Parada do Orgulho LGBT de Brasília, em junho de 2017.

A homofobia pode virar crime. E isso é um tiro no pé.

Focadas na punição de homofóbicos, ações analisadas no STF podem ser tentadoras para os LGBTs na "nova era" – mas não passam de migalhas.

Parada do Orgulho LGBT de Brasília, em junho de 2017.

#HomofobiaÉCrime. #CriminalizaSTF. #ÉCrimeSim. Durante a maior parte desta quarta e desta quinta, o apoio às ações que pretendem criminalizar a homofobia e estão sendo julgadas no STF dominou o Twitter. Eu queria fazer parte da mobilização. Depois de ver chegar à presidência alguém que disse “se eu vir dois homens se beijando na rua, vou bater”, ver a homofobia ganhar status de violação inadmissível pareceria uma mensagem de que nem tudo está perdido. Mas esse alívio se transformaria rapidamente em desilusão.

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Eu sou bissexual e contra a criminalização. Acredite, é duro escrever isso. Tudo que parte de mim quer é deixar esse texto de lado, aderir ao otimismo e me juntar ao movimento pela aprovação – especialmente depois de ver Bolsonaro e Silas Malafaia se posicionando, previsivelmente, de forma contrária às ações. Mas esse não é um debate de apenas dois lados, e o meu jamais será o deles. A discussão não é simples assim. A LGBTfobia com que essas figuras compactuam é um problema grave. Não sou contra as ações por negar essa realidade. Sou contra porque as propostas são ruins.

A maioria das manifestações que vi de apoio às ações tinham como base a situação revoltante em que vivem nossos LGBTs. O Brasil é o país que mais mata pessoas por não serem hétero ou por não se identificarem com o gênero que receberam ao nascer. Mesmo quando não se chega a esse extremo, a vida das pessoas LGBT é permeada por agressões verbais – o presidente em exercício nos agraciou com uma coleção delas –, psicológicas e, por vezes, físicas e sexuais.

Sei por exemplo que, como bissexual, o subgrupo mais invisibilizado da comunidade LGBT, estou quatro vezes mais propensa a pensar em suicídio do que os heterossexuais e duas vezes mais do que lésbicas e gays, segundo reportagem da Vice. E, como mulher bi, tenho 2,6 vezes mais chances de ser estuprada do que minhas amigas hétero e 3,5 a mais do que as lésbicas. Além disso, segundo um estudo da revista Journal of Public Health, tenho 64% mais chances de ter um distúrbio alimentar do que uma lésbica, 37% a mais de me automutilar e 26% a mais de ter depressão.

É um dado da realidade que ser LGBT no Brasil é perigoso e algo precisa ser feito a respeito disso. Mas vi poucas pessoas apoiando as ações em julgamento por conta de seu mérito enquanto propostas. Vamos lá: o Supremo Tribunal Federal está julgando duas ações, uma proposta pelo PPS, o Partido Popular Socialista e, a outra, pela ABLGT, a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transgêneros e Intersexos. Elas são bem parecidas e e, resumo, propõem três coisas: que a homofobia seja entendida como crime de racismo; que o STF dê ao Congresso um prazo para criar essa lei; ou que o próprio tribunal crie essa lei de forma temporária, até o Congresso legislar – opção que pode criar um precedente perigoso, segundo a pesquisadora de Direito Penal e Criminologia Luciana Boiteux.

Essa discussão eu deixo para ela. Meu problema com a lei que se pretende criar é a seguinte: como o único foco é na punição, ela será incapaz de prevenir a homofobia, de acolher suas vítimas e de reeducar os agressores. E, se a lei em que se baseia serve de exemplo, ela será incapaz de fazer até mesmo a única coisa que pretende (punir). Como já escrevi em junho de 2018:

O último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias do Departamento Penitenciário Nacional, de 2016, é detalhado a ponto de indicar que há sete pessoas presas no país por genocídio. Já os crimes de racismo e injúria racial – com penas equiparadas por decisão do STF no último dia 4 – sequer aparecem entre os tipos penais listados para justificar as mais de 620 mil detenções de que o relatório dá conta.

Não precisamos de uma lei que se proponha apenas a colocar mais pessoas – pretas e pobres, convenhamos – atrás das grades. Como escreveu a historiadora Suzane Jardim, que estuda o encarceramento em massa e também se posicionou de forma contrária à aprovação das ações:

Em 2006, comemoramos a promulgação da Lei Maria da Penha e, em 2014, celebramos a Lei do Feminicídio. Estávamos, então, corrigindo erros do nosso direito penal e fazendo uso dele para proteger as vidas de mulheres. Meu despertar se deu ao perceber que o que chamamos de “erros do direito penal” são, na verdade, parte do projeto político que o estrutura – um projeto seletivo, pautado em racismo e em elitismo, moldado a partir de sujeitos dos quais o Estado quer se ver livre.

[…] O sistema penal é formado por escolhas que se escondem atrás de uma máscara de universalidade. Desde a formação da lei até sua aplicação, existe um projeto em que se define quais crimes são prioridade, quem são os suspeitos ideais e as vítimas com as quais não irão se importar.

Aprovar uma lei que reforça o encarceramento como solução para todos os problemas, ignorando o racismo presente nesse sistema de punição, e que não propõe nenhuma política pública é um erro. A LGBTfobia está profundamente enraizada na cultura brasileira. E cultura não se muda com prisão. Se muda com conscientização, especialmente aquela voltada às crianças e adolescentes – coisa que o governo atual pretende expressamente proibir com projetos como o Escola sem Partido. Lembremos que a ministra Damares Alves foi uma das pioneiras na mentira do “kit gay”, nome dado ao programa que pretendia justamente debater diversidade sexual nas escolas e prevenir a homofobia.

É verdade que aprovar a criminalização na “nova era”, em que “menino veste azul e menina veste rosa”; “quem ensina sexo pra criança é papai e mamãe”; e “[o governo vai] combater a ideologia de gênero”, seria algo muito simbólico. E que existe a possibilidade de a criminalização inibir alguns discursos de ódio, já que os homofóbicos teriam que lidar com o fato de que seu preconceito não poderia ser mais mascarado sob o rótulo de “opinião”. Também concordo que dar nome às violências que sofremos todos os dias é importante para dar visibilidade a elas e aumentar o debate público.

Acreditem, o peso de todas essas possibilidades me faz mais uma vez pensar se não devo deixar esse texto de lado. Mas, aprovando uma lei deficiente depois de décadas de luta, temo que possamos correr o risco de levarmos muitas outras para aprovar uma segunda, que de fato nos beneficie. E, lendo os tweets espalhados por texto, firmo ainda mais minha posição.

A comunidade LGBT não merece a migalha ineficaz que pretendem nos oferecer. Merece um texto à altura da Lei Maria da Penha, considerada a terceira melhor do mundo quando se trata de enfrentamento à violência doméstica. E, para uma lei como essa sair do papel, é preciso vontade política. Construir e manter os centros de referência para mulheres, os núcleos especializados de defensorias públicas, promotorias e juizados, por exemplo, exige verba. Alguém acredita que nosso Congresso seja capaz de aprovar uma lei desse porte voltada aos LGBTs nessa legislatura, depois de mais de 18 anos barrando projetos muito menos ousados? Ou que governo vá repassar recursos para a implementação de políticas pró-LGBT?

Eu não. Mas, mesmo pessimista, não hesitaria em me juntar ao movimento pela aprovação de um projeto como esse. Já o que está sendo proposto no momento, para mim – ou, talvez, para 99,9% de mim – é um tiro no pé.

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