“Você tem a mente de Cristo e vai votar nessa gente que faz o jogo de satanás?”, diz o pastor Silas Malafaia no microfone da rádio Melodia FM, do Rio de Janeiro. Sob o slogan “a voz que fala do coração”, a emissora se dirige a um público-alvo bem específico, com o qual o pastor está acostumado a lidar: os fiéis evangélicos.
Durante duas semanas, uma anterior e outra posterior ao primeiro turno da eleição de 7 de outubro, pude perceber como a popularidade e o alcance do programa Debate Melodia foram usados como um poderoso canal de influência sobre o voto de eleitores evangélicos. No programa, pastores se revezaram com afinco para pregar para os mais de um milhão de ouvintes da rádio o boicote a candidatos de esquerda e a defesa do candidato do PSL, Jair Bolsonaro, como aquele que seria, nas palavras do pastor Humberto Siqueira, “a favor dos princípios morais”. É uma das rádios mais ouvidas no estado do Rio.
Nas duas semanas, todas as vezes em que a política ou a eleição foram temas principais ou apareceram na pauta, o voto nulo ou branco foi veementemente rechaçado. O próprio locutor e mediador do programa, o pastor Eliel do Carmo, foi taxativo sobre o assunto, na abertura do programa do dia 3: “Na esfera penal, a omissão é crime, e na esfera espiritual a Bíblia também fala sobre isso”. Ou seja: evangélico deve votar. E em quem votar? Pastores e pastoras deixaram claro ao longo do programa para quem querem os votos evangélicos.
A rádio Melodia foi fundada pelo ex-deputado Francisco Silva, falecido em 2017, conhecido pelo jargão “Um abraço companheiro”, dito diariamente, e por ter sido o padrinho político de ex-deputado Eduardo Cunha. Com a força da rádio, Silva foi o responsável por promover na cena política o ex-presidente da Câmara, preso desde outubro de 2016.
Durante duas semanas, 22 pastores passaram pelo programa e apenas sete mulheres. Das sete, quatro participaram no dia 12 do debate “Quais os desafios da mulher do pastor”. No programa da quarta-feira, 3 de outubro, cujo tema foi “Votar em branco ou nulo seria omissão?”, estavam na mesa os pastores Humberto Siqueira, Roberto Inácio e Ely Alves de Souza. Siqueira é presidente da Convenção Batista Nacional no Rio de Janeiro e pastor na igreja Monte Hermon. Embora não cite o nome de Bolsonaro, sua defesa do nome do candidato do PSL é aberta:
“Eu tenho um candidato que defende tudo o que é nocivo à família e aos princípios morais. Do outro lado, eu tenho um candidato que é contra a ideologia de gênero, contra o aborto, contra a legalização da maconha. Um cara que é a favor dos princípios morais”.
No programa, Siqueira disse querer alertar as pessoas que, segundo ele, “defendem a família, os princípios morais estabelecidos por Deus”. Ele ofereceu oito motivos para nenhum evangélico votar na esquerda. Entre as razões, ele citou o PL 134/2018:
“Segundo este projeto, uma simples opinião, ou até um versículo bíblico, contrário à ‘ideologia de gênero’ e à militância LGBT passa a ser crime, com pena de 1 a 5 anos. Eu vou ser preso, você vai ser preso e tantos pastores”.
Na verdade, o projeto é intitulado de Estatuto da Diversidade Sexual e de Gênero e trata dos “discursos de ódio, afirmando a inferioridade, incitando a discriminação ou ofendendo coletividades de pessoas em razão de sua orientação sexual ou identidade de gênero”. O que parece ser diferente de alguém que diga apenas “eu não concordo”.
Outro motivo dado por Siqueira é o projeto PL 9208/2017, de autoria do deputado Jean Wyllys, do PSOL do Rio, que tentou pôr limites ao ensino religioso confessional. Siqueira diz que o projeto “promove o ateísmo e proíbe o ensino sobre a existência absoluta de Deus”. Siqueira estimula a desinformação ao não explicar que o projeto de Wyllys está, na verdade, em disputa com outro, o PL309/2011, do deputado Marco Feliciano, do PSC paulista, que trata da obrigatoriedade do ensino religioso.
O debate reacendeu não por causa da proposta de Wyllys, mas pela então vice-procuradora geral da República que, com o envio de uma ação direta de inconstitucionalidade, pediu ao STF julgar como deveria ser o ensino religioso nas escolas públicas. A proposta foi vencida com votação apertada, 6 a 5, em setembro, no qual ficou decidido que o ensino deve ter natureza confessional, ou seja, que as aulas podem seguir os ensinamentos de uma religião específica. Jean Wyllys enviou seu projeto dois meses depois.
O pastor Ely de Souza completa: “Dizem que 13 é número de azar. Eu prefiro o 17”.
Uma terceira razão seria o ensino da “ideologia de gênero” nas escolas. Siqueira concluiu: “Autor? Fernando Haddad do PT. Tem alguém em dúvida? Tem evangélico pensando em votar no PT?” E uma frase do pastor se destacou: “Se você é evangélico e vota na esquerda, está cometendo pecado”. Na mesma mesa, o pastor Ely de Souza completou: “Dizem que 13 é número de azar. Eu prefiro o 17”.
No dia seguinte, dia 4, o tema foi “O Brasil que você quer para o futuro? Domingo pode começar”. Na bancada, estavam três pastores: Paulo Roberto de Oliveira Ramos, Oziel Nascimento e Silas Malafaia, líder do ministério Vitória em Cristo, ligado à Assembleia de Deus. Aqui, em vez de discutir sobre um Brasil em busca de melhor qualidade na educação, saúde, trabalho, moradia, saneamento ou algo semelhante, grande parte das falas foram para atacar o marxismo, a esquerda e, mais uma vez, a ideologia de gênero. Nas palavras do pastor Paulo Ramos: “Qual é a atitude hoje do marxismo no Brasil: ele quer destruir a nossa cultura judaico-cristã. Ele quer desconstruir a família”.
Malafaia, figura mais famosa entre o trio, começou sua fala apelando ao que ele sabe que repercute como poder de intimidação no grande público evangélico:
“Conhecereis a verdade, e ela vos libertará (…). Quando somos ignorantes, damos poder ao diabo. A ignorância é o maior fator para satanás agir”.
Vale dizer que a sentença sobre “conhecer a verdade” é encontrada no Evangelho de João e se tornou o slogan de Jair Bolsonaro. Malafaia descreveu uma série de pautas que, segundo ele, o PT e o PSOL apoiam, como “aborto” e “mudança de sexo em crianças sem o consentimento dos pais”, para terminar perguntando aos ouvintes evangélicos: “Você tem a mente de Cristo e vai votar nessa gente que faz o jogo de satanás?”
Em tom sempre enérgico, Malafaia fez uma curiosa afirmação para chamar atenção dos evangélicos pobres que possam ter qualquer gratidão ao programa Bolsa Família, o que seria uma gratidão ao governo do PT:
“Quem é o nosso supridor? Jeová ou uma bolsa de compra que um governo dá? Se você está negando a sua fé por causa de uma Bolsa Família, você está pior que os corruptos dessa nação”.
Curioso ouvir uma declaração como essa, que coloca em xeque a adesão a um programa reconhecido pela FAO como crucial para o país ter tirado tantas famílias da extrema pobreza e vinda de alguém que entrou na lista da Forbes como um dos cinco pastores mais ricos do país.
Segunda-feira, 8 de outubro, após o resultado das eleições, o tema do debate na rádio foi “Por que o princípio da honra é difícil de ser visto, mesmo sendo bíblico?”, e os debatedores receberam, no ar, a visita do recém-eleito deputado estadual Fabio Silva, do DEM do Rio, filho de Francisco Silva. Sua visita foi celebrada pelos pastores convidados e rápida: “O povo de Deus saiu vencedor mais uma vez. Continuaremos na nossa luta pelos valores da família e os princípios cristãos”.
O marxismo ainda apareceu mais uma vez, no programa do dia 11, cujo tema foi “Quais os inimigos da feminilidade cristã nos dias de hoje”, com a convidada Elizabeth Pimentel, tida como uma especialista no assunto. Pimentel afirmou:
“Houve uma deturpação desse feminismo, e aí ideias marxistas começaram a interferir nesse movimento e deixou de ser um movimento por direitos. Além de se tornar um movimento político, por trás do movimento político tem um movimento do inferno. (…) E as ideias marxistas têm como principal alvo destruir a família”.
A contribuição masculina em um debate sobre a feminilidade cristã no programa ficou por conta do pastor Anderson Maciel, que fez questão de marcar o lugar da mulher na “família tradicional”: “A mulher é geradora de vida. Por isso a sua capacidade de suportar muito mais dor que o homem”.
A ênfase na deslegitimação do feminismo distanciam mulheres evangélicas de qualquer pauta associada ao movimento. Nas palavras da doutora Pimentel: “O movimento das feministas radicais é um movimento vulgar. É um movimento onde ela se masculiniza”.Elizabeth Pimentel é psicóloga conhecida, presença frequente na rádio e de grande circulação entre diversas igrejas. No seu Instagram, ela também se apresenta como conferencista. Uma de suas postagens se destaca: “Se existem argumentos para você não votar no Bolsonaro, existem fatos para você não votar no Haddad. E contra fatos não há argumentos”.
Confiantes de que seu público ouvinte dificilmente perguntará sobre as referências quanto ao que é marxismo ou onde podem acessar os projetos por eles citados apenas com nomes pejorativos como “ideologia de gênero”, “ateísmo nas escolas” ou “erotização de crianças”, pastores têm na Rádio Melodia um veículo poderoso para incitar o medo e fazer intimidação, enquanto mantêm sob controle a mente e o voto de fiéis sinceros que só querem escolher de acordo com a vontade de Deus e temem genuinamente o pecado, o inferno e o diabo. Mal sabem eles que alguns diabos também falam “amém”.
Segundo as pesquisas, a intimidação parece ter tido efeito contrário. Na pesquisa Ibope de 23 de outubro, a diferença entre os candidatos no segmento evangélico diminuiu em 10%. A certeza de voto em Haddad entre evangélicos subiu em 6%, e a de Bolsonaro recuou em 12%.
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