Em novembro passado, os franceses deram início a uma nova tradição de sábado: manifestantes “gilet jaune” vestindo coletes de segurança amarelos começaram a sair às ruas às dezenas de milhares pela manhã, gritando slogans contra o alto custo de vida, contra o presidente francês, Emmanuel Macron, e contra seus impostos e reformas de serviço social.
À tarde, os manifestantes entravam em confronto com a polícia de choque, que disparava várias rodadas de gás lacrimogêneo e lançava granadas de efeito moral para dispersá-los. Ao anoitecer, os manifestantes quebravam vidros de estações de ônibus e lojas e às vezes incendiavam carros antes de fugir quando os policiais chegavam. E do meio da noite até a manhã, os outros “gilets jaunes” – limpadores de rua, muitas vezes imigrantes, que também usam os coletes de segurança – limpavam a bagunça.
Neste último sábado, cerca de 8 mil manifestantes compareceram ao “9º Ato”, ou 9ª semana, de protestos, marchando de Bercy, no leste de Paris, até o Arco do Triunfo, a oeste da cidade, na tentativa de chegar a Champs-Elysées. Pelo menos 85 mil pessoas se reuniram em toda a França, marcando a segunda semana consecutiva em que o comparecimento aos protestos dos coletes amarelos aumentou após diminuir durante as festas de fim de ano. “Estou aqui porque sou mãe solteira e trabalho há 20 anos”, explicou Stephanie, uma funcionária do setor público de 40 anos que marchou em Paris. “Depois de pagar minhas contas no final do mês, não consigo nem levar minha filha ao cinema”, disse ela.
A força e a resistência do movimento, que não tem estrutura fixa, nenhuma liderança clara e nenhuma afiliação política ou institucional, surpreenderam a todos, inclusive a Macron. Desde o primeiro protesto, em 17 de novembro, as manifestações dos “gilet jaune” corroeram a capacidade da Macron de realizar reformas planejadas para os impostos e os serviços sociais e prejudicaram seriamente sua imagem pública. Os protestos representam a maior ameaça à popularidade do presidente, sua capacidade de governar e ao liberalismo europeu de centro do qual ele se tornou o porta-voz global na era Trump. No entanto, embora a potência dos protestos dos coletes amarelos seja inegável, o perigo é que a extrema direita possa sair vitoriosa na batalha quanto à identidade política do movimento.
Macron subiu ao poder contornando partidos políticos estabelecidos. Seu partido La République en Marche foi criado em 2016 e conquistou a maioria dos assentos no parlamento apenas um ano depois, tomando o lugar dos partidos tradicionais das forças gastas de esquerda e direita. Isso significa que os dois principais partidos da oposição na política francesa são agora o Reunião Nacional de extrema direita de Marine Le Pen e a extrema esquerda da França Insubmissa. Ambos têm mais a ganhar com o colapso do centro. Embora Le Pen não tenha feito muitos comentários públicos sobre os protestos, o apoio ao seu partido subiu para o topo das pesquisas para as próximas eleições parlamentares europeias, com 35%. Por outro lado, Jean-Luc Mélenchon, o líder da França Insubmissa, cortejou agressivamente os manifestantes, mas caiu nas pesquisas, sugerindo que o movimento dos coletes amarelos, que é mais popular em áreas mais rurais onde o apoio de extrema direita é alto, é mais uma vantagem para Le Pen do que qualquer outro político.
A batalha pelos “gilets jaunes” e o enfraquecido centro francês têm grandes consequências para os partidos populistas à esquerda e à direita em toda a Europa. Trabalhadores e políticos em todo o continente estão apresentando suas reivindicações. O ministro do interior e o vice-primeiro-ministro italianos elogiaram os manifestantes, e os meios de comunicação russos, como o Russia Today e o Sputnik News, deram a eles ampla cobertura. Protestos de coletes amarelos brotaram na Bélgica, Croácia, Irlanda e na Holanda. Grupos de extrema direita no Reino Unido tentaram se apropriar do movimento para si e marcharam em Londres, no sábado.
O primeiro protesto “gilet jaune” foi lançado no Facebook como uma resposta a um imposto sobre o carbono que elevou o preço do diesel, uma grande fonte de frustração para as pessoas que vivem em regiões não atendidas pelo transporte público. O movimento escolheu o colete de segurança amarelo, obrigatório em todos os veículos de estrada, como seu símbolo, e contou com o apoio de simpatizantes de Marine Le Pen, cujos objetivos declarados incluíam o “Frexit” – a saída da França da União Europeia – e a interrupção da imigração. À medida que o movimento crescia, sua base se diversificava, e seus objetivos, também. “Nós pensamos que era um movimento instrumentalizado pela extrema direita”, disse o apoiador de colete amarelo Abdel Moula Elakramine, trabalhador de armazém de 52 anos e pai de três filhos que também é membro do França Insubmissa em Bobigny, um subúrbio parisiense. “Não é verdade. Os pobres estão na extrema direita, na extrema esquerda… estão em toda parte!”
A maioria dos grandes protestos na França é convocada por sindicatos ou partidos políticos. Mas uma série de duras perdas para os sindicatos contra a Loi du Travail, uma lei de reforma trabalhista que flexibilizou as condições para demitir trabalhadores, bem como uma greve dos trabalhadores ferroviários contra a liberalização da companhia ferroviária nacional, deixou pouca fé nessas resistências institucionais. Em ambos os casos, as batalhas de meses de duração dos sindicatos não provocaram nenhuma mudança nas posições do governo.
Os “gilets jaunes” são únicos em sua total rejeição de qualquer afiliação do tipo. O mais próximo que têm de porta-vozes são os administradores de conhecidas páginas do Facebook, como o motorista de caminhão Eric Drouet, de 33 anos, e Maxime Nicolle, de 31 anos, bem como Priscilla Ludosky, de 33 anos, que lançou uma petição contra o imposto sobre o diesel no site change.org que conta com mais de um milhão de assinaturas. Os manifestantes são marcados pela ambiguidade: qualquer um pode ser um “gilet jaune”, e você pode vestir e tirar seu colete a qualquer momento.
Essa ambiguidade permitiu uma participação mais aberta de pessoas que não estavam envolvidas em nenhum movimento de protesto e torna menos previsível e difícil o controle e a negociação por parte do governo. Isso também significa, no entanto, que não há ninguém para reivindicar a responsabilidade e disciplinar os colegas manifestantes quando espancam jornalistas, fazem gestos antissemitas ou assediam motoristas negros. As teorias da conspiração são abundantes nos grupos de coletes amarelos no Facebook, e elas costumam incluir referências ao antigo empregador de Macron, o Grupo Rothschild – um código para antissemitismo. Explosões de racismo e a composição predominantemente branca dos manifestantes afastaram ativistas negros de participar.
Os protestos dos coletes amarelos também são únicos na intensidade da violência, tanto dos manifestantes quanto da polícia. Pelo menos 10 pessoas morreram durante protestos, a maioria atropelada por carros e caminhões enquanto bloqueavam a estrada. Em dezembro, manifestantes construíram barricadas e incendiaram dezenas de carros e motos na rua. Durante a edição de 5 de janeiro, manifestantes utilizaram uma empilhadeira para arrombar a porta do escritório do porta-voz de Macron, Benjamin Griveaux, forçando-o a fugir pela entrada dos fundos, enquanto um ex-pugilista profissional foi filmado socando e chutando um gendarme. Alguns relatórios afirmam que o Macron está preocupado com sua segurança pessoal. Manifestantes tentaram atravessar fileiras policiais que estavam guardando a casa do presidente em Touquet, em dezembro, e a família de sua esposa expressou preocupação de que a loja de chocolates que administram em sua cidade natal, Amiens, seja atacada.
As forças de segurança muitas vezes responderam aos protestos com muita força. Pelo menos uma dúzia de pessoas perdeu a visão em um olho depois de ser atingido por granadas de efeito moral ou bombas de gás lacrimogêneo e mais de 80 pessoas ficaram gravemente feridas, segundo o site CheckNews.fr. Uma mulher de 80 anos morreu em Marselha depois de ser atingida no rosto por uma bomba de gás lacrimogêneo. No último sábado, vi a polícia em Paris mirando em manifestantes em vez de no ar ou no chão. Eu mesmo fui atingido por uma bomba de gás lacrimogêneo na coxa enquanto não estava na multidão, levando-me a acreditar que foi intencional. Estava carregando duas câmeras e usando um capacete claramente marcado como “IMPRENSA” e fotografava manifestantes em uma área com poucas pessoas ao redor.
A brutalidade policial fez com que mais franceses brancos tivessem contato com o que as pessoas não brancas experimentam regularmente, argumentou Almamy Kanouté, organizador do comitê de Justiça para Adama Traoré, criado após a morte do negro de 24 anos Adama Traoré em custódia policial. “Foram necessárias algumas pessoas recebendo bolas de borracha no rosto, espancadas com cassetetes, atingidas por gás e abusadas sem ter cometido um ato de incivilidade para que se vissem na experiência de pessoas excluídas e não brancas em geral”, explicou ele.
O medo de ser alvo de brutalidade policial também contribuiu para que alguns ativistas negros e outros ativistas não brancos se demonstrassem reticentes em participar. Laurent Lalanne, assistente social do subúrbio de Bobigny, disse que, se os manifestantes negros “fossem a uma revolta assim e fossem na frente, nós seríamos os primeiros alvos”. Lalanne, no entanto, apoia o movimento, porque está lutando por serviços sociais.
Os protestos tiveram um impacto enorme na economia também. O país perdeu milhões de euros em veículos danificados, fachadas de lojas e muito mais, enquanto as horas extras dos policiais dispararam e os voos internacionais para Paris diminuíram de 5 a 10% em dezembro. As perturbações causadas pelos protestos fizeram 58 mil trabalhadores serem demitidos, temporariamente suspensos ou terem suas horas reduzidas, de acordo com o ministro do trabalho francês Muriel Pénicaud. O governo gastou 32 milhões de euros para pagá-los durante o desemprego, de acordo com uma disposição das leis trabalhistas francesas.
Em seu primeiro ano e meio no cargo, Macron aprovou sua agenda liberal recusando-se a negociar com sindicatos e insultou publicamente as pessoas empobrecidas várias vezes, inclusive dizendo a um jovem desempregado que tudo do que ele precisava fazer para conseguir um emprego era “atravessar a rua”. É, portanto, irônico que os coletes amarelos tenham utilizado algumas das táticas de Macron – contornando as vias tradicionais de resistência, tornando-se mais formidável do que qualquer outro movimento social.
A resposta de Macron à crise foi revogar o imposto sobre o diesel e prometer uma série de outras reformas, incluindo o aumento do salário mínimo em 100 euros por mês. Mas os críticos expressaram ceticismo sobre seus planos para implementar as prometidas mudanças, e Macron tentou assumir o controle da narrativa, pedindo um “debate nacional” de um mês sobre as principais questões de governança a partir desta semana. O debate contará com fóruns abertos à população em todo o país, embora não haja garantia de implementação de qualquer política.
Enquanto isso, os manifestantes estão se preparando para o próximo sábado.
Tradução: Cássia Zanon
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