista suja, pela ordem, o centro de São Bernardo do Campo, o bairro de Santana, na zona norte e Interlagos, na zona sul da capital paulista.
A lista considera apenas o poluente ozônio, formado principalmente a partir das substâncias tóxicas eliminadas pelos escapamentos dos automóveis, dos caminhões e dos ônibus, principalmente quando usam o diesel. O ozônio, que ajuda a piorar quadros de doenças crônicas, provoca muitos danos quando inalado.
A molécula de ozônio não é a única vilã. O impacto causado pelos grãos microscópicos de poeira – ou “material particulado”, como chamam os pesquisadores – também está subestimado. Os dados oficiais apresentados pelo governo tucano indicam que o padrão anual paulista para o material particulado grosso passou dos limites em apenas cinco estações medidoras em 2015, ano em que os dados foram coletados, o que representa 10% da rede de monitoramento. Com a régua da OMS, entretanto, o mesmo poluente passou dos padrões aceitáveis em 48 pontos de medição – 92% do total.
As cidades de Cubatão, Santa Gertrudes, por causa do polo cerâmico, São Caetano e Santos também estão na lista dos locais mais poluídos do estado com o material particulado.
Os estudos feitos na USP pela equipe do professor Paulo Saldiva, um dos maiores especialistas do mundo em poluição atmosférica, não deixam dúvidas de que a atualização dos padrões da poluição do ar é urgente.
Saldiva estima que, a cada ano em que a legislação não é modernizada, 17 mil pessoas morrem por causa da poluição. Com índices subestimados, o governo não se mexe para baixar as concentrações de poluentes – e evitar mortes prematuras. Em 2010, durante uma crise de ar seco na cidade, especialistas sugeriram ao então prefeito Gilberto Kassab (na época no DEM) e ao governador Alberto Goldman, do PSDB, que restringissem a circulação de carros para tentar minimizar o nível de poluição na cidade. Eles cruzaram os braços.
‘Um dos grandes interessados em não atualizar os padrões é o governo. Se os níveis mudam, a poluição vai piorar.’
Os cálculos de Saldiva mostram que, com os níveis atuais de poluição, 250 mil pessoas vão morrer na região até 2030 em consequência do ar tóxico de São Paulo. Crianças, idosos e pessoas com doenças crônicas, principalmente com problemas cardíacos e respiratórios, são as que mais perdem a vida para a poluição atmosférica. O governo gasta de cerca de R$ 1,5 bilhão para tratar essas condições.
Em 2015, só o material particulado lançado na atmosfera ajudou a matar 11.200 pessoas no estado de São Paulo – 31 mortes por dia. Para comparar, acidentes de trânsito mataram por volta de 22 pessoas por dia.
“Um dos grandes interessados em não atualizar os padrões é o governo. Se os níveis mudam, a poluição vai piorar. O Ministério Público vai poder agir mais, e a Cetesb, que não tem estrutura para fiscalizar, vai acabar tendo mais problemas”, diz Saldiva.
O estado de São Paulo, em 2013, até ameaçou modernizar sua legislação. Um novo projeto de lei foi escrito e aprovado, citando que era preciso atingir as metas propostas pela OMS, mas os autores da lei não definiram um cronograma para que a nova régua passasse a ser usada na prática. “Foi igual por um botox”, brinca Saldiva.
O paraíso do diesel
A maior parte da poluição em centros urbanos como São Paulo é causada pelos automóveis. Eles são responsáveis por 73% das emissões de gases que contribuem para o aumento do efeito estufa, segundo dados do Instituto Energia e Meio Ambiente. Os ônibus, que rodam quase sempre a diesel, respondem por outros 24%.
No ano passado, o Brasil aprovou uma medida para começar a aumentar, gradativamente, o teor do biodiesel no diesel – medida que, entre outras consequências, pode diminuir a emissão de poluentes. As novas regras, que começam a valer em junho de 2019, prevêem um aumento de 10% para 15% na mistura do combustível até 2023, aumentando um ponto percentual a cada ano.
Veículos com motores mais modernos, menos poluentes, são produzidos aqui – mas só rodam na Europa.
A Anfavea, associação da indústria automobilística nacional, é contra implementar a medida agora. Segundo os fabricantes, a frota atual não está preparada para receber o combustível e a mudança provocaria desgaste nos veículos. Também alegam que a mistura não foi testada. A entidade enviou um relatório contestando a decisão para o Ministério das Minas e Energia.
O setor industrial, que faz um lobby forte dentro do governo, também pressiona para deixar tudo como está. Como os limites brasileiros de poluição estão defasados, fazer caminhões aqui, por exemplo, com o objetivo de exportar para a África e outras regiões onde a tolerância com a poluição é tão alta quanto no Brasil pode ser vantajoso. Ajustar os medidores significaria perder mercados.
Um dos casos emblemáticos é a implantação dos limites de poluição para caminhões e ônibus. A União Europeia, por exemplo, adotou em 2013 um novo padrão. Mas, no Brasil, veículos ajustados para emitir os mesmos índices de poluentes só vão começar a rodar a partir de 2022 – a indústria automobilística argumenta que não é possível fazer nada do dia para noite.
Detalhe: montadoras como a Scania, que exportam para a Europa, já fazem caminhões com motores modernos, menos poluentes, em suas fábricas brasileiras. Mas eles não rodam por aqui. Saem da fábrica e cruzam o Atlântico.
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