SÃO PAULO, SP, BRASIL, 21-09-2010: Duas iguanas foram encontradas dentro de uma caixa de Sedex por funcionários dos Correios, em São Paulo (SP). Os animais foram despachados em uma agência da zona leste da capital com destino à Belo Horizonte.(Foto: Zanone Fraissat/Folhapress, Cotidiano)

300 grupos de WhatsApp estão ligados ao tráfico de animais em todo o país

Escambo no app tem até troca de relógios de ouro por aves exóticas.

SÃO PAULO, SP, BRASIL, 21-09-2010: Duas iguanas foram encontradas dentro de uma caixa de Sedex por funcionários dos Correios, em São Paulo (SP). Os animais foram despachados em uma agência da zona leste da capital com destino à Belo Horizonte.(Foto: Zanone Fraissat/Folhapress, Cotidiano)

Facilidades para comprar celulares e acessar internet não param de ampliar o número de pessoas usando mídias sociais em todo o mundo, inclusive para cometer ilegalidades. No Brasil, cerca de 300 grupos de WhatsApp estão ligados à compra e venda de vida selvagem.

Demos uma olhada na troca frenética de mensagens acompanhada em tempo real pela ong Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres, a Renctas. Mais de 3,4 milhões de mensagens circularam em 6 meses por essas redes sociais, onde os delitos são presença constante.

Membros desses grupos não estão trocando mensagens comuns entre amigos e parentes, ou até mesmo fake news, mas, sim, participando e alimentando redes criminosas focadas em comercializar especialmente aves cantoras, répteis como lagartos e cobras e outros animais vivos que enfrentarão seu fim numa gaiola, em uma corrente ou numa corda.

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O monitoramento, nos adiantado com exclusividade pela Renctas, mostrou que os anúncios de animais e até de listas de espécimes são feitos nos grupos, e as negociações acontecem diretamente entre os interessados, sempre via WhatsApp. Cartões comuns de crédito e débito e depósitos em conta bancária são bem-vindos no pagamento do tráfico. Relógios ou jóias são aceitos em troca ou parte do valor pago pelos animais.

De fato, o comércio via mídia social replica e amplifica o ambiente e o modelo das chamadas “feiras do rolo”, mercados de rua espalhados por todo o Brasil onde é possível negociar quase tudo, principalmente produtos pirateados e falsificados e, claro, animais traficados. Tudo graças ao silêncio da população e ao fraco policiamento.

“Até a carne de caça é oferecida nos grupos do WhatsApp que acompanhamos. Os traficantes também capturam animais por encomenda dos clientes”, revela Dener Giovanini, Coordenador Geral da RENCTAS.

No escambo do zap, vale a até corrente de ouro por aves.

No escambo do zap, vale a até corrente de ouro por aves.

Ele nos disse que o tráfico de vida selvagem usando mídias sociais no Brasil será destacado em uma conferência internacional sobre o comércio ilegal de animais silvestres nesta semana, em Londres, e que uma visão geral dos métodos, do que circula nas redes e de quem está nos grupos será compartilhado até o fim do ano com autoridades públicas brasileiras. O objetivo é intensificar e fomentar o combater ao tráfico de animais, especialmente pelas mídias sociais, onde o crime está fora de controle.

“Esperamos que a luta contra o tráfico de animais aconteça pelo fortalecimento dos órgãos de controle e da fiscalização no Brasil e no exterior, e também com campanhas de conscientização para que os brasileiros reconheçam e denunciem o crime, reprimindo em especial o tráfico online”, destaca Giovanini.

O boom do comércio de animais que deveriam permanecer longe de gaiolas ou coleiras se beneficia do anonimato e da agilidade da comunicação eletrônica. Ela oferece aos traficantes de animais acesso direto a um número crescente de colecionadores de animais exóticos e de compradores que não se contentam mais com animais de estimação tradicionais, como cães e gatos.

“Além de aproximar compradores e vendedores, a mídia social também permite o acesso de pessoas a espécies que, de outra forma, seriam inatingíveis por meio dos canais tradicionais”, afirma Juliana Ferreira, diretora executiva da ONG Freeland Brasil.

Segundo fontes de agências federais brasileiras e ONGs, a maior parte do tráfico no Brasil ocorre hoje em escala local e regional. Nas feiras de rua, o traficantes dão drogas e álcool ou deixam os animais passar fome para que pareçam mais dóceis e atraentes para a “clientela”.

O comércio ilegal de espécies está amplamente disseminado e a crescente demanda on-line e física empurra os animais em um fluxo constante pelas principais rodovias que ligam as regiões Norte e Nordeste ao Sudeste, o maior mercado consumidor brasileiro de animais silvestres.

Nessas rotas criminosas, eles enfrentam seu destino em carros particulares, caminhões e ônibus, enfiados em assentos, empacotados em sacos ou embrulhados em caixas, além de forçados a passar dias sem comida ou água. Não é de surpreender que a maioria dos animais morra em trânsito.

Isso é de pouca preocupação para aqueles que compram e transportam os animais ou que fecham os olhos para o crime. Eles não se importam ou não sabem dos perigos associados ao comércio ilegal de vida selvagem, que pode ajudar na disseminação de espécies invasoras no país, tem impactos financeiros e sociais, pode extinguir espécies e até ameaçar a saúde humana.

“Captura e comércio de vários animais envolve a exploração de menores e pessoas pobres. Além disso, os espécimes traficados não passam pelo controle sanitário e podem transmitir doenças como raiva, hantavírus, lepra e salmonella”, explica Juliana Ferreira, da Freeland Brasil.

Apesar disso, o tráfico não encontra freio. Na Amazônia, o epicentro global da vida selvagem, apenas de janeiro a julho, a Polícia Federal apreendeu mais de 13 toneladas de pirarucu; quase 4 mil peixes ornamentais; enormes quantidades de animais vivos; carne silvestre de animais como a anta, o tatu-canastra, a paca, o veado-mourisco, o queixada, a tartaruga-do-rio e a tartaruga; bem como ovos e pássaros, como periquitos, papagaios e araras, além de lagartos e peles de cobra.

Traficantes aceitam relógios como pagamento.

Traficantes aceitam relógios como pagamento.

Além do mercado interno, os traficantes identificados nesses casos estavam se dirigindo para a vizinha Colômbia e até à Europa. As principais rotas da vida selvagem do Brasil para o exterior apontam para a península Ibérica e Estados Unidos. Entre 2009 e 2012, mais de 400 papagaios e ovos do Brasil foram confiscados em Portugal, Espanha e Suíça.

Nesses e em outros países, animais vivos e partes de animais mortos são usados em decoração e produção de roupas e jóias, medicina tradicional e curandeirismo, bem como em pratos exóticos de gosto duvidoso. Um exemplo são milhares de barbatanas de tubarão brasileiras que acabam em mercados asiáticos todos os anos, onde a sopa de barbatana de tubarão é considerada um afrodisíaco e símbolo de status. Quando o tráfico atravessa fronteiras internacionais, os animais e suas partes também são usados para testes em indústrias químicas, farmacêuticas e de cosméticos.

“Esses animais são riquezas arrancadas do Brasil, como pepitas de ouro. Quantos animais terão que morrer e espécies serem extintas antes de acordarmos para a verdadeira gravidade do problema do tráfico?”, pergunta Alexandre Saraiva, superintendente da Polícia Federal no Amazonas.

Sem dúvida, um grande dilema, mas a questão tem complexidade e dimensões do tamanho do Brasil. Afinal, tudo o que circula no serviço de correio dentro do país é radiografado nos depósitos de triagem, e a inspeção é particularmente robusta nas cidades e vilas fronteiriças. Para fora do país, tudo é monitorado.

No entanto, assim como nos aeroportos, maior atenção é dada às drogas, armas de fogo, explosivos e produtos químicos do que aos animais. E não podemos esquecer que o Brasil tem mais de 17 mil quilômetros de fronteiras terrestres, facilmente atravessadas por atividades ilegais.

“A enorme extensão de nossas fronteiras terrestres é terra de ninguém”, destaca Juliana Ferreira, da Freeland Brasil.

Festa da impunidade

Uma operação iniciada em junho passado por órgãos federais e estaduais lançou luz sobre a venda ilegal de quase 1,3 mil animais selvagens por meio do Facebook, em 15 dos 26 estados brasileiros. Mais de 300 animais foram resgatados, R$ 2,11 milhões foram aplicados em multas e 12 pessoas foram detidas.

Operações e apreensões como essas se repetem ao longo dos anos no Brasil, revelando o envolvimento em crimes contra a vida silvestre de cidadãos, empresas, funcionários públicos e, agora e cada vez mais, usuários de mídias sociais. No entanto, a demanda insaciável do mercado negro, a legislação fraca e sua aplicação deficiente ajudam a manter vivas as redes de tráfico.

Não nos deixa mentir o caso de Valdivino Honório de Jesus, funcionário público de 61 anos da Agência de Pesquisa Agropecuária do Estado da Paraíba (Emepa), flagrado 15 vezes por agências federais por tráfico de animais. Nas últimas duas décadas, Jesus foi multado em mais de R$ 9 milhões por esse tipo de crime.

Nos grupos, traficantes postam relação de animais oferecidos como se fosse uma simples lista de supermercado.

Nos grupos, traficantes postam relação de animais oferecidos como se fosse uma simples lista de supermercado.

Ele foi preso e indiciado pelo Ministério Público Federal somente em abril deste ano, mas por lavagem de dinheiro, não por tráfico de animais selvagens. Algumas prisões anteriores de Valdivino ocorreram no estado do Paraná e na divisa entre Pernambuco e Bahia, sempre com um grande número de animais selvagens.

De acordo com as investigações, Valdivino colocou os bens comprados com dinheiro do tráfico de animais em nome de “laranjas”, incluindo familiares e parentes. Em cinco casos de lavagem de dinheiro, os acusados usaram o dinheiro, principalmente, para comprar veículos.

Conforme informações do Ministério Público Federal (MPF) em Patos, maior município do sertão da Paraíba, Valdivino de Jesus foi condenado pela Justiça Federal, no início de outubro, a 12 anos de prisão em regime fechado. A pena também prevê apreensão de três veículos e perda do cargo como servidor público.

O MPF também solicitou informações do Facebook sobre a troca de mensagens entre o criminoso e seus clientes, incluindo criadores de aves no estado de Minas Gerais. Mas, argumentando que sua política de privacidade não permitiria o acesso às atividades dos usuários, o Facebook negou acesso às informações. “Essa posição violou várias leis brasileiras, inclusive de combate ao crime organizado”, contou o procurador federal Tiago Misael Martins.

Crime desprezado

A realidade cruel com a vida selvagem é que até agora o tráfico de animais é um crime de menor importância para a legislação brasileira. Assim, criminosos como Valdivino de Jesus são presos e depois libertados após a simples assinatura de boletins de ocorrência, mesmo quando pegos com a mão na massa. Além disso, as punições costumam ser transformadas no pagamento de cestas básicas e outras medidas que não afetam os lucros do comércio ilegal.

“Na prática, ninguém vai para a prisão no Brasil por tráfico de animais. Se a lei tratasse esses crimes com o respeito que merecem e conforme prevê a Constituição, começaríamos a enfrentar esse crime com maior eficácia. Nossos legisladores e líderes políticos demonstram inaceitável desrespeito aos animais silvestres”, afirma Vânia Tuglio, promotora do Ministério Público do Estado de São Paulo.

Afinal, a legislação ambiental brasileira é amigável quando se trata de traficantes de animais. A sentença prevista não excede um ano. Na vizinha Venezuela, o crime pode render até 9 anos de xadrez, diz Vânia Tuglio. Nos Estados Unidos, até mesmo embargos econômicos são permitidos contra países que não atuam contra o tráfico de vida selvagem.

No entanto, se a lei brasileira fosse aplicada de forma mais severa, os traficantes poderiam enfrentar até 16 anos atrás das grades, explica Alexandre Saraiva, superintendente da Polícia Federal no Amazonas.

“Jurisprudência existe e nos permite executar a Lei de Crimes Ambientais associada ao Código Penal. Mas uma visão distorcida de que as ofensas cometidas contra animais e a natureza são de menor importância ainda predomina. É por isso que defendemos que os chefes de polícia e outros funcionários públicos apliquem a lei de maneira mais ampla e eficaz”, destaca.

Mas isso não acontece especialmente por razões legislativas. Uma das principais demandas da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou o tráfico de animais e plantas no Brasil foi endurecer as penalidades pelo comércio ilegal de vida selvagem. O projeto de lei que prevê justamente isso aguarda luz verde do Congresso Nacional há 15 anos.

“O processo legislativo brasileiro é lento e burocrático e a maioria dos parlamentares não entende a importância da questão. Existe uma enorme falta de vontade política para implementar as recomendações da CPI. Não podemos mais tratar os crimes contra a natureza como um problemas menor”, afirma José Sarney Filho, relator do CPI, deputado e ex-ministro do Meio Ambiente.

Animais são oferecidos no atacado também.

Animais são oferecidos no atacado também.

Enquanto isso, no mundo real da política brasileira, outros projetos de lei propostos pelas bancadas ruralista e da bala tramitam na Câmara e Senado. Se aprovados, enfraquecerão a proteção ambiental, eliminando a fiscalização no transporte de peixes e outros animais nativos, e até mesmo permitindo a caça em todo o país, inclusive dentro de parques nacionais e outras áreas protegidas. A caça de animais nativos é proibida no Brasil desde a década de 1960.

De acordo com Juliana Ferreira, da Freeland Brasil, “a caça e a captura de animais vivos dentro de áreas protegidas abastecerão redes de tráfico. Isso também aumentará significativamente o número de caçadores legalizados armados em um país de proporções continentais, com órgãos ambientais desmantelados. Outras propostas buscam acabar com a lista oficial de espécies ameaçadas, usadas para ações de conservação e de fiscalização ambiental”.

Lavando as mãos

WhatsApp e Facebook foram questionados pelo Intercept sobre suas políticas e ações concretas para reduzir o tráfico de animais silvestres.

O WhatsApp no Brasil disse não vai se pronunciar sobre o assunto. O Facebook afirmou que “”não permite a venda de animais silvestres, e removemos esses conteúdos assim que ficamos cientes deles”.

O WhatsApp foi comprado pelo Facebook no início de 2014 e, juntos, essas mídias sociais têm quase 250 milhões de usuários no Brasil e 3,7 bilhões de clientes em todo o mundo.

Esta história foi produzida por The Intercept Brasil e escrita como parte do programa ‘Reporting the Online Trade in Illegal Wildlife’. Este é um projeto conjunto da Fundação Thomson Reuters e da Iniciativa Global contra o Crime Organizado, financiado pelo governo da Noruega. Mais informações em aqui. O conteúdo é da exclusiva responsabilidade do autor e do editor.

This story was produced by The Intercept Brasil and written as part of the ‘Reporting the Online Trade in Illegal Wildlife’ programme. This is a joint project of the Thomson Reuters Foundation and The Global Initiative Against Organized Crime funded by the Government of Norway. More information here. The content is the sole responsibility of the author and the publisher.

Imagem em destaque: Duas iguanas foram encontradas dentro de uma caixa de Sedex por funcionários dos Correios, em São Paulo. Os animais foram despachados em uma agência da zona leste da capital com destino à Belo Horizonte.

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